Sempre que leio uma crítica à teologia liberal o nome de Rudolf Bultmann aparece em destaque. Estranho. O teólogo da desmitologização (ou demitização) foi, ao lado de Karl Barth, um crítico da teologia liberal. Num ensaio de 1924 Bultmann escreveu: “O objetivo da teologia é Deus, é a acusação contra a teologia liberal é esta: ‘ela não tratou de Deus, mas do ser humano’”.
Possuo
“Jesus Cristo e mitologia”, de Bultmann. O livro é uma tentativa de salvar o
cristianismo da ameaça da teologia liberal com idéias tomadas do
existencialismo de Heidegger. O próprio Bultmann admite ter recebido influência da filosofia de Heidegger no livro, afinal de
contas, ele afirma “a exegese descansa sempre em alguns princípios e concepções
que atuam como pressuposições do trabalho exegético”.
Uns
lêem o Novo testamento a partir do dogma e, portanto, a partir da interpretação
que outros fizeram no passado. Outros buscam novos caminhos na tentativa de
atualizar sua mensagem. Desmerecer o trabalho de Bultmann pela falta de
originalidade ou por apoiar-se na filosofia é no mínimo ridículo. Como se Paulo
não tivesse buscado elementos para sua pregação na mitologia judaica (que por
sua vez tem raízes na Babilônia e na pérsia), no estoicismo, no epicurismo e no
platonismo.
Mas
este texto não pretende ser uma defesa de Bultmann. Os que já desceram à
sepultura não precisam de advogado. Além do mais, sua teologia, como qualquer
outra, não está isenta de críticas. Seria
um contrassenso criticar a ortodoxia por sua rigidez e permanecer atrelado a
Bultmann. Mas citá-lo como o “pai dos liberais” é desconhecer a teologia do final
do século XIX e seus desdobramentos no século XX.
Para
que eu não seja acusado de ser um bultmanniano enrustido, deixo duas críticas
ao teólogo de Marburg:
1.
Ao demitizar algumas idéias mitológicas, consideradas como pré-científicas, tais
como a existência de demônios, anjos, tronos celestes e curas milagrosas,
Bultmann pôs o trem da teologia num trilho de uma via só. Duas questões: até
onde a demitização deve ir? A crença em um Deus misericordioso e disposto a
salvar o ser humano também não deve ser demitizada?
2.
Bultmann recusou-se a substituir o mito pela história como queriam os liberais.
Ele desprezou a história como fundamento da fé (para ele o importante é a
história que se realiza hoje, uma fé existencial) e passou a valorizar o
querigma. Novas perguntas: até que ponto a história de Jesus é irrelevante para
a fé? Uma fé sem concreticidade histórica subsiste?
Bultmann
tocou em feridas. E elas ainda estão abertas. Desconfio que a repulsa que alguns
teólogos/pastores conservadores cultivam por Bultmann não é por discordarem de
suas idéias. É por medo das desconfortáveis implicações que elas trazem. Muitos
estão dispostos a aceitar que não há tronos no céu. Que o inferno não fica
embaixo da terra. Que Deus não solta fogo de suas narinas e nem lança raios
montado em querubins. Mas poucos estão dispostos a refletir honestamente sobre
os questionamentos levantados por Bultmann.
Bultmann
virou sinônimo de herege. Logo ele, tão crente.
Jones
F. Mendonça
AMÉM!!!!
ResponderExcluirAcabei de ler o livro que estava na lista de espera desde que você o recomendou no semestre passado. Como você mesmo disse: poucos estão dispostos a pensar... e ele não faz outra coisa senão fazer pensar. E tão crente que era que tratou o sagrado com o respeito que merece, e não da maneira vil que, às vezes, encontramos em livros da teologia liberal.
Belo texto!
André,
ResponderExcluirSe houvesse um index dos livros proibidos pelos evangélicos, Bultmann estaria lá (ao lado de Paul Tillich, Harvey Cox, Bonheoeffer e outros). Pessoalmente acho que a tal "interpretação existencialista" é um coelho mágico que Bultmann tirou da cartola visando tornar o cristianismo aceitável a uma classe mais intelectualizada. De qualquer forma, há muita coisa interessante em seu pensamento. Bultmann é leitura obrigatória tanto para quem se identifica com uma teologia mais liberal, como para os mais ortodoxos.
Grande abraço!
Mesmo que eu concorde com o coelho mágico, acredito que vale a pena ler esses caras só pra dizer não à preguiça mental!
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