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segunda-feira, 10 de maio de 2021

SOBRE MEMÓRIA, IDENTIDADE E SAUDOSISMO

1. O saudosismo está na moda. Mania de achar que carro bom era o Fusca, tênis bacana era o Kichute, futebol de verdade era aquele jogado no terreno baldio em declive, brinquedos educativos eram aqueles feitos com lata velha e embalagens de Yakult. Talvez seja necessário convocar os psicólogos ou antropólogos para explicar as razões que motivam parcela da população a idealizar o passado dessa maneira. Ao que parece, no fundo sentimos saudades da alegria de ganhar um tênis novo, de poder jogar futebol no fim da tarde com os amigos, do carro que cabia no bolso de nossos pais, que nos levava e trazia da casa de nossos avós enquanto a chuva noturna fazia caminhos reluzentes no para-brisa.
 
2. O que chamamos de “memória”, já dizia Jöel Candau, “é muito mais um enquadramento do que um conteúdo”. Seria muita ingenuidade imaginar que nossas experiências são memorizadas, conservadas e recuperadas em sua integridade. A memória não é algo que pode ser acessado do mesmo modo como recuperamos uma foto ou um arquivo perdido em um computador. Apegamo-nos ao passado porque tememos a perda de nossas referências e a diluição de identidades. Sem lembranças, acerta de novo Candau, “o sujeito é aniquilado”. O medo da fragmentação nos faz inventar um passado idílico no qual possamos nos agarrar.

3. Bem, não precisamos ser tão duros com os saudosistas. Mas podemos ao menos pedir um pouquinho de noção da realidade.


Jones F. Mendonça

sábado, 7 de novembro de 2020

LUTHER KING E A TEOLOGIA LIBERAL

1. Luther King foi criado num ambiente de tradição fundamentalista. Em certo momento de sua vida despertou de seu “sonolento dogmatismo” após iniciar uma “viagem intelectual estimulante”. Leu obras escritas por teólogos liberais; examinou com atenção a produção teológica da neo-ortodoxia. Foi uma jornada frutífera. Chegou a algumas conclusões.

2. Achou que os teólogos liberais eram demasiadamente otimistas em relação à natureza humana. Ao mesmo tempo percebeu que a neo-ortodoxia apresentava uma percepção excessivamente pessimista dessa mesma natureza (absolutamente decaída). Então teve contato com o trabalho de Kierkegaard e de Nietzsche. Depois leu Jaspers, Heidegger e Sartre. Finalmente acabou tendo contato com Paul Tillich. O pastor batista sorriu. 

3. Hoje Luther King seria chamado por essa galera da “Coalizão pelo Evangelho” (TGC) de “teólogo liberal”, dada sua afinidade com o existencialismo e com a teologia de Paul Tillich. Ainda estão engatinhando no fundamentalismo que sufocava Luther King e que não lhe dava instrumentos para lutar pelas causas que tanto o incomodavam. 

4. Você pode ler a história dessa trajetória intelectual de Luther King em “La fuerza de amar” (Acción Cultural Cristiana, 1999, p. 151-153). 


Jones F. Mendonça 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

INVOLUÇÃO COGNITIVA

1. O ser humano, desde os tempos mais remotos, faz indagações a respeito das origens. A religião sempre se inquietou com essas questões e tentou, a seu modo, explicar as origens dos deuses (como na teogonia de Hesíodo), do mundo (como o Enuma Elish mesopotâmico), da humanidade (como no relato do Gênesis), do mal (teodiceia), etc.

2. Na Antiga Grécia, buscando respostas fundamentadas na razão, os primeiros filósofos dedicaram-se a localizar um princípio originário único capaz de explicar do mundo. A partir dessa nova orientação investigativa nasceu a ciência moderna: a astronomia, a zoologia, a química, a biologia, etc. Mas a sede, a busca incessante pelas origens não parou por aí.

3. O psicólogo canadense Merlin Donald propôs recentemente uma interessante teoria para explicar a origem do sistema cognitivo humano. Ele diz que o desenvolvimento da capacidade de externalização da memória, pela escrita, age diretamente em nosso sistema cognitivo, promovendo uma relação dialética entre cérebro e cultura.

