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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

A BÍBLIA, OS GÊMEOS E A LUTA PELA PRIMOGENITURA

Boa parte das pessoas conhece a história da luta entre os gêmeos Esaú e Jacó no ventre de Rebeca (Gn 25,24-26): Jacó (yakov), o "usurpador" (yakav) segura o "calcanhar" (akev) de Esaú, na tentativa de nascer primeiro. Já crescido, Esaú, o “avermelhado”, vende sua primogenitura por um punhado de "cozido vermelho". Mas há outra história, muito parecida.

Mais adiante, em Gn 38, 27-30, outros gêmeos lutam pelo privilégio da primogenitura: Peretz e Zarah, filhos da relação incestuosa entre Tamar e Judá. De acordo com o texto, Zarah põe a mão para fora, indicando que nasceria primeiro. Em seu braço é colocada uma fita vermelha. Mas Peretz abre uma “brecha” (paratz) e nasce na frente de seu irmão.

Nas duas histórias dois gêmeos lutam. Nas duas histórias aquele que é indicado pela cor vermelha perde a primogenitura. Nas duas histórias os trocadilhos são usados para explicar o nome de uma personagem.

A primeira história explica a proeminência de Israel (Jacó) sobre Edom (Esaú). A segunda a proeminência da família de Peretz - ancestral de Davi (Mt 1,3-6) - sobre os demais filhos de Judá. As duas narrativas - é fácil concluir - possuem caráter etiológico.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 16 de julho de 2018

ENCONTROS AMOROSOS NO ANTIGO TESTAMENTO

Um verbo muito comum utilizado no AT para sugerir que um homem teve relações sexuais com uma mulher é “Yadá” (conhecer): Adão “conhece” Eva (Gn 4,1); Caim “conhece” sua mulher (4,17); os homens de Sodoma querem “conhecer” os mensageiros divinos hospedados na casa de Ló (19,5), etc.

Mas yadá não significa “comunhão profunda”[1] como insistem muitos comentaristas bíblicos (esse sentido pode ser dado pelo contexto, não pelo termo em si). Yadá é simplesmente "conhecer/saber", tal como na fala do Isaque já velho: "estou velho, não conheço o dia da minha morte". Nos casos citados no parágrafo anterior, yadá funciona como eufemismo. Aliás, há uma outro, pouco conhecido.

Nesta semana, traduzindo o livro bíblico de Rute, encontrei por acaso uma expressão tão comum quanto yadá para se referir ao encontro ardente entre homem e mulher: “vayyabo eleyha” (algo como “veio até ela”). Em Rt 4,13 Boaz toma Rute como esposa, “vai até ela” e ela engravida.

A expressão reaparece com o mesmo sentido em Gn 29,23 (Lia e Jacó), 30,3-4 (Bila e Jacó), 38,2 (Judá e Sué), 38,18 (Tamar e Judá), Js 2,4 (os espias e Raabe), Jz 16,1 (uma prostituta e Sansão) e 2Sm 12,24 (Bat-shebá e Davi). Em Jz 13,6, a mãe de Sansão diz que um homem de Elohim "veio até mim". O texto estaria sugerindo algo mais que um encontro?

Em alguns casos o verbo aparece associado a nomes próprios femininos (e não a um pronome). Dois exemplos: Abraão “vai até” Hagar (Gn 16,4) e Jacó “vai até” Raquel (29,30). Hagar engravida após o “encontro”. Raquel não engravida porque é estéril.

A única ocorrência do verbo “ir” indicando o movimento de um homem em direção a uma mulher fora do contexto sexual ocorre em Jz 4,22: Baraque “vai até Jael” (uma mulher guerreira), para que ela lhe mostre o corpo de Sísera morto com uma estaca na fronte.

Então que fique claro: no AT, quando um homem “vai até” uma mulher, provavelmente planeja algo além de um encontro casual.

Nota:
[1] É o que sugere, por exemplo, Edson Lopes, em seu "Fundamentos da teologia pastoral" (Mundo Cristão, 2019), citando o "Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento" (Gilchrist, Vida Nova, 1998). 




