sábado, 27 de novembro de 2021

SOBRE O CRISTIANISMO IDEOLÓGICO

A justificativa apresentada pelo pastor José Wellington, presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, para abandonar sua postura apolítica e mergulhar de cabeça na política partidária foi a seguinte: “quando tivemos agora esta última reforma da nossa Carta Magna, [...] nós descobrimos que havia um pacto da religião maior no Brasil [o catolicismo] para querer se assenhorar do direito de culto religioso no país. [...] Foi quando nós acordamos [...]. E nós temos isso até como Providência Divina. Pode-se dizer que foi Deus quem não deixou” (28/02/92). Foi Deus, sei...

O abuso da religião com fins fins políticos já dura – só no cristianismo – cerca de dois mil anos. A teologia foi instrumentalizada pela ideologia imperial cristã romana, pelas Coroas portuguesa e espanhola no período colonial, por Lutero para legitimar a servidão, por Calvino para justificar a morte aos hereges, por racistas da Ku Klux Klan para por fogo em negros nos EUA, por fanáticos negacionistas no século XXI. Aí me aparece aquele líder religioso do YouTube (como o Malapacas e o NicoSolaFide) dizendo os evangélicos progressistas inventaram o cristianismo ideológico. Só sendo muito tonto...



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O SALMO ESTOMACAL

1. No Sl 7,5 o salmista pede a proteção de Javé contra seus inimigos e declara, em sua defesa, que sempre buscou viver de forma íntegra e justa. Se isso não é verdade, ele prossegue: que “persiga o inimigo a minha garganta (נפש = néfesh) e alcance e pisoteie na terra meu estômago (חי = hay) e a minha glória no pó se estabeleça para sempre”.

2. Tanto “néfesh” (lit. “garganta”) como “hay” (lit. “estômago”) são traduzidos, na grande maioria das vezes, por “vida”. Este Salmo é um raríssimo exemplo da ocorrência dessas duas palavras com sentido absolutamente concreto. Desconheço versão bíblica que traduza assim (dá uma olhada na sua).

3. Um bom leitor perceberá que “perseguir a GARGANTA e alcançar e pisotear o ESTÔMAGO na terra” é o mesmo que aniquilar a vida. Versões como a NVI traduzem assim: “no chão me pisoteie e aniquile a minha vida”. A NVI capturou a mensagem. Mas que tirou toda a beleza da poesia hebraica, ah, tirou...

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A BÍBLIA HEBRAICA E AS PAIXÕES VISCERAIS

Entre os antigos hebreus, as entranhas, as vísceras, os intestinos,  eram percebidos como sede das emoções fortes. Um exemplo: o juízo dirigido a Moab, em Isaías 16,11, parece produzir em Javé uma profunda e paradoxal tristeza: “minhas entranhas (מעה) vibram (המה) por Moab como uma cítara”. Do mesmo modo se sente Jeremias: “minhas entranhas, minhas entranhas... meu coração vibra...” (4,19). Aqui o profeta chora pela destruição de Judá.

Mas nem sempre a imagem das entranhas vibrando/zunindo/gemendo indicam tristeza, dor ou agonia. Em Cantares 5,4, já despida, a amada espera seu amado no quarto. Quando ele chega, com os cabelos cheios de orvalho, deslizando seus dedos úmidos pela abertura (da porta?), as entranhas dela “vibram por ele”. Não vibram de tristeza, vibram de paixão, de fogo, de desejo. Mas o moço desaparece antes que ela lhe abra a porta. Ficou ali, com os dedos gotejando mirra.

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 23 de novembro de 2021

EZEQUIEL 29,18: CARECAS DE OMBROS ESFOLADOS

O profeta Ezequiel, buscando enfatizar os efeitos negativos da guerra na cidade fenícia de Tiro, atacada pelos babilônios, apresenta ao leitor o seguinte quadro: “toda cabeça ficou calva e todo ombro esfolado(29,18). Aparentemente era uma força de expressão usada para realçar o desgaste físico provocado pela guerra (ou sinal de luto dos fenícios, cf. Ez 7,18; Am 8,10; Miq 1,16). Difícil saber com certeza. A NVI tenta dar maiores explicações ao leitor: “toda cabeça FOI ESFREGADA até não ter ficar CABELO NENHUM” (eita!). A NTLH explica a cabeça e o ombro “depilados/esfolados” como resultado do peso extremo carregado pelos soldados: “CARREGARAM TANTO PESO, que os cabelos deles caíram, e os seus ombros ficaram esfolados” (como?!). 

Bem, na dúvida, o melhor é não inventar, né!



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O “JORNALEIRO” EM ISAÍAS 16,14

1. Algumas versões bíblicas – como ALMEIDA, desde 1819! – traduzem Is 16,14 assim: “tais como os anos do jornaleiro, será aviltada a glória de Moabe”. E a gente fica pensando: vendia “O Globo” ou “Estadão”? Algo não está certo aí...

