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sábado, 28 de junho de 2025

AGOSTINHO E O DISPENSACIONALISMO


1. Por séculos prevaleceu entre os cristãos a percepção de que os judeus eram perseguidos porque carregavam uma espécie de culpa por terem assassinado Jesus Cristo. Essa culpa explicaria as perseguições na Europa Medieval, no período da Reforma, na Alemanha nazista, etc. Mas, no século XVIII nasceu o “restauracionismo”, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento, que incluía o retorno dos judeus à Eretz Israel, à Terra Prometida. Aqui estão as raízes do sionismo cristão.

2. No século XIX essa crença ganhou um modelo sofisticado, conhecido como dispensacionalismo. Para os dispensacionalistas, a história da humanidade, desde Adão, deve ser dividida em sete estágios ou eras, sendo a primeira a “era da inocência” (Adão e Eva) e a última a “era do milênio” (o reinado de Cristo na terra). O mundo atual estaria vivenciando a sexta era, o “tempo da graça”, com início na morte e ressureição de Cristo. A batalha escatológica entre Israel e seus inimigos já estaria acontecendo (O Irã seria "Magog").

3. Mas de onde teria vindo essa ideia de dividir a história do mundo em sete eras? Bem, nesta semana comecei a ler o "Comentário ao Gênesis", escrito por Agostinho de Hipona, famoso teólogo cristão do século IV/V. Para minha surpresa Agostinho já associava os sete dias da criação a “sete idades do mundo”, também começando com Adão e Eva e terminando com o retorno triunfal de Cristo nos céus. Fico pensando se os dispensacionalistas não se inspiraram nas interpretações alegóricas de Agostinho.

4. Você encontra a exposição agostiniana a respeito das sete eras do mundo em “Sobre o Gênesis, Contra os maniqueus”, Livro I, cap XXIII.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O CARNAVAL DE IVETE E O ARMAGEDOM


1. Desde que Cristo deixou fisicamente a terra, diversas questões passaram a ocupar a mente daqueles que se reuniam em seu nome. Duas delas aparecem relacionadas: 1) Qual a razão de sua morte? (Lc 24,20-21), 2) Quando e como voltará? (1Ts 4,13-18). Na tentativa de expor em detalhes a questão n° 2, teólogos das mais diversas épocas se debruçaram sobre livros como Ezequiel, Daniel, Mateus, Tessalonicenses e, obviamente, o Apocalipse.

2. A explicação mais criativa, fantástica e popular é o dispensacionalismo. De acordo com essa visão, um dos mais evidentes sinais de que o mundo caminha para um colapso final é o chamado ARREBATAMENTO: cristãos piedosos de diversas partes do mundo desaparecerão de forma abrupta, resgatados por Cristo, inaugurando na terra um período de sete anos de extrema angústia: a terrível e temida GRANDE TRIBULAÇÃO.

3. No final desses sete anos Jerusalém estará cercada pelos exércitos de Gog e Magog, desencadeando a não menos dramática GUERRA DO ARMAGEDOM. Mas Jerusalém sairá ilesa graças à interferência de Cristo, que sairá em auxílio da Cidade Santa e derrotará o malvado ANTICRISTO. Sentado em um trono, com coroa e tudo, Cristo reinará em Jerusalém por mil anos e a terra experimentará fartura e prosperidade. Tudo perfeito, como naquelas ilustrações das Testemunhas de Jeová.

4. Mas... como nos filmes da Marvel, é preciso estar atento às cenas pós-crédito. Inesperadamente, para surpresa dos telespectadores, ou melhor, dos sobreviventes do Armagedom, no ano 1000 o Capiroto lançará seu último bote. Ocorre que o roteiro foi tornado público (tem spoiler), então todos sabem que o Zarapelho será derrotado e lançado definitivamente no lago de fogo ardente juntamente com a Besta e o Falso Profeta (Ap 20,10).

5. Bem, com essa coisa de guerra entre Israel e Hamas, conflito na Ucrânia, Houthis no Yêmen, China ameaçando Taiwan e alertas sobre os perigos da inteligência artificial, os dispensacionalistas estão em polvorosa. Em pleno festejo de carnaval, Baby do Brasil disparou: “o arrebatamento tem tudo para acontecer entre cinco e dez anos” (Puxa, assim tão rápido nem vou conseguir comprar meu primeiro carro elétrico).