4. Focando nessa “externalização da memória”, podemos pensar em três grandes revoluções dos nossos sistemas culturais para armazenar conhecimento: a) a invenção da escrita; b) da prensa tipográfica, e c) das novas tecnologias digitais. Eis aqui o grande paradoxo.

5. Ao mesmo tempo em que apontam para o avanço do sistema cognitivo humano e grande capacidade de desenvolvimento tecnológico, as tecnologias digitais têm sido usadas para disseminar o terraplanismo, teorias conspiracionistas, ideologias antivacina, fundamentalismos religiosos e obscurantismos científicos.

6. Se a gente não segurar esse pessoal, em breve estaremos de volta à Idade da Pedra.

 

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

COLONIALIDADES CONSERVADORAS

1. Quando um conservador de peso como o britânico Roger Scruton expõe as razões de sua postura conservadora, não é difícil entendê-lo, embora não necessariamente seja possível concordar com ele. Scruton diz querer preservar as coisas boas da cultura de seu país: a pintura (como a de William Blake), a literatura (como a de Charles Dickens) a música (como a de Gustav Holst), a imponência, a elegância e a história do Palácio de Westminster (sede do Parlamento britânico), o aconchego e o charme dos antigos povoados e até mesmo a tradição do chá, da monarquia e da fé anglicana. De fato, tudo muito elegante (mas que, por vezes, esconde estruturas muito perversas). 

2. Como somos um país jovem, miscigenado e herdeiro de uma longa experiência de colonialidade, o conservadorismo que aqui se espalha ainda não conseguiu impor uma identidade (nem bom gosto). Para alguns, ser conservador é proferir grosserias a cada dois minutos (gostam de dizer que o importante é ser politicamente incorreto). Para outros é sentir saudade de Kichute e bala Juquinha. Há quem defina o conservador a partir da adoção de uma (importada) barba ao estilo nórdico lenhador. Para outros, como Pondé, é compreender que “mulher gosta é de apanhar”. E pensar que Scruton vive dizendo que a marca do conservadorismo é a busca pela beleza. Por aqui a coisa está mais para capa de botijão de gás bordado em crochê. 



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 24 de junho de 2020

SOBRE POETAS, MITOS, LIBERDADE E FILOSOFIA

No século VIII a.C., enquanto profetas bíblicos como Amós denunciavam as injustiças cometidas pelo rei e pelos sacerdotes do norte de Israel, Hesíodo escrevia sua Teogonia, texto poético destinado a explicar a origem dos deuses e dos fenômenos cósmicos. Ainda não era uma busca fundamentada na razão, mas já revelava preocupação com as causas primeiras. Não seria exagero dizer que foram os poetas, com sua linguagem mítico-fantástica, que abriram caminho para o desenvolvimento das cosmogonias filosóficas e, portanto, da filosofia.  Uma segunda contribuição foi a religião grega, livre de dogmas rígidos, de textos sagrados revelados e de guardiões da “reta doutrina”. Esse modo de articular a religião favoreceu o desenvolvimento do livre pensamento e do debate de ideias. A autonomia das cidades, seu grau de bem-estar e liberdade política, foram o solo fértil para que as sementes da filosofia finalmente germinassem.  


Jones F. Mendonça

terça-feira, 23 de junho de 2020

POLÍTICA A ASCESE

Tudo começou com sua adesão ao “não vai ter Copa”. Dizia ser inadmissível perder seu tempo com futebol num momento político tão delicado. Para não parecer hipócrita suspendeu suas assinaturas de streaming: abandonou os seriados. Mas queria suprimir todas as distrações: desinstalou o Candy Crush, vendeu sua mesa de sinuca, doou os gatos, cancelou a viagem de lua de mel. Achou pouco. Ainda lhe restavam gotas de prazer. Suspendeu o sexo com a mulher, abandonou a família, transformou-se em pessoa amarga. Sua boca e sua alma eram agora incapazes de esboçar um mínimo sorriso. Aos 81 anos descobriu em Jean de Santeuil a cura para sua doença: “Castigat ridendo mores” (corrige os costumes sorrindo). Mas já era tarde demais: tinha vocação para tolices.