Jones F. Mendonça

sexta-feira, 13 de julho de 2018

"DAI A CÉSAR": ANACRONISMO OU CONFLAÇÃO?

Lançando mão dos estudos na área da numismática, Matthew Ferguson apresenta uma série de argumentos sugerindo que o dito “Dai a César o que é de César”, atribuído a Jesus (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25), não foi proferido pelo Nazareno. O autor cita, por exemplo, uma monografia sobre administração tributária na Palestina romana de 63 a.C a 70 d.C. (To Caesar What's Caesar's), escrita por Fabian Udoh:
Udoh aponta que um número significativo de denários só é encontrado na Palestina após 69 d.C., particularmente a partir do reinado de Vespasiano. [...] Antes deste tempo, a principal moeda de prata na Palestina (usada para a tributação) era o shekel de Tiro.

Os autores dos Evangelhos do NT teriam sentido a necessidade de abordar a questão do imposto – um tema controverso no ambiente da comunidade cristã primitiva –, colocando nos lábios de Jesus algo que ele realmente nunca disse.

Duas hipóteses: 1) Anacronismo (tempo): Marcos foi redigido num período pós 70, quando moedas cunhadas com o rosto do imperador já eram comuns na Palestina; 2) Conflação (espaço): Marcos foi redigido antes de 70, mas o dito atribuído a Jesus reflete um problema situado fora da Palestina, numa região na qual as moedas mostravam a face do imperador.

Um argumento adicional a favor da hipótese levantada por Udoh é que Paulo não menciona o alegado ensinamento de Jesus a respeito do pagamento de impostos ao defender a prática em Rm 13,6-7: 
É também por isso que pagais os impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desincumbem com zelo do seu ofício. 7 Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido; a taxa a quem é devida; a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida.

Leia mais aqui.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O MANUSCRITO DE ASHKAR-GILSON

Fora os amuletos de Ketef Hinnon (séc. VI ou VII a.C.) e o papiro de Nash (séc. II a.C.), os mais antigos textos da Bíblia hebraica são os manuscritos do Mar Morto (250 a.C. a 68 d.C.), descobertos a partir de 1947 em 11 cavernas na região de Qumran. Cópias de todos os livros da Bíblia Hebraica foram encontrados nessas cavernas, exceto Neemias e Ester.

Versões mais completas da Bíblia hebraica, dotadas de sinais massoréticos (sinais que ajudam na vocalização do texto), foram datados para os séculos X e XI, como o Códice Alepo (mais antiga, porém incompleta = 930 d.C.) e o Códice Leningrado (menos antiga, porém mais completa = 1008 d.C.). A lacuna entre os Manuscritos do Mar Morto e os códices medievais cobre um período de quase mil anos.

Um manuscrito pouco conhecido e pouco citado em obras especializadas é o manuscrito Ashkar-Gilson, adquirido por um negociante de antiguidades de Beirute em 1972. Com base na datação do carbono 14 e na análise peleográfica, o manuscrito foi datado entre os séculos VII e VIII d.C., exatamente na chamada “era silenciosa”, período marcado pela escassez de manuscritos da Bíblia hebraica. 

Embora o fragmento tenha surgido há mais de quatro décadas, foi ignorado pelos estudiosos por muito tempo. Ele exibe o chamado cântico do Mar (Ex 13,19-16,1), redigido com extremo cuidado.  O poema foi copiado em um layout simétrico especial que lembra uma parede de tijolos, com dois espaços em branco nas linhas pares e um espaço em branco nas linhas ímpares. Cada espaço marca o fim de um cólon (uma pequena unidade poética que deve ser cantada em uma só respiração). A importância deste layout reflete-se no fato de que ele é reproduzido em cada rolo de Torah usado nas sinagogas de hoje.