6. Mas nem tudo está perdido. Ivete, que não leva desaforo pra casa, disse que vai macetar o Apocalipse. Se entendi bem, a moça vai pedir uma prorrogação de prazo ao Altíssimo.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de março de 2023

SOBRE O JEJUM DE DANIEL

1. Muita gente se pergunta a respeito das razões que levaram o autor do livro de Daniel a registrar a rejeição dos judaítas empregados na corte babilônica às “iguarias do rei” (1,8). Seriam esses alimentos oferecidos a divindade locais? A abstenção visava evitar o luxo e demonstrar humildade? Uma dieta de legumes é mais saudável? Seria Daniel um vegetariano ou vegano? Nada disso. A razão é outra.

2. O episódio tem finalidade didática, e é destinado às comunidades judaicas da diáspora, expostas diariamente aos costumes estrangeiros, vistos como uma ameaça à sua fé e às suas tradições. Veja que Daniel rejeita alimentos de origem animal, mas aceita alimentos “semeados” (זרע; “legumes” não é uma boa tradução), ou seja, tudo o que vem da terra (exceto o vinho, cf. 1,8), como frutas, legumes, verduras, azeite e cereais.

3. O profeta aparece como modelo de como se portar em terras estrangeiras no que diz respeito à dieta judaica, baseada em um conjunto de regras alimentares estabelecidas pela tradição (Torah/Talmud). Assim, fez opção por uma alimentação especial, atualmente chamada de kosher. As regras preveem uma série de restrições relacionadas aos alimentos de origem animal e ao vinho, mas poucas em relação aos frutos da terra.

4. Legumes, frutas, verduras e cereais precisavam passar por um exame relativamente simples: deveriam ser bem lavados para e evitar a ingestão de pequenos moluscos e insetos. Assim, o texto quer enfatizar que o vigor de Daniel e de seus companheiros (cf. 1,15) vem da fidelidade a seu Deus, e não dos alimentos em si. A Lei judaica jamais proibiu o consumo de carne ou de vinho.

5. Talvez você não saiba, mas atualmente existe até telefone kosher e um KosherTube!




Jones F. Mendonça

quarta-feira, 6 de julho de 2022

DANIEL E APOCALIPSE EM CINCO PONTOS

1. O livro de Daniel, em seu capítulo 7, expõe ao leitor uma visão que descreve quatro bestas-feras subindo do mar (7,2). A primeira é um leão alado (v. 4), a segunda um urso (v. 5), a terceira um leopardo alado de quatro cabeças (v. 6) e a última um animal não identificado, dotado de dentes de ferro e dez chifres (v. 7). Essas quatro bestas representam reis/reinos (v. 17 e 23) que se sucedem e que serão derrotados não por uma fera selvagem, mas por alguém “semelhante ao filho do homem” (bar enash), cujo império será eterno.

2. Vale destacar que bar enash aqui não é título messiânico. A expressão é empregada para estabelecer contraste entre o aspecto animalesco dos quatro reinos e o quinto, que tem forma humana. O capítulo 2 apresenta uma mensagem semelhante. Mas desta vez os reinos malignos são representados por uma estátua erguida com materiais diferentes (ouro, prata, bronze, ferro e ferro misturado com argila), que são destronados não por alguém “semelhante ao filho do homem”, mas por uma pedra. “Pedra” e “filho do homem” representam, cada qual a seu modo, o estabelecimento do reino do ‘illay (עלי), o Altíssimo.

3. O Apocalipse retoma o uso de bestas-feras como representação de reinos malignos. Note, no entanto, que ela é uma fusão de três das feras mencionadas em Daniel: “A Besta que eu via parecia um leopardo: seus pés, contudo, eram como os de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão” (13,2). A mensagem é clara: a besta que agora se manifesta é ainda mais terrível que aquela mencionada em Daniel. O Apocalipse relê e atualiza antigas tradições, algo bem costumeiro no ambiente religioso judaico.