Jones F. Mendonça

SOBRE A IDADE MÉDIA

Meu primeiro contato com algum tipo de rejeição ao termo “Idade das Trevas” usado para qualificar a Idade Média foi em uma obra sobre a história da arte (“Idade Média”, aliás, já carrega dimensão pejorativa). O livro destacava a beleza, a singularidade e a sofisticação da arquitetura medieval. Encontrei o mesmo tipo de crítica num livreto sobre a filosofia medieval. As autoras, católicas, insistiam em destacar aspectos positivos desse período tão controverso que durou cerca de mil anos. Fui forçado a rever meus conceitos. A abandonar alguns rótulos.

Recentemente tive contato com a obra do medievalista francês Alain de Libera. Na introdução de sua “filosofia Medieval” (Jorge Zahar, 1990) o autor rejeita duas teses muito difundidas: 1) Toda a filosofia medieval é, no fundo, apenas teologia (Bertrand Russell); 2) A “filosofia medieval” é mero resultado do casamento entre o aristotelismo e as doutrinas judaico-cristãs (Martin Heidegger). Bem, acho que já foi suficientemente destronada a ideia de que a “Idade Média” foi um período essencialmente obscurantista. Mas vamos com calma.

Tenho encontrado aqui e ali, sobretudo no ambiente reformado, pastores fazendo declarações de amor ao medievo. Revelam grande saudade do tempo em que a teologia era a rainha das ciências. Cavando fundo, como bem fazia Nietzsche, filósofo da suspeita, não é difícil descobrir a razão desse anunciado amor: é que sendo a teologia a rainha, serão eles os reis...


Jones F. Mendonça


sexta-feira, 19 de junho de 2020

PRINCÍPIO ARQUITETÔNICO E PRINCÍPIO HERMENÊUTICO

Toda a construção teológica – seja o de um Edir Macedo (barata) ou a de um Rudolf Bultmann (sofisticada) – é norteada por dois princípios: o princípio arquitetônico e o princípio hermenêutico. O primeiro é um tema das Escrituras, o segundo uma filosofia. Dois exemplos:

1) A teologia da prosperidade usa como princípio arquitetônico a prosperidade material (um tema das Escrituras) e como princípio hermenêutico a confissão positiva (uma “filosofia”); 2) A teologia de Bultmann usa como princípio arquitetônico a Palavra de Deus (um tema das Escrituras) e como princípio hermenêutico o existencialismo de Heidegger (uma filosofia).

Assim também foi com Theilhard Chardin (Cristo/evolução), Karl Rahner (encarnação/tomismo transcendental), Bonhoeffer (amor ao próximo/secularização), etc. Quem estiver interessado em ler mais sobre o assunto, sugiro a seguinte obra (muito didática e repleta de exemplos): MONDIN, Battista. Antropologia teológica. São Paulo: Paulinas, 1979.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

NINGUÉM NASCE MULHER?

De modo geral, quando um bebê nasce, projetamos sobre ele nossas aspirações e impomos sobre ele desde cedo características de diferenciação sexual. Se é do sexo masculino: roupa e quarto azul. Se é menina: roupa e quarto rosa. Também o comportamento é direcionado: “menina não joga futebol!”, “menino não chora”, etc. O procedimento é comum em diversas culturas. Esses elementos distintivos, no entanto, não caem do céu, são construções humanas. Têm lá seus aspectos positivos (como a coesão social) e também negativos (alguns não se identificam com esses “selos” de diferenciação).

Quando Simone de Beauvoir disse, já no final da década de 50, que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, não queria com isso negar as diferenças biológicas entre macho e fêmea (é óbvio!), muito menos insinuar que os seres humanos nascem sexualmente neutros. Muitas de suas queixas tinham a ver com o papel reservado à mulher imposto pela sociedade (sobretudo pelos homens). O termo “mulher”, em sua fala, era usado para indicar essa construção, essa imagem idealizada da fêmea transformada numa espécie de modelo imutável e definitivo.

“O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir, é uma obra-prima de quase mil páginas. Fazer um pouquinho de esforço para entender o que ela diz não fará mal a ninguém.



Jones F. Mendonça

DA DILUIÇÃO DAS COISAS

Perguntam-me sobre a origem, sobre as razões históricas ou filosóficas que desencadearam o processo de diluição das coisas. Bem, a percepção do homem como um projeto em construção (e desconstrução) e não como tendo uma essência determinada remonta a filósofos do século XX, tais como Jean Paul Sartre (diluição da identidade).

