sexta-feira, 28 de agosto de 2020

COLONIALIDADES CONSERVADORAS

1. Quando um conservador de peso como o britânico Roger Scruton expõe as razões de sua postura conservadora, não é difícil entendê-lo, embora não necessariamente seja possível concordar com ele. Scruton diz querer preservar as coisas boas da cultura de seu país: a pintura (como a de William Blake), a literatura (como a de Charles Dickens) a música (como a de Gustav Holst), a imponência, a elegância e a história do Palácio de Westminster (sede do Parlamento britânico), o aconchego e o charme dos antigos povoados e até mesmo a tradição do chá, da monarquia e da fé anglicana. De fato, tudo muito elegante (mas que, por vezes, esconde estruturas muito perversas). 

2. Como somos um país jovem, miscigenado e herdeiro de uma longa experiência de colonialidade, o conservadorismo que aqui se espalha ainda não conseguiu impor uma identidade (nem bom gosto). Para alguns, ser conservador é proferir grosserias a cada dois minutos (gostam de dizer que o importante é ser politicamente incorreto). Para outros é sentir saudade de Kichute e bala Juquinha. Há quem defina o conservador a partir da adoção de uma (importada) barba ao estilo nórdico lenhador. Para outros, como Pondé, é compreender que “mulher gosta é de apanhar”. E pensar que Scruton vive dizendo que a marca do conservadorismo é a busca pela beleza. Por aqui a coisa está mais para capa de botijão de gás bordado em crochê. 



Jones F. Mendonça

domingo, 16 de agosto de 2020

HÁ RACISMO EM LAMENTAÇÕES DE JEREMIAS?

1. O livro bíblico de Lamentações expõe poeticamente dois momentos vividos pelos jovens de Jerusalém: antes da invasão babilônica eram “mais alvos que o neve” e “mais brancos que o leite” (assim é traduzido na maioria das versões). Depois da invasão ganharam aspecto “escuro” (4,18). É possível que alguém veja aqui evidência de racismo. Será?

2. Duas razões para rejeitar essa visão: a palavra hebraica traduzida por “alvo” (zakakh) não indica cor, mas “pureza”. Veja: “nem os céus são zakakh aos seus olhos” (Jó 15,15). A palavra traduzida por “branco” é tzahah, termo que aparece uma única vez na Bíblia Hebraica. Seu significado é obscuro. No texto surge como sinônimo de zakakh. É provável que indique a natureza ofuscante do branco e não a cor em si.

3. Repare, ainda no verso 7, que os mesmos jovens são apresentados como “vermelhos como os corais” e “brilhantes como safira”. Como podem ser simultaneamente “brancos” e “vermelhos”? Bem, o que se tem em vista aqui não é a cor, mas o brilho, o aspecto reluzente, a pureza, o valor. Caso retornemos ao verso 2 veremos outra comparação: os nobres eram “como ouro” (reluzentes), agora “são como barro” (ressequidos e sem brilho). 

4. Para compreender um texto escrito há mais de dois mil anos é preciso entrar na cabeça dos seus escritores. É claro que essa tarefa não é fácil e que não é possível reconstruir todo o universo do autor do texto. Uma boa dose de humildade diante do texto é sempre importante. Mas não precisamos radicalizar e achar que a tarefa é difícil a ponto de embarcarmos nessa conversa de “leitura criativa”. Isso Malafaia e Feliciano já fazem com muita maestria.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

CONSIDERAÇÕES SOBRE A POESIA HEBRAICA

Cerca de 30% do Antigo Testamento foi escrito em forma poética. Ela aparece nos oráculos proféticos, nas orações, nos cantos fúnebres, nas celebrações de vitória, etc. Assim como a poesia mesopotâmica a poesia hebraica não trabalha com rimas, mas com paralelismos: o verso “b” reforça a ideia presente no verso “a”.

Veja como a compreensão do paralelismo ajuda a interpretar um verso de Cantares. Eis o verso (tradução NVI):

“Pois o amor é tão forte quanto a morte,
e o ciúme é tão inflexível quanto a sepultura” (Ct 8,6).