4. Mas ao atualizar textos antigos, o autor do Apocalipse incorpora elementos novos. Veja que o Dragão, a besta-fera e o falso profeta desempenham o papel de uma espécie de “trindade maligna”. A besta até simula uma ressurreição (13,12). Outro recurso utilizado para imitar Deus é o estabelecimento de uma marca nos escolhidos, feita na mão direita ou na fronte (13,16). Em Dt 11,18 os israelitas são convidados a atar a palavra divina como um sinal na mão e na testa. Em Ez 9,4 os moradores de Jerusalém que têm um sinal (tav) na testa são poupados da lâmina afiada do exterminador.

5. Alguém inventou que o tal do “sinal” é um microchip, ou quem sabe um cartão de crédito ou uma tecnologia que está para surgir. Mas o Apocalipse está apenas fazendo alusões às Antigas Escrituras. O que ele quer dizer é: O Dragão, a besta-fera e o falso profeta querem imitar Deus. Simulam uma “trindade”. Irão, como Deus, “marcar” seus escolhidos. A mensagem implícita é a mesma de Mt 24,24: os falsos cristos e falsos profetas são dissimulados a ponto de quase enganarem até mesmo os escolhidos.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 14 de junho de 2022

JUNG, JÓ E O APOCALIPSE DE JOÃO

1. Tenho na minha estante um livreto escrito por Carl Jung – famoso discípulo de Freud – sobre o livro bíblico de Jó. Ganhei de presente de uma pessoa desconhecida (um tipo de experiência que Jung adorava). O trabalho recebeu o título de “Resposta a Jó” e foi publicado no Brasil pela Editora Vozes. Já nas primeiras páginas Jung explica que não pretende fazer uma exegese fria e pormenorizada do livro de Jó, mas expressar “uma reação subjetiva” ao conteúdo da obra.

2. Embora considere útil a leitura de “Resposta a Jó” para quem lida com a Bíblia de maneira acadêmica, acho que em alguns momentos Jung faz interpretações muito equivocadas. Expus uma crítica ao livro a um grupo de junguianos e recebi um tratamento bastante hostil. Há fanáticos em todo o canto. Bem, mas com um pouco de paciência em meio a tantas divagações, cheguei ao capítulo XIII, parte do livro que trata sobre a representação da “imagem de Deus” no Apocalipse.

3. Esta parte da obra é por demais interessante. Isso porque Jung domina muito bem o contexto religioso do período no qual foi escrito o Apocalipse e também porque é um leitor atento, perspicaz. Ele chama a atenção, por exemplo, para a releitura que o Apocalipse faz do trono divino descrito em Ezequiel, que agora aparece adornado apenas com “matérias que pertencem à natureza inorgânica”. O trono é assustador como em Ezequiel, mas muito mais estranho e frio. Por que?

4. Jung também dá destaque ao contraste tão presente no livro entre o “Cristo manso cordeiro que se deixa levar ao matadouro” e o “Cristo belicoso e iracundo”, “Filho da vingança”, “cujo furor pode agora desencadear-se livremente”. Ele recorre a conceitos como o da “sombra”, do “arquétipo” e do “numinoso” para expor ao leitor uma interpretação psicológica do autor do Apocalipse. Antecipo que não faz um julgamento bom. Fala, por exemplo, em "sentimentos negativos longamente represados, que observamos com frequência naqueles que anseiam por ser perfeitos".


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 20 de março de 2020

ARTE, PANDEMIA E EXEGESE


Em tempos de guerra, recessão econômica, catástrofes naturais ou epidemias, os artistas sempre encontraram uma maneira de expressar suas angústias, medos e frustrações. Nesta tela (A Guerra, 1896), o artista suíço Arnold Böcklin retrata os quatro cavaleiros mencionados no capítulo 6 do livro do Apocalipse. A imagem foi tomada do profeta Zacarias (1,8), que diz ter visto, em sonho noturno, cavalos coloridos posicionados num vale profundo.

De acordo com o texto, os cavalos/cavaleiros são emissários do Anjo de Javé, encarregados de percorrer e observar a terra*. Javé revela-se irado após tomar conhecimento da paz vivida pelas nações em contraste com o abandono de Jerusalém. Mas o texto não fala em punição para essas nações. Indignado, Javé anuncia a reconstrução de Jerusalém e a restauração de seu Templo, ocorrida em 515 a.C.