O manuscrito Ashkar-Gilson era a fonte das tradições massoréticas mais tardias e autoritárias? Para conhecer uma resposta para esta e outras questões, leia o artigo completo “Missing Link in Hebrew Bible Formation”, por Paul Sanders, publicado no Journal Hebrew Scriptures.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

QUANDO FOI ESCRITA A BÍBLIA HEBRAICA?

Um estudo chefiado por Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, indica que a alfabetização em Judá na Idade do Ferro (1200-600 a.C.) era mais difundida do que se pensava, sugerindo que os textos bíblicos hebraicos podem ter sido escritos no período pré-exílico (antes de 587 a.C.). 

Leia aqui:

Mas Christopher Rollston, Professor Associado de línguas e literaturas do Semi-Noroeste da Universidade George Washington, diz que é preciso evitar conclusões precipitadas.


Seus argumentos podem ser lidos aqui:


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

AS MIL FACES DE MELQUISEDEQUE

Melquisedeque (="meu rei é justo" ou "Deus da justiça" ou "meu rei é Tzedeq") é uma das figuras mais enigmáticas da Bíblia. Não é preciso ser especialista para perceber que a narrativa foi inserida entre os versos 17 e 21 de Gênesis 14 (Abraão e o rei de Sodoma). Note que o verso 17: “o rei de Sodoma saiu-lhe ao encontro...”, continua no verso 21: “E o rei de Sodoma disse a Abraão...”.

Neste artigo, publicado no The Torah e escrito pelo Rabi Joshua Garroway, a figura de Melquisedeque é investigada na perspectiva da crítica literária, nos Salmos, no cristianismo primitivo (Hebreus), no judaísmo rabínico (Talmude) e em Qumran.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 16 de junho de 2016

TOBIT: JÓ REDIVIVO

Tobit, homem piedoso e justo, após perder seus bens (1,20), sua saúde (2,10) e ouvir de sua esposa: “de que adiantou tua fidelidade” (2,14), lamenta: “melhor é morrer do que viver” (3,6). Isso não lembra Jó? Tem mais: a fé de Jó é provada por Hassatan (1,6-12; 2,1-7); a fé de Tobit é provada pelo anjo Rafael (12,13).

No final do livro, o Tobit já curado de sua enfermidade exclama: 
Bendito seja Deus! Porque ele me havia punido, e de novo se compadeceu de mim, e agora vejo meu filho Tobias! (11,14b-15).
Este final dispensa comentários. Tobit é quase um Jó redivivo.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O EVANGELHO DE MARCOS NA PATRÍSTICA

Trecho do artigo publicado no The Bible and Interpretation, por Michael Kok: 
Quais são as razões para o fato de Marcos ter sido negligenciado [no período patrístico]? Além de suas deficiências gramaticais e estilísticas, Marcos pode ter sido considerado incompleto por ocultar histórias sobre aparições do nascimento e pos-mortem de Jesus, bem como os seus ensinamentos éticos no Sermão do Monte que se tornaram familiares pelos outros evangelhos. Na verdade Mateus reproduz mais de 90 por cento do conteúdo do Marcos, mas também insere um rico material adicional e revisa ou omite um número de passagens que podem ter sido teologicamente problemáticas (Mc 2,21; 3,19b-20; 6,5; 7,19b.32-35; 7,33-34; 8,22-26; 10,18). O procedimento de Lucas é semelhante, embora suas omissões sejam mais extensas (por exemplo, Marcos 6, 45-8, 26), terminando por reproduzir apenas 51 por cento de conteúdo de Marcos. 


Jones F. Mendonça

domingo, 26 de janeiro de 2014

FÉ E HISTÓRIA

Imagem: Tablet.com
Há quem considere perseguição por parte dos historiadores e arqueólogos não religiosos o ceticismo que mantém em relação a historicidade de boa parte da narrativa bíblica. Ocorre que historiadores sempre levam em conta o grau plausibilidade de um relato. Se determinado texto sagrado diz que um homem piedoso iluminou os céus com a chama emanada de seu dedo indicador, o historiador nega. Se o Novo Testamento relata que um profeta de Nazaré caminhou pelas águas de um lago situado na costa Oriental do Mediterrâneo o mesmo historiador nega. O critério deve ser o mesmo para qualquer texto, inclusive os não religiosos.