Destaco dois problemas com esta tradução: 1) algumas palavras estão mal traduzidas; 2) O tradutor não levou em conta o paralelismo. Abaixo proponho minha tradução. Veja que dispus os versos em paralelo:

A – “FORTE (1) como a MORTE (2) é o AMOR (3);
B –  ATROZ (1’) como o SHEOL (2’) é a PAIXÃO (3’).

Veja como agora tudo faz sentido: forte/atroz; amor/paixão; morte/sheol.

Algumas considerações: 1) sheol não é “sepultura”, mas “mundo dos mortos”. Nos poemas o sheol era quase que personificado como uma força impetuosa, sempre disposta a tragar vidas. 2) a palavra hebraica que traduzi por “paixão” indica simplesmente uma pulsão: dependendo do contexto pode indicar ciúme, inveja ou amor ardente (paixão ou zelo). Aqui escolhi paixão por uma razão muito simples: o paralelismo exige que seja um sinônimo de “amor”. “Ciúme”, neste caso, não faz qualquer sentido.

 

Jones F. Mendonça

VERDE É PODER

Na Bíblia, a palavra hebraica “eytan” é traduzida simultaneamente por “poderoso” (Jó 12,19), “caudaloso” (Sl 74,15), “verde” (Jr 49,19) e “seguro” (Nm 24,21). Como pode ser isso? Explico: seu sentido primário indica algo que é permanente. Por desdobramento serve para classificar pessoas “poderosas” (permanentes em sua posição), cursos d’água “caudalosos” (rios permanentes, que não se esgotam com a seca), a vegetação “verde” (que permanece viçosa nos períodos de estiagem) ou “segurança” (algo que permanece, apesar da instabilidade).


 Jones F. Mendonça

terça-feira, 4 de agosto de 2020

O VERDE NA BÍBLIA

A palavra “verde”, em nosso idioma, não serve apenas para indicar uma cor. Dou um exemplo: “na carroça havia mato SECO e mato VERDE”. Verde, aí, indica um mato viçoso, contrário de seco. Não é cor.

Uma palavra hebraica geralmente traduzida por “verde” é “yereq”. Eis um exemplo: “tenho dado todas as ervas VERDES como mantimento” (Gn 1,30). Não é difícil perceber que “yereq”, ao menos aí, não indica a cor, mas outro tipo de qualidade da erva: sua viçosidade.

Rastreei todas as ocorrências de “yereq” na Bíblia Hebraica. Sempre aparece associada aos vegetais. Nunca indica uma característica visual de um tecido, de uma pedra, de um objeto qualquer. Então fico pensando se os hebreus tinham ou não uma palavra para designar a cor verde. Acho que não.

Certamente tinham palavras específicas para o preto (qadar, shahor), para o branco (laban), para o azul (tekelet) e para algumas variações do vermelho (adom, shaniy, argaman). Mas para o verde, parece que não.

Um fundamentalista poderia me indagar: “ora, mas no que esse tipo de análise vai contribuir para minha salvação”. Eu diria: nenhuma. Até porque não estou falando de religião, mas de idiomas, de cores e de como os hebreus percebiam o mundo.


Jones F. Mendonça


O CORAÇÃO DO REI DAVI

No texto hebraico do Antigo Testamento há uma expressão cujo sentido não é claro e que só aparece associada a Davi: “golpear o coração”. São dois os episódios em que aparecem: Davi “golpeia o [seu] coração” após cortar a orla do manto de Saul (1Sm 24,5) e, de novo, “golpeia [seu] coração” após ordenar o recenseamento do povo (2Sm 24,10). Qual seria o sentido disso? Os tradutores se dividem. Ele teria sofrido uma “dor no coração”, ou sentido “o coração bater forte”, ou um “descompasso no coração” ou até mesmo “remorso”. Quer saber a verdade? Ninguém sabe com certeza o que significa. Talvez indique remorso, medo, pavor, arrependimento... Não é fácil a vida do tradutor.

 

Jones F. Mendonça