O Apocalipse dá novo significado à imagem dos cavalos/cavaleiros. Eles aparecem agora como instrumentos da ira de javé contra seus inimigos. O Apocalipse, aliás, é mestre em ressignificações. Usa a seu modo passagens de Daniel, Ezequiel, Isaías e Jeremias para compor um cenário de terror e angústia, mas também de fé e de esperança.

* “Terra”, em hebraico “eretz”, tem aqui o sentido de “nações”, algo raro, senão único. O termo, sem complemento, geralmente indica a “Terra de Israel”.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

OS CORPOS NO JUÍZO FINAL


As duas imagens revelam impressões do imaginário cristão a respeito da ressurreição no dia do juízo final. A da esquerda ilustra um manuscrito do século XV. A da direita, obra de Luca Signorelli, é do século XVI. Embora os elementos sejam os mesmos (anjos, trombetas, corpos ressurretos), as mudanças na representação do corpo, a partir da influência do Renascimento, são muito nítidas.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

O JUÍZO FINAL E O LIVRO DA VIDA (E DA MORTE)


Este macabro painel, de Jacobello Alberegno (século XIV), mostra a ressurreição do corpo no dia do juízo final tal como expressa em Ap 20. As obras que cada um realizou estão registradas nos livros (nas mãos dos esqueletos). Os da esquerda (livros pretos) são os condenados. Os da direita (livros vermelhos), os redimidos.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 28 de março de 2018

A PERSONIFICAÇÃO DA SABEDORIA DIVINA NOS GATHAS IRANIANOS

Investigo o recurso literário da personificação da sabedoria (hokhmah), fenômeno que aparece em Provérbios 1-9, em Jó 28, na Sirácida 24, na Sabedoria de Salomão 7; 18, em Baruc 3 e numa interpolação presente no capítulo 42 do livro apócrifo de Enoque etíope. Interessa-me a origem desse recurso e sua relação com o prólogo do evangelho de João.

Há quem sugira uma influência egípcia (Isis, Maat), canaanita (Asherah) ou mesopotâmica (Astarte, Innana). Mas não encontrei textos religiosos produzidos por tais povos capazes de justificar qualquer orientação nesse sentido (você pode consultar uma coleção deles num trabalho organizado por James Pritchard em “Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament”).

W. Bousset indicou um caminho diferente: o Irã. De forma mais específica, a personificação de um atributo divino estaria presente nos Gathas, poemas atribuídos a Zaratustra (profeta persa do século VII a.C.). Nos Gathas o “Espírito Benevolente” (Spenta Mainyu) emana do “Senhor da Sabedoria” (Ahura Mazda) e opera em todos os aspectos da existência. Ele age nos homens, instruindo-os.

O problema é que esses textos foram transmitidos de forma oral por séculos, até ganharem a forma escrita (como saber se os textos não foram contaminados com outras crenças?). Outro problema é a tradução (foi escrito em dialeto gáthico, idioma de difícil tradução). Ainda assim penso que seja uma boa pista.

É possível ler 17 capítulos dos Gathas no Zaratustra.com (a tradução para o inglês é obra de Mobou Firouz Azargoshasb). Leia sobre os Spenta Mainyu nos Gathas aqui.  Sobre possíveis conexões entre o zoroastrismo e a Bíblia Hebraica aqui e uma introdução aos Gathas e a tradução de 17 capítulos para o inglês aqui.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 7 de novembro de 2017

PODERES CELESTES, PODERES TERRESTRES

Neste artigo, publicado no Jewish Link, Mitchel First discute a respeito do que ele chama de “o parágrafo perdido do livro de Samuel”.

Nos textos hebraicos mais recentes (massoréticos, século X e XI d.C.), o início de 1Sm 11 aparece de uma maneira; nos manuscritos mais antigos (Manuscritos do Mar Morto, séc. III a.C. a I d.C.) o texto aparece de outra forma.

Outra famosa diferença entre o texto massorético e os Manuscritos do Mar Morto (MMM) aparece em Dt 32,8. No texto massorético Javé fixa as fronteiras para os povos segundo “os filhos de Israel”. Nos MMM elas são fixadas segundo “os filhos de Elohim” (“filhos dos deuses”).

A crença na existência de poderes celestes associados a nações reaparece em Dn 10,13: 
Tenho de voltar para combater o Príncipe da Pérsia: quando eu tiver partido, deverá vir o Príncipe de Javã (=Grécia).