"Ah" - diz o apologista - "mas ninguém questiona a historicidade da vida de Sócrates, filósofo grego da Antiguidade". É claro que questiona! "Ah" - brada o advogado da doutrina - "mas ninguém duvida que Alexandre, o Grande, foi de fato aquele personagem que está nas linhas dos registros antigos". É claro que duvida! O bom historiador sempre duvida. Aliás, a curiosidade e a dúvida são os motores da ciência. A investigação histórica sempre será um projeto inacabado. Já o dogma...

A fé pertence a uma outra esfera. Trata-se de uma escolha. A plausibilidade pode ser zero, mas o sujeito de fé continua sustentando sua crença mesmo que as evidências mostrem o contrário. “Então você está dizendo que o tal ‘sujeito de fé’ é um louco?”, perguntam-me. Não, louco é quem acha que a investigação histórica pode proporcionar um fundamento à fé e à teologia cristã.

E há muitos loucos por aí. 


Jones F. Mendonça

terça-feira, 11 de setembro de 2012

MOISÉS ESCREVEU O PENTATEUCO?

Moisés com as tábuas da Lei -
Guido Reni (1624).  Até o he-
braico nas tábuas é anacrônico. 
Desde o século XVII, com o advento da crítica bíblica, alguns eruditos perceberam que o Pentateuco não pode ter sido obra de um único autor (na verdade, tal desconfiança é bem mais antiga). Até mesmo leitores menos atentos estranham o relato da morte de Moisés, no final do Deuteronômio. Teria o patriarca escrito o relato de sua própria morte antes de ter expirado no monte Nebo na margem oriental do Jordão? Pouco crível, não acha? Mas não é só isso.

O capítulo 11 de Gênesis narra a saída de Abrão de “Ur dos Caldeus”. Há um anacronismo aí. Ur, na segunda metade do segundo milênio era, talvez, “Ur dos sumérios” e não “Ur dos caldeus”. A expressão “Ur dos caldeus” pressupõe a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja, babilônicos, que só ocorreu no final do século VII a.C. Tal anacronismo mostra que o autor do versículo deve ser situado numa época bem mais recente que a vivida por Moisés. É claro que a presença do anacronismo não constitui prova contra a existência de Moisés ou a uma possível contribuição sua para a obra. Apenas mostra que esse conjunto de livros conheceu um processo redacional. Sempre será possível dizer (mas não provar) que um personagem chamado Moisés foi o autor de um substrato que deu origem ao atual Pentateuco.

Outro anacronismo aparece no capítulo 12 do mesmo livro. O relato diz que após chegar a Canaã Abraão edificou um altar em Siquém e que “nesse tempo os cananeus estavam na terra” (v.6). O texto é contado na perspectiva que alguém que já vivia na terra, obviamente após o assentamento do povo na região. O mesmo tipo de anacronismo ocorre no capítulo 21, ainda no livro de Gênesis: “E morou Abraão na terra dos filisteus por longo tempo”. É bem atestado que os filisteus chegaram à costa de Canaã por volta de 1200 a.C. Ora, se o patriarca viveu na metade do segundo milênio, como pode ter morado na “terra dos filisteus” se eles ainda não haviam migrado para lá? Mas uma vez a perspectiva é a de que já está na terra. Esse redator, lógico, não pode ter sido Moisés.

Além dos anacronismos há ainda outros detalhes que chamam a atenção de um leitor mais cuidadoso. No Pentateuco o nome divino aparece ora como Yahweh, ora como Yahweh Elohim. O monte no qual Moisés recebeu a lei ora aparece como Sinai, ora como Horebe. Jetro, sogro de Moisés, também ganha nomes diferentes ao longo da narrativa. Ainda mais embaraçoso é notar que um mesmo tipo de situação se repete diversas vezes: Abraão mente para o faraó a respeito da condição Sara, sua mulher, apresentada como sua irmã (Gn 12,14-17). O mesmo Abraão mente a respeito da condição de Sara, agora com Abimeleque, rei de Gerara (Gn 20,1-3). Isaque, filho de Abraão, também vai a Gerara e faz o mesmo em relação à Rebeca, sua mulher (Gn 26,1-7). Coincidência? Sim, é possível. Mas entre o possível e o provável há um grande abismo. Penso que tantos problemas requerem uma solução mais plausível.  

