quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

SOBRE GUERRAS E VERMES QUE NUNCA MORREM


1. Até onde pude constatar, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento relacionadas ao retorno dos judeus à terra prometida remonta ao século XVIII. Nasceu em ambiente puritano, grupo de fiéis fervorosos que se desvincularam da Igreja Anglicana. No século XIX, precisamente em 1844, George Bush, avô presbiteriano do ex-presidente dos Estados Unidos, escreveu “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”, livro que pregava, assim como os puritanos, o restauracionismo.

2. No ambiente cristão, até então, imaginava-se que as profecias relacionadas à restauração de “Israel” (ou melhor, de Judá/Jerusalém) já haviam sido cumpridas no século VI a.C., concretizadas após o Edito de Ciro, rei persa mencionado no livro do profeta Isaías (44,28):
Digo a Ciro: "Meu pastor".
Ele cumprirá toda a minha vontade,
dizendo a Jerusalém: "Tu serás reconstruída",
e ao Templo: "Tu serás restabelecido”.
3. De fato, Jerusalém e seu templo foram reconstruídos. No tempo de Jesus o santuário ainda estava de pé e os judeus viviam na Palestina tal como declaravam as antigas promessas. Além disso, as profecias messiânicas foram projetadas em Jesus, reconhecido como sendo “da linhagem de Davi” (Is 1,1; Mt 1,1). E como sua missão foi ressignificada, percebida por seus seguidores como estando relacionada à salvação “dos pecados” e não mais à salvação “dos impérios hostis” (Lc 24, 21.47), tudo parecia cumprido, restando apenas o juízo final, a ressurreição do corpo e o triunfo do reino sem males.

4. No primeiro século os judeus ainda estavam reunidos, ainda ocupavam a terra de seus ancestrais e já possuíam – na perspectiva cristã – um rei “da linhagem de Davi”. Na expectativa de Paulo, por exemplo, só restava aguardar o retorno, a parousia de Cristo. Por isso ele diz aos Tessalonissenses: “nós... os que estivermos vivos, seremos arrebatados como ele” (1Ts 4,17). O texto revela com muita clareza que Paulo cultivava forte expectativa pela iminência do retorno de Cristo, ainda enquanto estivesse vivo. Na Segunda Carta, mais maduro, ele recua e pede paciência (2Ts 2,2).

5. Ocorre que no ano 70 Jerusalém foi destruída pelo exército romano. No início do segundo século, após nova revolta judaica, os judeus foram expulsos de Jerusalém sob o governo do imperador Adriano. Diante disso, o cumprimento literal e definitivo das Escrituras – posse da terra, reino terreno sob o governo de Cristo, paz definitiva em Jerusalém – foi projetado para o futuro, para o milênio. E assim nasceu o restauracionismo. E assim foi gerado o dispensacionalismo (John Nelson Darby e Cyrus Ingerson Scofield), roteiro hollywoodyano de mau gosto criado no século XIX.

6. No século XXI, em um mundo ainda assolado por tantas guerras cruéis, o dispensacionalismo permanece sendo usado para legitimar crimes de guerra, deportações forçadas, roubo de terras, violação de sepulturas e santuários, fraldas manchadas de sangue e tripas suspensas no varal. É política travestida de piedade. Crueldade sob o manto da Cruz. Crenças ruins são como o verme do Evangelho de Marcos: ardem nas chamas, mas nunca morrem (Mc 9,48).



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O CARNAVAL DE IVETE E O ARMAGEDOM


1. Desde que Cristo deixou fisicamente a terra, diversas questões passaram a ocupar a mente daqueles que se reuniam em seu nome. Duas delas aparecem relacionadas: 1) Qual a razão de sua morte? (Lc 24,20-21), 2) Quando e como voltará? (1Ts 4,13-18). Na tentativa de expor em detalhes a questão n° 2, teólogos das mais diversas épocas se debruçaram sobre livros como Ezequiel, Daniel, Mateus, Tessalonicenses e, obviamente, o Apocalipse.

2. A explicação mais criativa, fantástica e popular é o dispensacionalismo. De acordo com essa visão, um dos mais evidentes sinais de que o mundo caminha para um colapso final é o chamado ARREBATAMENTO: cristãos piedosos de diversas partes do mundo desaparecerão de forma abrupta, resgatados por Cristo, inaugurando na terra um período de sete anos de extrema angústia: a terrível e temida GRANDE TRIBULAÇÃO.

3. No final desses sete anos Jerusalém estará cercada pelos exércitos de Gog e Magog, desencadeando a não menos dramática GUERRA DO ARMAGEDOM. Mas Jerusalém sairá ilesa graças à interferência de Cristo, que sairá em auxílio da Cidade Santa e derrotará o malvado ANTICRISTO. Sentado em um trono, com coroa e tudo, Cristo reinará em Jerusalém por mil anos e a terra experimentará fartura e prosperidade. Tudo perfeito, como naquelas ilustrações das Testemunhas de Jeová.

4. Mas... como nos filmes da Marvel, é preciso estar atento às cenas pós-crédito. Inesperadamente, para surpresa dos telespectadores, ou melhor, dos sobreviventes do Armagedom, no ano 1000 o Capiroto lançará seu último bote. Ocorre que o roteiro foi tornado público (tem spoiler), então todos sabem que o Zarapelho será derrotado e lançado definitivamente no lago de fogo ardente juntamente com a Besta e o Falso Profeta (Ap 20,10).

5. Bem, com essa coisa de guerra entre Israel e Hamas, conflito na Ucrânia, Houthis no Yêmen, China ameaçando Taiwan e alertas sobre os perigos da inteligência artificial, os dispensacionalistas estão em polvorosa. Em pleno festejo de carnaval, Baby do Brasil disparou: “o arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos” (Puxa, assim tão rápido nem vou conseguir comprar meu primeiro carro elétrico).

6. Mas nem tudo está perdido. Ivete, que não leva desaforo pra casa, disse que vai macetar o Apocalipse. Se entendi bem, a moça vai pedir uma prorrogação de prazo ao Altíssimo.


Jones F. Mendonça