Jones F. Mendonça

terça-feira, 25 de julho de 2017

VALE DE HINOM, LIXÃO DE JERUSALÉM?


“A geena [forma grega para ge-hinom = vale de Hinom] é um lugar repugnante, em que se lançam sujeira e cadáveres, e nos quais os incêndios ardem perpetuamente para consumir a imundície e os ossos. Em consequência, por analogia, o julgamento dos ímpios é chamado de 'Geena'”.
Esta observação, feita no século XII d.C. pelo rabino David Kimhi, deu origem ao mito que sustenta ter existido no vale de Hinom uma espécie de depósito de lixo, usado por Jesus como metáfora para o castigo eterno destinado aos ímpios (Mt 10,28).

Mas a descrição é do século XII. Quem garante que no século primeiro o depósito já existia? Na verdade não há qualquer evidência literária ou arqueológica capaz de confirmar a existência do tal depósito de lixo.

O uso do vale de Hinom como metáfora para o castigo reservado aos ímpios vem dos profetas bíblicos: Jr 7,31-32; Is 30,33 e 66,24 (cf. 2Rs 23,10). O resto é conversa fiada (até que se prove o contrário).



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

MESSIANISMO NO ANTIGO EGITO

Então um rei virá,
Pertencendo ao sul, Ameni, o triunfante, será seu nome.
Ele é o filho de uma mulher da Núbia,
Ele nasceu no Alto Egito… .
Rejubilem-se, povo de seu tempo!
O filho de um homem fará seu nome durar para todo o sempre.
Aqueles que se inclinam para o mal e que tramam revoltas vão abaixar suas vozes por medo dele.
Os Asiáticos cairão perante sua espada, e os Líbios cairão perante sua chama.
Os rebeldes pertencem a sua ira, e os traidores, a seu assombro.

“Profecias de Neferrohu”, do princípio do reino de Amenemhet I (2000-1970 a.C.), Pritchard (ed.), Ancient Near Eastern Texts, 445-446.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

UTOPIAS

"Na terra de Dilmun", diz um mito sumeriano do II milênio a.C. "o leão não mata e o lobo não rouba a ovelha". Lembra Is 11,6.



Jones F. Mendonça

sábado, 23 de janeiro de 2016

FRAGMENTOS ESCATOLÓGICOS: CONSELHEIRO E TOURO SENTADO


Massacre de Wounted Knee
A proclamação da República, em 1889, foi vista por Antônio Conselheiro como a encarnação do próprio Anticristo. Em suas palavras: “o Satanás trouxe a República [mas] Belos Montes será o campo de Jesus... Os republicanos não devem ser poupados, pois são todos do Anticristo”. Como sabemos o movimento de resistência liderado por Conselheiro foi sufocado pelo governo na famosa “guerra” (ou massacre?) de Canudos.

Os Estados Unidos conheceram um fenômeno de resistência semelhante. Tudo começou com a crescente influência de um movimento religioso chamado “Ghost dance” (dança fantasma) entre os índios Sioux na Reserva Indígena de Pine Ridge (Dakota). Os nativos começaram a achar que suas seguidas derrotas para as tropas americanas deviam-se ao abandono dos costumes tradicionais. A solução: a rejeição dos costumes dos brancos e a luta armada. Acreditavam que em seguida os deuses criariam um mundo novo, o “paraíso das manadas de búfalos”. Mas a resistência sioux não acabou bem: Touro Sentado (visto como o líder da seita) foi morto e as tropas do governo massacraram os índios da reserva de Wounded Knee.

Esses dois movimentos estão repletos de pontos em comum: 1) fundamentação religiosa, 2) explicação do sofrimento a partir da ameaça da mudança dos costumes, 3) extermínio do inimigo para preservar os valores tradicionais, 4) anúncio da chegada de um reino escatológico, 5) florescimento na virada do século (final do século XIX). Minha pergunta: teria a religião sioux recebido influência do milenarismo cristão dos colonizadores (neste caso a virada do milênio teria desempenhado um papel importante) ou não há qualquer relação entre os dois fenômenos?


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A “LUA DE SANGUE”, O TALMUDE E O FIM DO MUNDO

Na madrugada de anteontem (14/15 abr) boa parte do mundo pôde contemplar a “lua de sangue”, fenômeno que irá se repetir ao longo de dois anos, formando uma tétrade que no atual ciclo coincide com os feriados judaicos da Páscoa e Tabernáculos (2014/15). 