2. Ocorre que “jornaleiro” indicava, há muito tempo atrás, pessoa que recebia por jornada de trabalho, daí a escolha da palavra portuguesa “jornaleiro” (o que hoje chamaríamos de “diarista”). Assim, eu não diria que a tradução está errada, mas desatualizada.

3. O termo hebraico traduzido por “jornaleiro” é שכיר (sakiyr). Ele serve para indicar uma pessoa que luta diariamente por seu sustento. O termo reaparece em Jó 7,1. Veja: “Não está o homem condenado a trabalhos forçados aqui na terra? Não são seus dias os de um sakiyr” (assalariado, diarista, etc.)?


Jones F. Mendonça

domingo, 14 de novembro de 2021

AS DISPUTAS RELIGIOSAS E AS "FAKE NEWS" NO BRASIL REPÚBLICA

1. Leio jornais das primeiras décadas do século XX para compreender bem como se davam as disputas religiosas após a Constituição Republicana de 1891. Em julho de 1943, diante do crescimento do pentecostalismo no Brasil, um jornal católico publicou texto contra os pentecostais, classificados como “os mais ignorantes, os mais fanáticos e os mais perniciosos de todos os protestantes”. E acrescenta “suas reuniões são verdadeiras ‘macumbas’”.

2. O autor destaca que a “seita pentecostal” era repudiada até mesmo pelos demais protestantes e argumenta, por exemplo, que uma edição do Jornal Batista no início da década de 30 – classificado pelo autor como “jornal protestante-esquerdista” (!) – enumerou alguns dos frutos do pentecostalismo. Na relação aparecem: “perda de fé, amor livre, imoralidade, espiritismo, hipnotismo... loucura”, etc. A estratégia católica era destacar os efeitos nocivos do livre exame luterano, prática que a cada dia gerava mais denominações protestantes que já nasciam se digladiando.

3. Na sequência também é mencionado o jornal presbiteriano “A Mensagem”, que teria tratado o pentecostalismo como “seita turbulenta e de confusão”. Outro jornal presbiteriano, “O Puritano”, publicado em 1939, teria noticiado que num culto pentecostal, “após alguns dias de jejum e reuniões e gritarias” um membro tentou arrancar a língua de um bebê, imaginando estar possuída pela “antiga serpente”.

4. Apesar de toda a oposição católica (com boa dose de exageros, inclusive ampliando a crítica protestante aos pentecostais), o pentecostalismo veio para ficar. O jornal Diário da Noite noticiava, em 10 de março de 1969, a inauguração no largo da Pompeia, em São Paulo, daquele que seria “o átrio do maior templo evangélico do mundo”, com a presença do prefeito Faria Lima. O projeto do templo, sede da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo, previa até mesmo a construção de um heliponto!

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

AS PROLES E A NATUREZA DOS SENTIDOS

No dia 10 de janeiro de 1951 o jornal “O Puritano”, semanário mantido por presbiterianos, publicou a seguinte pergunta com o propósito de orientar os fiéis: “é lícito a casal crente limitar a sua prole, tendo em conta fatores econômicos, sociais e saúde?”. A resposta: “a prole é bênção que o Senhor dá aos pais, e bênção não se pode nem deve limitar”. E acrescenta: “tão nobre dever [...] deve ser cumprido santamente e nunca sob o império da natureza e dos sentidos”. Coisa rara é ver sobre a terra tamanha piedade 😃


Jones F. Mendonça

terça-feira, 9 de novembro de 2021

PROTESTANTISMO E IDEOLOGIA LIBERAL

1. Ao contrário do que aconteceu na Europa, no Brasil o catolicismo dominou soberano por três séculos, praticamente sem qualquer tipo de disputa pelo espaço religioso com o protestantismo. Assim que chegaram no país, no século XIX, os protestantes passaram a ser vistos como ameaça por “novas ideias e falsos princípios”, sobretudo pela burguesia rural, interessada na manutenção do status quo. Os protestantes eram, de maneira geral, liberais sob a perspectiva política e econômica.

2. Enquanto a burguesia latifundiária rural defendia a velha ideologia feudal ibérica, os protestantes chegavam trazendo consigo, além da religião, a nova ideologia liberal anglo-saxônica. Imaginavam, inspirados na filosofia do destino manifesto, que eram representantes do progresso econômico, político e cultural. Na prática os missionários protestantes atuavam – conscientes ou não – como agentes do imperialismo estadunidense.

3. As portas para as religiões de matriz protestante se abriram em 1810, por meio do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação celebrado entre a Coroa Portuguesa e a Inglaterra. Embora fosse um tratado comercial, o documento assegurava aos ingleses residentes no Brasil, a “perfeita liberdade de Consciência, e licença para assistirem, e celebrarem o Serviço Divino em honra do Todo Poderoso Deos” (art. XII).