Um tipo de duplicação particularmente interessante ocorre em Gn 6 e 7. Acho que é o melhor exemplo que posso apresentar a fim de que o leitor perceba que a obra não pode ser atribuída a um só autor. Em Gn 6,19 Yahweh ordena que Noé coloque na arca “dois animais de cada espécie, um macho e uma fêmea”. Em 7,2, “de todos os animais puros, sete pares, o macho e sua fêmea e apenas um casal dos animais que não são puros”. Como se pode ver, o segundo relato (que conflita com o primeiro) reflete a preocupação do redator em distinguir animais puros dos impuros. Indício de uma intervenção sacerdotal? É o que parece.

Desde Julius Wellhausen os pesquisadores têm buscado apresentar hipóteses que sejam capazes de explicar como o Pentateuco foi formado. Em linhas gerais as hipóteses podem ser reduzidas a três: um escrito básico (relato que foi crescendo ao longo dos séculos por meio de reelaborações e acréscimos), fontes (documentos independentes que foram costurados em determinadas ocasiões até formarem um único bloco) e círculos narrativos (relatos orais com sua própria história de crescimento, que mais tarde ganharam a forma escrita e foram unidos por um redator final). Nenhuma dessas hipóteses é capaz de resolver satisfatoriamente todos os problemas envolvidos na formação do Pentateuco. O processo de formação desse conjunto de livros parece ter sido bem mais complexo do que imaginava Wellhausen.   

Mas a ausência de um modelo que explique satisfatoriamente como se deu a formação do Pentateuco não implica no reconhecimento da autoria mosaica (já vi muita gente fazendo isso, acredite), apenas revelam o quão difícil é reconstruir a história de composição do texto dos primeiros cinco livros da Bíblia. Para finalizar, fica como sugestão de leitura a obra: "Introdução ao Pentateuco", de Louis Jean Ska (Loyola, 2003, 304 páginas). 


Jones F. Mendonça 

terça-feira, 14 de julho de 2009

O QUE SÃO O CODEX SINAITICUS E O CODEX VATICANUS?

Por Jones Mendonça

O Codex Sinaiticus (Códice Sinaítico), também conhecido como Manuscrito “Aleph”, foi encontrado em 1859 por um jovem catedrático da universidade de Leipzig chamado Constantin von Tischendorf. Numa viagem ao Oriente Médio em busca de manuscritos bíblicos ele acabou encontrando no Mosteiro de Santa Catarina, no monte Sinai (Egito), alguns manuscritos antigos identificados como traduções do Antigo Testamento grego (Septuaginta). O codex (espécie de livro costurado à mão) estava escrito em caracteres unciais (letras maiúsculas) e continha a maior parte do Antigo Testamento e o Novo Testamento completo.

Também foram encontrados dois documentos cristãos: a Epístola de Barnabé (antes só existia uma precária tradução em latim) e uma parte do Pastor de Hermas (até então só conhecida pelo título). O manuscrito encontra-se no Museu Britânico de Londres desde 1933. O Codex Sinaiticos data do século IV d.C. e demonstrou ser um dos melhores textos do Novo Testamento.