Para alguns, trata-se apenas de mais um belíssimo fenômeno astronômico que pode ocasionalmente coincidir com festas judaicas simplesmente porque essas celebrações geralmente ocorrem em dias de lua cheia, quando também há eclipses (ver: Salmo 81,2-5; Sirácida 43,6). Para outros o aparecimento da lua escarlate sinaliza o fim dos tempos, como sugere este texto do Talmude:    
Nossos rabinos ensinaram: Quando o sol está em eclipse, é um mau presságio para os idólatras; quando a lua está em eclipse, é um mau presságio para Israel [...]. Se a sua face está vermelha como o sangue, a espada está chegando ao mundo (Talmude Soncino, Sucá 29a).

A “Lua de sangue” também aparece nos livros bíblicos do profeta Joel e do Apocalipse. 
“O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia de Yahweh” (Joel 2,31);
“e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua toda tornou-se como sangue” (Ap 6,12). 

Está com “medinho”?

Leia o trecho do Talmude aqui:



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 7 de abril de 2014

GNOSE E CABALA NO NOÉ DE DARREN ARONOFSKY

Muita gente estranhou a cena do filme Noé que retrata Adão e Eva em corpos resplandecentes. Vejamos:

Irineu expondo a doutrina dos gnósticos, em “Contra as Heresias”, século II d.C.:

Adão e Eva, no princípio, tinham corpos leves, luminosos, como que espirituais, porque é assim que foram criados... [então] descobriram que estavam nus e que tinham corpos materiais, conheceram que traziam em si a morte e se tornaram pacientes, sabendo que este corpo os envolvia temporariamente (Contra as Heresias, I, 30,9).
Zohar ou Livro do Esplendor, século XIII d.C.:
Quando Adão morava no jardim do Éden, estava coberto por uma veste celestial, que é a veste de luz celestial [...] luz daquela luz, que era usada no jardim do Éden (Zohar, II, 229.b.).
Não parece estranho se pensarmos que o diretor produziu o filme bebendo em fontes pouco ortodoxas. 

Se o diretor quisesse retratar o nascimento de Noé, poderia muito bem ter se inspirado no livro apócrifo de Enoque (século II a.C.): 
seu corpo era branco como a neve e vermelho como uma rosa, os cabelos de sua cabeça eram como a lã e os seus olhos como os raios de sol (I Hen 106,2).
O texto lembra a descrição de Jesus em Ap 1,14. Mas foi escrito quase três séculos antes...



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO ESCATOLÓGICA DE ISAÍAS 24-27

De todos os livros classificados como proféticos, quatro merecem uma atenção especial uma vez que são considerados os primeiros profetas escritores: Isaias, Amós, Oseias e Miqueias.  Os quatro exerceram sua atividade no século VIII a.C., um período marcado pela prosperidade no reino do Norte governado por Jeroboão II. É forte a ênfase desses profetas nos problemas sociais provocados pela concentração da riqueza nas mãos da classe dirigente.

Mas na leitura e interpretação desses livros devem ser levados em conta os acréscimos e interpolações feitas em épocas tardias. O livro de Isaías, por exemplo, tem sido dividido em três partes, elaboradas, no mínimo, por três autores: Proto-isaías (pré-exílico, Is 1-39), Dêutero-Isaías (exílio, Isa 40-55) e Trito-Isaías (pós-exílico, Is 56-66). Há várias pistas que depõem a favor dessa distinção, mas quero me concentrar nos acréscimos e interpolações tomando como referência os vestígios da presença de um pensamento escatológico mais evoluído em textos erroneamente atribuídos ao Proto-Isaías. O trecho em questão: Is 24-27 (chamado de "'apocalipse' de Isaías"). Ainda que estejam inseridos no bloco atribuído ao Proto-Isaías, tais capítulos se enquadram muito melhor no período pós-exílico.