4. Os locais de culto, no entanto, precisavam ter a arquitetura “semelhante às casas de habitação” e, um detalhe importante: não podiam ter sinos para anunciar as atividades religiosas. Você pode acessar e ler o documento  escrito no bom português do século XIX e digitalizado pela equipe da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin  clicando aqui.

 

 Jones F. Mendonça

 

sábado, 6 de novembro de 2021

DAVI E SALOMÃO COMO REIS NÔMADES

Erez Ben-Yosef, professor da Universidade de Tel Aviv, está sugerindo que os reinos de Davi e Salomão eram reinos... nômades! Com a tese ele pretende justificar a falta de evidências arqueológicas capazes de demonstrar que um reino unificado sob o governo dos dois reis realmente existiu. Sendo reinos nômades não faria sentido buscar evidências materiais como construções sofisticadas. Mas que tipo de evidências Ben-Yosef apresenta para apoiar sua teoria? O arqueólogo argumenta que as minas de cobre de Timna e em outros locais desérticos no Vale de Aravah revelam sinais de que foram exploradas com técnicas avançadas por uma confederação tribal nômade edomita na Idade do Ferro.  Assim, ele sugere que esse modelo de organização tribal nômade pode ter existido em Judá no período em que a Bíblia situa os governos dos reis Davi e Salomão. A tese foi muita criticada por Israel Finkelstein

Você pode se aprofundar no assunto lendo esta matéria, publicada no Haaretz ou consultando os artigos produzidos por Ben-Yosef disponíveis na Academia.edu.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

SOBRE OS “HOMOSSEXUAIS” EM 1CORÍNTIOS 6,9

1. As palavras gregas “malakos” e “arsenokoites”, presentes em 1Co 6,9, são traduzidas de diversas formas: “efeminados e sodomitas” (ARA), “effeminados e machos que se deitaõ com machos” (Almeida 1819), “homossexuais ativos e passivos” (NVI), “depravados e pessoas com costumes infames” (BJ), “adúlteros e homossexuais” (NTLH), e por aí vai. Os tradutores geralmente são bem criativos em seu repertório de palavras.

2. “Malakos” só reaparece em Mt 11,8 e Lc 7,25. Seu sentido concreto é “mole”, “macio”, “suave”, “flexível”. No caso dos Evangelhos o termo é usado para indicar um tecido “luxuoso”, “fino”, dada sua maciez. Rastreei o emprego do termo em textos fora do NT com a ajuda o Perseus Digital Library. Ele aparece em textos de Platão, Aristóteles, Heródoto e tantos outros. Sempre indica algo que é macio, mole, flexível, etc. De modo geral os tradutores pensam que o termo foi usado como metáfora para “delicado”, daí “efeminado”. Quem pode ter certeza?

3. “Arsenokoites” é um neologismo paulino. Só reaparece em 1Tm 1,10, mas o contexto não ajuda a entender seu significado com clareza. O termo resulta da junção de “arsen” (macho) + “koite” (cama). Será que indica o macho que traz para sua cama outro macho? Ou uma mulher casada que macula o seu leito com outro homem? Talvez esteja se referindo ao abuso de homens mais velhos cometidos contra homens mais jovens, prática bem atestada entre gregos e romanos. Difícil saber com certeza.

4. Confesso que não estou convencido de que o texto esteja se referindo ao que hoje chamamos de relação homoafetiva. Os exegetas da BJ são os mais honestos. Sabem que as palavras no máximo revelam um tipo de relação/comportamento considerado imoral (mas qual?), daí terem optado por termos mais genéricos como “depravados e pessoas com costumes infames”. O que passa disso é invenção, é leitura ideológica da Bíblia.

5. Bem, se você me perguntar se Paulo teria posição contrária às relações sexuais homoafetivas eu diria que sim. É o que parece dizer Rm 1,26-27. A posição de Paulo em Romanos concorda com a de outros judeus do período, como Fílon de Alexandria, que condenava relações sexuais entre homens porque via o sexo como algo exclusivamente relacionado à reprodução. Vale dizer que Fílon também condenava sexo entre um homem e uma mulher estéril, uma vez que não promovia a reprodução da espécie.

 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

A LENDA DO REI KERET

A lenda do rei Keret (ou “a epopeia de Kirta”) é um poema épico ugarítico datado para 1500-1200 a.C. A desordem no reino permite o crescimento da injustiça, que atinge pessoas mais vulneráveis, como órfãos e viúvas:
Tu não julgas a causa da viúva,
Nem decide o caso dos miseráveis;
Não expulsas os que atacam os pobres;
Não alimentas o órfão antes de ti (ANET, 149).
O profeta Isaías também repreende os “príncipes ávidos por subornos” que “não fazem justiça ao órfão e não acolhem a causa da viúva” (1,23). O órfão e a viúva reaparecem como principais grupos necessitados da benevolência dos reis no épico de Aqhat



Jones F. Mendonça