domingo, 29 de setembro de 2024

SEXO E TROCADILHOS


1. De acordo com o capítulo 30 do Gênesis, Raquel e Lia deram filhos a Jacó por meio de duas concubinas, Bilhah e Zilpah. Quem lê a Bíblia em idioma diferente do hebraico não percebe que os nomes das crianças aparecem relacionados a experiências pessoais vivenciadas por Raquel e Lia. Preste bastante atenção.

2. Quando Bilhah (בלהה) concebe, diz-nos o texto (cf 30,6), Raquel celebra com alegria dizendo assim: “ele se chamará DAN porque Deus me fez DANaniy (justiça). No verso seguinte Bilhah concebe de novo e Raquel dá à criança um nome cuja grafia se assemelha à palavra “luta”. veja: “ele se chamará NAFTALI, pois as NAFTULey (lutas) de Deus lutei contra minha irmã”.

3. O texto passa em seguida a apresentar os nascimentos dos filhos de Zilpah, concubina de Lia. O mesmo padrão se repete. A mãe do menino dá à luz e Lia faz festa: “entrou GAD (sorte), por isso o chamou GAD” (Não escrevi errado, o texto diz “entrou” e não “estou”). Bem, Zilpah tem então um segundo filho e Lia mais uma vez nomeia a criança: “ele se chamará ASHER, pois ISHRuniy (feliz)...”.

4. Asher e Ishruniy podem parecer palavras bem diferentes, mas o hebraico não possui vogais. Ambas as palavras são grafadas com as consoantes alef (א) + shin (שׂ) + resh (ר). Assim, ao que parece a ideia era associar o nome da criança a uma palavra grafada com consoantes de mesma raiz e não necessariamente à uma palavra com mesma sonoridade fonética.

5. Em tempo: "entrou sorte" pode ter conotação sexual, porque o verbo "entrar" (בוא) aparece muitas vezes relacionado à entrada dos noivos na tenda para fazerem aquilo que os noivos fazem na noite de núpcias. Será que a ideia é dizer que a "entrada" foi afortunada? Não tenho certeza, mas é questão para se investigar.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O RELATO DA CRIAÇÃO E A IDEOLOGIA REAL ASSÍRIA

1. Leio “The Story of Paradise in the Light of Mesopotamian”, escrito por Arie van der Kooij. O autor defende que a condenação dirigida ao primeiro homem e à primeira mulher por terem comido da “árvore do bem e do mal” (ou “do certo e do errado”), funciona como crítica à ideologia real dos reis mesopotâmicos, particularmente dos assírios. Quer saber de onde ele tirou isso? Explico.

2. Kooij nota que a capacidade de “distinguir entre o bem e o mal” é um atributo real, tal como indica 2Sm 14,17: “o rei [referindo-se a Davi], meu senhor, é como um anjo de Deus, capaz de discernir entre bem e mal”. Aqui, ele destaca, essa capacidade é apresentada como algo positivo. Ora, se é assim, porque Gênesis condenaria uma dádiva tão nobre, tão necessária?

3. Ocorre que há textos na Bíblia Hebraica que criticam essa “capacidade”, vista como reflexo de uma postura arrogante e destrutiva. No livro do profeta Isaías, por exemplo, o rei assírio se gaba de oprimir as nações “com a força de suas mãos”, uma vez que possui “sabedoria e entendimento”. Em seguida vem o alerta: “seu coração é arrogante e soberbo” (Is 10,12-13).

4. É claro que o autor sustenta sua tese com outros argumentos, não mencionados nos pontos 1-3 deste post. O artigo completo, escrito por Kooij, pode ser encontrado na seguinte obra: DELL, Katharine J; DAVIES, Graham; VON KOH, Yee (Edit.). Genesis, Isaiah and Psalms: a festschrift to honour Professor John Emerson for his eightieth birthday. Leiden/Boston: Brill, 2010, pp. 3-22.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A BÍBLIA COMO ELA É

1. Um leitor atento percebe com facilidade que muitos dos livros que compõem a Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) não são obra de um único autor, mas o resultado de um longo e complexo processo redacional. Vejamos o caso do Deuteronômio. No capítulo 34, último do livro, lemos assim: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés” (34,10). É óbvio que quem escreveu esse verso não foi o próprio Moisés. O texto fala de alguém do passado e foi redigido em terceira pessoa.

2. Logo no início do livro de Eclesiastes o leitor é informado a respeito do autor do texto: “palavras de Qohélet (Pregador ou Sábio, em algumas versões), filho de Davi, rei em Jerusalém” (1,1). Não é difícil notar que este verso veio da mão de um editor, interessado em retransmitir aos leitores as tais “palavras de Qohélet”. No final do livro (12,90), este mesmo editor ainda diz: “Além de ter sido sábio, Qohélet também ensinou o conhecimento...”.

3. Agora vejamos o Livro do Profeta Jeremias. Logo no primeiro verso do capítulo 1 um editor deixa claro que pretende expor as “palavras de Jeremias, filho de Helcias”. No v. 2 ele situa essas palavras no tempo: “nos dias de Josias...”. E acrescenta, no v. 3: “além disso, nos dias de Joaquim...”. Apenas no v. 4 o texto é redigido em primeira pessoa: “a palavra de Yahweh me foi dirigida nos seguintes termos”.

4. E o que dizer a respeito da autoria do livro de Provérbios "de Salomão". Veja que os capítulos 30 e 31 são atribuídos a indivíduos estrangeiros, como "Agur, filho de Jaces" (30,1) e "Lamuel, rei de Massá"(31,1). O mesmo ocorre com os Salmos, que recebem títulos relacionados a pessoas diferentes: Davi, Salomão, Asaf, Moisés, Hemã, os filhos de Coré. Mas a tradição gosta de repetir "Salmos de Davi". Somos sempre tentados a atribuir tradições que consideramos valiosas a figuras especiais.

5. Quando o texto é analisado mais de perto, com as ferramentas do método histórico-crítico, percebemos que ele é formado por muito mais camadas. Isso acontece porque na tradição literária dos antigos israelitas era comum reler e reinterpretar o texto à luz de novas situações. Os responsáveis pela produção do texto não eram historiadores, interessados em reproduzir friamente os fatos. Pretendiam, ao contrário, exercer o ofício de intérpretes da realidade, que era exercido não com as lentes da razão, mas com os olhos da fé sobre o chão da tradição.



Jones F. Mendonça