Um outro manuscrito não menos valioso é o Codex Vaticanus (códice Vaticano). Ele tem esse nome porque foi conservado na biblioteca do Vaticano longe dos olhos dos estudiosos até o ano de 1889, quando finalmente foi publicado um fac-símile de todo o manuscrito. O Codex Vaticanus surgiu pela primeira vez nos catálogos da biblioteca do Vaticano em 1475, permanecendo longe do conhecimento público por cerca de 200 anos. Como o Codex Sinaiticus, o Vaticanus foi produzido no século IV. Alguns eruditos acham que tanto o Codex Vaticanus quanto o Sinaiticus formavam parte das cinqüenta cópias que o imperador Constantino mandou fazer depois de sua conversão ao cristianismo. O Codex Vaticanus contêm o Velho Testamento em grego (com omissões), e o Novo Testamento incompleto [1].

O Sinaiticus e o Vaticanus são apenas dois de cerca de três mil manuscritos até agora conhecidos e catalogados. Apesar da ótima qualidade dos textos não é possível dizer que ambos são cópias fiéis dos textos originais, já que é possível encontrar algumas divergências entre eles.

Dá-se o nome de Crítica textual o estudo nas numerosas variantes verificadas nos manuscritos disponíveis. Alguns cristãos conservadores buscam em vão definir uma versão que possa ser considerada cópia fiel do texto originalmente produzido pelos escritores bíblicos. Tal modo de pensar tem feito com que muitos recusem versões modernas obtidas a partir das pesquisas desenvolvidas pela crítica textual[2]. Isso ocorreu, por exemplo, em relação à publicação da famosa Nova Versão Internacional (NVI), que retirou algumas passagens que vinham sendo publicadas por séculos, apesar da dúvida em relação à sua autenticidade. O problema surgiu porque o primeiro Novo Testamento grego traduzido por Erasmo, em 1516, continha textos que mais tarde foram considerados inautênticos, como, por exemplo 1Jo 5. 7,8. Acontece que Erasmo não possuia o Codex Sinaiticus e nem o Codex Vaticanus. Ele se baseou principalmente em mansucritos do século XII, que agora reconhecemos como bastante inferiores. Erasmo inicialmente se negou a publicar as passagens que não eram encontradas nos manuscritos gregos, mas diante das duras críticas que recebeu, acabou inserindo tais textos na sua publicação. Tais textos eram encontrados apenas em algumas versões latinas disponíveis na época, sendo provavelmente inserções feitas por copistas [3]. Além do texto de João citado acima, outras passagens foram eliminadas por versões modernas, já que não são apoiadas por nenhum testemunho em grego que seja conhecido. A retirada dos textos provocou o protesto de muitos cristãos, mas não há nenhuma razão para alarde, já que a ausência dos referidos textos não implica em nenhuma mudança em relação às doutrinas fundamentais da fé cristã.

Notas:

[1] Faltam quatro capítulos de Hebreus (encerra-se em 9.14), as epístolas Pastorais (dirigidas à Timóteo e a Tito), a carta à Filemon e o Apocalipse.

[2] Joseph Angus faz um comentário sobre a defesa do texto tradicional (chamado de Textus Receptus): “As pretenções superiores do ‘Texto Tradicional’, ou noutras palavras, do Textus Receptus, purificado de algumas pequenas máculas, foram vigorosamente sustentadas pelo erudito Deão de Chichester, Dr J. B. Burgon, e pelo seu partidário e sobrevivente, o Prebendário Mill”. Ainda segundo Angus, o argumento principal utilizado pelos defensores do Textus Receptus foi o de que “o Divino Fundador da Igreja não teria permitido que por tantas gerações fôsse (sic) aceita uma Escritura corrompida”.

[3] A Bíblia de Jerusalém traz o seguinte comentário a respeito do texto de 1Jo 5.7,8: “O texto do vv. 7-8 é acrescido na Vulg. de um inciso [...] ausente dos antigos mss gregos, das antigas versões e dos melhores mss da Vulg., o qual parece ser uma glossa marginal introduzida posteriormente no texto”.

BIBLIOGRAFIA

ANGUS, Joseph. História, doutrina e interpretação da Bíblia – vol I. Tradução de J. Santos Fiqueiredo. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1951.

BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo. Paulus, 2003.

LADD, George E. Critica del Nuevo Testamento. Mundo Hispano, 1990.