A descrição de uma ruína cósmica em Is 24 (“castigará os exércitos do alto nas alturas, e os reis da terra sobre a terra”, cf. 24,21), o uso de símbolos mitológicos (“com sua espada severa... castigará o Leviatã”, cf. 27,1), o universalismo (“o Senhor dos exércitos dará neste monte a todos os povos um banquete”, cf. 25,6), a crença na ressurreição (“os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão”, cf. 26,19) e o forte desejo por um futuro radicalmente diferente, expresso na esperança de que Deus fará “desaparecer a morte para sempre” (25,7) e que vai “enxugar as lágrimas em todos os rostos” (25,8), refletem o desespero diante da decadência da comunidade pós-exílica.

Além de todos esses elementos, tipicamente presentes em textos pós-exílicos, outro indício bem forte da composição tardia do texto é Is 27,12:
Naquele dia o Senhor padejará o seu trigo desde as correntes do Rio [Eufrates], até o ribeiro do Egito e vocês, israelitas, serão ajuntados um a um”.
O texto supõe uma diáspora dos israelitas, referência a parte do povo que se fixou principalmente na Mesopotâmia e no Egito após a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor em 587 a.C. A datação do texto, portanto, deve ser situada, no mínimo, para o período o exílio (587-537).

Há dois textos que merecem uma investigação melhor. O primeiro, particularmente curioso, aparece em 24,21:
Naquele dia Yahweh visitará o exército do alto nas alturas, e os reis da terra sobre a terra. E serão ajuntados como presos numa cova, e serão encerrados num cárcere; e serão punidos depois de muitos dias”.
Há quem pense que “exército do alto” (tzeba hamarom) seja uma referência aos “falsos deuses”, mas nessa época o henotismo já havia sido superado pelo monoteísmo. Talvez seja apenas um elemento mitológico tomado das nações vizinhas, como em Is 14. O texto pode ter sido utilizado como matriz para o desenvolvimento da crença nos “anjos caídos”, cuja história é contada em detalhes no livro apócrifo de 1Enoque (II séc. a.C.) e repetida em livros canônicos como Judas (6,7) e Apocalipse (12,7-9).  

O segundo texto é o que fala da ressurreição dos mortos (26,19).
Os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão; despertai e exultai, vós que habitais no pó; porque o teu orvalho é orvalho de luz, e sobre a terra das sombras fá-lo-ás cair.
É possível que a referência aí seja ao crescimento numérico do povo de Israel, abalado pela dramática experiência do exílio. “Ressuscitar” (qutz), nesse sentido, seria uma metáfora poética, como na visão de Ez 37. Mas se levarmos em conta os textos do Trito-Isaías, sua ênfase na renovação radical do mundo (65,17), e a longevidade restituída aos israelitas, tal como experimentada pelos antigos patriarcas (“quem morrer aos cem anos ainda será jovem” e “terá vida longa como as árvores”, cf. 65,20-22), parece-me mais provável pensar, considerando ainda a presença de tantos elementos de uma teologia tardia, na hipótese de que se trata mesmo de uma referência à ressurreição dos mortos tal como aparecem nos livros de Daniel (12,1-3) e I Enoque (51). Caso seja esta a interpretação correta, será preciso deslocar a redação do texto para o II século a.C. Neste caso Is 24-27 constituiria uma obra à parte do Proto-Isaías, Dêutero-Isaías e Trito-Isaías.  


Jones F. Mendonça


terça-feira, 26 de março de 2013

O MESSIAS RÉGIO E O MESSIAS SACERDOTAL

Após a morte do davidida Zorobabel (neto de Jeconias, tido como o “anel de selar” em Ag 2.23) a figura do sacerdote foi ganhando cada vez mais proeminência. Sua não coroação e a conseqüente não concretização do tempo escatológico parece ter impulsionado um retoque no texto original de Zc 6,9-14, que substitui o descendente de Davi por Josué, o sacerdote. Nesse ambiente de expectativa escatológica frustrada surgiu a crença em dois messias. O primeiro viria de uma linhagem sacerdotal (messias de Aarão). O segundo seria um descendente de Davi (messias davídico).