A negação de um fundamento absoluto da moral pode ser encontrada em Nietzsche, filósofo do século XIX: “não existem fenômenos morais, mas interpretações morais dos fenômenos” (diluição da moral). Aliás, a frase nietzschiana “Deus está morto” diz respeito à negação de fundamentos metafísicos para a moral e não da existência de Deus.

No século XVII, sob a influência de John Locke, o liberalismo inglês rejeitou o direito divino dos reis e lançou as sementes para o nascimento da democracia e dos direitos humanos (diluição da autoridade política). Atualmente há gente tonta o suficiente para rejeitar essas duas conquistas...

No século XVI Lutero lançou sal no caramujo das verdades absolutas do dogma ao negar que o Papa tenha as chaves da igreja e da interpretação das Escrituras (diluição da autoridade religiosa). E você encontra protestantes ingênuos reclamando da diluição da fé. Não se dão conta de que o remédio para isso é a teocracia e a Inquisição.

A diluição e fragmentação da identidade, dos costumes, da religião, da moral não é um projeto elaborado por um grupo de pessoas. São os efeitos colaterais (negativos ou positivos) da busca pela autonomia e pela liberdade.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 24 de abril de 2019

DO NIILISMO HERMENÊUTICO


A imagem de um copo com 50% de seu volume ocupado por água tem sido usada para legitimar a filosofia relativista que sugere ser impossível descrever a realidade de forma objetiva. Afinal, um copo nesta condição está “meio cheio” ou “meio vazio”? A resposta é simples: se a situação foi alcançada após o enchimento do copo, então está meio cheio. Se foi alcançada após seu esvaziamento, então está meio vazio. A resposta está na história do copo. Sem sua história temos apenas um copo preenchido com água até a metade.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

GÓTICO, BARROCO, ARTE MODERNA E GENTE CHATA


Mesmo que você não entenda nada de arte, certamente já ouviu falar de artistas renascentistas como Rafael, Michelangelo, Donatello e da Vinci. Inspirando-se na produção cultural da Antiguidade greco-romana, o Renascimento (séc. XIV ao XVI) valorizou a harmonia, o equilíbrio, a lógica, as proporções, a simetria, etc. Sim, as obras são lindas.

Em oposição ao estilo renascentista nasceu o Barroco (séc. XVII e XVIII), com seu apelo à emoção, à sensualidade, à instabilidade, ao contraste, à representação humanizada dos santos. O novo estilo foi visto pela elite intelectual europeia do século XVIII como uma degeneração do período anterior, sendo tratado como “ridículo”, “bizarro” e “extravagante” (as obras, na verdade, são arrebatadoras).

Essa percepção negativa ao novo também foi sentida – vejam só - em relação à arquitetura gótica, termo pejorativo criado como referência aos godos, povo germânico, “bárbaro”, responsável pela destruição do glorioso império Romano. A história se repete. A bola da vez é a “arte moderna”, tratada por Robert Florczak e Roger Scruton como “desastrosa”, “ridícula” e “decadente”.

Sabe o que eu acho? São uns chatos.

Imagens: A dúvida de Tomé, Caravaggio (Barroco); Igreja de São Tomé, Nova York (neogótico); O império das Luzes, René Magritte (arte moderna: surrealismo).



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

DAS IDEOLOGIAS

O termo “ideologia” nasceu na França, após da Revolução Francesa. “Ideólogos”, naquele tempo, eram os pensadores críticos de toda a explicação da realidade que não levasse em conta as causas naturais (como os cientistas de hoje). Eram materialistas (e verdadeiramente liberais).

Opuseram-se à educação religiosa, na medida em que legitimava o poder absoluto dos reis (como se descesse dos céus). No desejo de desqualificar os adversários, Napoleão deu ao termo um sentido pejorativo. A razão é óbvia: os ideólogos perceberam que Napoleão queria restaurar o Antigo Regime e se opuseram a ele.

No geral, ideologia é definida como uma ideia usada para legitimar um poder (dominante ou não). Atualmente o termo está na boca do povo. É ideologia disso, ideologia daquilo, ideologia-de-não-sei-o-quê. Nesse mundo líquido, no trilho dos conceitos dissolvidos, ideologia pode ser qualquer coisa. Enfim, ideólogo é sempre o outro. Uma guerra com espadas de papel.