Numa refeição comum mencionada em 1QSa 2,11-22 fica evidente a esperança de dois messias. Aliás, o texto deixa claro que o sacerdote desempenha um papel superior ao do messias davídico:
E [quando eles] estiverem juntos [à mes]a [ou para beber o vinho no]vo e (quando) a mesa estiver preparada e [o] vinho novo for [misturado] para beber, [nin]guém deverá [estender] a mão para as primícias do pão e [o vinho novo] antes do sacerdote; pois [ele é quem vai ab]ençoar as primícias do pão e o vinho nov[o e estenderá] a mão para o pão primeiro. Depois di[sso], o Messias de Israel [estender]á a mão para o pão (FITZMYER, 1997, p. 89).
Algumas diferenças entre o TM (texto massorético – séc. X d.C.) e os MMM (Manuscritos do Mar Morto – séc. I a.C.) parecem sugerir que o profeta Malaquias (Ml 3,1-2) também alimentava a expectativa por dois messias: o adonai e o mensageiro. Compare:

Há quem pense (Cf. TABOR, 2006, p. 165) que essa esperança, mantida viva pela comunidade de Qumran, teria sido lançada sobre a figura de João Batista (apresentado como sacerdote da tribo de Levi) e Jesus (tido como descendente de Davi da tribo de Judá). A separação entre as duas figuras (João – “movimento judaico” x Jesus – “movimento cristão”) teria sido feita mais tarde pela comunidade cristã.

Ao que aparece a tradição de um messias sacerdote deixou marcas bem visíveis no livro de Hebreus, que declara que Jesus é sacerdote da linhagem de Melquisedeque, ou seja, é sacerdote por unção divina direta e não por linhagem, da mesma forma que o rei-sacerdote jebuseu. Diz-nos ainda o autor de Hebreus: “sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9,22). Jesus é visto como o cordeiro que entrega sua vida num sacrifício substitutivo. Mas a ideia de que Jesus tinha que morrer traz muitos problemas. Anselmo de Cantuária que o diga. 

Nas teologias sistemáticas o tema escatologia é apresentado como se houvesse coesão entre os diversos textos. Surgem, por exemplo, “modelos escatológicos”, como o amilenismo, pré-milenismo e pós-milenismo. Em minha opinião faz mais sentido pensar que a esperança messiânica foi sendo moldada de acordo com o contexto no qual estava inserida a população israelita. Então o que sobra? Só a esperança. Nada mais.


Jones F. Mendonça

domingo, 17 de março de 2013

MILENARISMOS

Cena da mitologia persa
Faço buscas sobre movimentos milenaristas. Acabei encontrando, por acaso, o Center of Millennial Studies, da Universidade de Boston. Definição do centro de estudos presente no site: 
O Centro de Estudos do Milênio (CEM), um centro de pesquisa sem fins lucrativos baseado na Universidade de Boston, com filiais em todo o mundo, é o maior centro mundial de pesquisa acadêmica dedicada a estudos milenares. Composto por acadêmicos, pesquisadores independentes, estudantes de graduação e outros, o CEM fornece uma importante ligação entre amplas disciplinas e o crescente interesse popular em atividades milenares e apocalípticas.




Jones F. Mendonça 




sábado, 16 de março de 2013

O MILENARISMO E OS PERSAS

Em muitos livros sobre escatologia é dito que o apocaliptismo recebeu forte influência da religião persa (o dualismo, a divisão do mundo em eras, o milênio, etc.). Infelizmente poucos deles citam textos sagrados  (fontes primárias) da religião zoroástrica, tais como o Avesta. Ainda que partes do livro remontem ao final da Idade Média, também incorporam mitos pagãos mais antigos, que reaparecem no Shahnama ("Livro do Reis"), concluído por volta do ano 1010 d.C. Como sou um sujeito desconfiado, saí atrás de citações do Avesta. Encontrei algumas no livro: "Mitos Persas", de Vesta Sarkhosh Curtis, diretora de Iran, revista inglesa publicada pelo Instituto Britânico de Estudos Persas.  

Ainda estou dando uma boa olhada no livro. Encontrei uma referência a um reinado de mil anos, mas, neste caso, uma reinado maléfico: 

Zahhak se sentó en el trono mil años.
obedecido por todo el mundo. Durante tan largo tiempo
las sabias costumbres estuvieran en desuso...
Las virtudes eram despreciadas, la magia negra estimulada,
la justicia perdida en la noche, el desastre manifiesto (I, v. 35).

Como utilizo o Blog como um grande arquivo, fica o registro. 

Ah, você também pode consultar textos do Avesta no Gutenberg Project


Jones F. Mendonça