Jones F. Mendonça

domingo, 9 de setembro de 2018

BOBINHO E AS VERDADES LÍQUIDAS

Bobinho tem nas mãos um copo preenchido 50% com água. Querendo provar que a verdade é relativa lança a pergunta: “este copo está meio cheio ou meio vazio?”.

A resposta é óbvia. Se Bobinho esvaziou o copo depois de enchê-lo, está meio vazio. Se o encheu estando ele vazio, está meio cheio. A verdade, a resposta certa, está na intenção, na ação de quem manipulou o copo e a água.

Olhando apenas para o copo com água, sem conhecer sua história, eu diria apenas que ele está 50% preenchido com água. Não está nem meio cheio, nem meio vazio.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

PRETÉRITOS PERFEITOS

Tonta cultiva uma espécie de saudosismo doentio. Perde horas imersa em seu intestino de melancolias: sonha com suas fitas cassete da década de 80; lembra emocionada os cafunés da tia Mafalda; morre de saudade dos banhos mornos e coloridos de permanganato de potássio. É comum vê-la suspirando pelos cantos: “no meu tempo era tão bom...”. Certo dia pôs a tocar LP do Nirvana ao contrário. Diziam que ouviria conselhos atrozes do próprio Satanás. Mas era um juízo bom: “Acorda, Tonta, teu tempo é agora!”


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

QUE FALTA FAZ ARISTÓTELES

O argumento “negros também venderam negros como escravos”, usado como justificativa para deslegitimar tentativas de reparar injustiças revela uma confusão que se repete em cada canto. A relação “escravizadores” versus “escravos” nunca foi entre “brancos maus” e “negros bons”, mas entre dominadores e dominados. Historicamente, no entanto, o abismo social entre brancos e negros no Brasil é o resultado da dominação da população negra escravizada pela população branca escravizadora.  O racismo é o resultado de uma luta entre classes, não entre etnias. Não é a causa da luta, mas o seu produto.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 19 de março de 2018

POR QUE MALAFAIA NÃO É UM SOFISTA?

Indivíduos que “ganham” debates “no grito” ou com argumentos falaciosos geralmente são classificados como “sofistas”, termo empregado por Platão para se referir ao ofício criado por Protágoras, discípulo de Demócrito. Sofistas convencem pela força da retórica, não da dialética (ou da lógica). Fizeram sucesso na Grécia Antiga, fazem sucesso hoje, impulsionados por curtidas e compartilhamentos nas redes sociais.

Malafaia não pode ser considerado um sofista por uma razão muito simples: todo o seu discurso está fundamentado em crenças e valores que ele considera (ou pelos menos declara) verdadeiros, eternos e imutáveis. Os sofistas criticados por Platão (Diálogos) e Aristóteles (Elencos Sofísticos) negavam a objetividade da verdade. Ensinavam que a verdade depende da subjetividade humana, que a verdade é relativa (eram relativistas).

Os sofistas ao menos eram coerentes...


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

RESSENTIMENTO E RESIGNAÇÃO EM GAME OF THRONES

O texto descreve bem a mecânica do ressentimento na dominação de Theon Greyjoy por Ramsay Snow, em Game of Thrones:
O oprimido, reprimido, autoproduz em si um envenenamento anímico como resposta à violência que sofre. Nasce assim o ressentimento como introjeção autorrepressiva da potência que, não podendo voltar-se contra o dominador, ao incubar-se envenena o dominado. O ressentimento do envenenado não pode ser vivido nem como vício, que é, nem como pura passividade resignada. Sublima-se como virtude de paciência, obediência, disciplina, fidelidade (DUSSEL, Enrique Domingo. Filosofia da libertação, 1997, p. 61).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

RESSENTIMENTO E VIOLÊNCIA

O problema do fundamentalismo islâmico não é exatamente o Corão. Cristãos e judeus também souberam (e sabem) justificar a violência a partir de suas escrituras sagradas. Um lê: “ama o teu próximo”; o outro lê: “não vim trazer a paz, mas a espada”. Um é Luther King; o outro é Inquisição. E não importa aqui como devem ser lidos, mas como leem.

É preciso buscar na história as raízes do radicalismo islâmico que choca o mundo. Em três etapas: 1) O Império Turco Otomano sucumbe após a Primeira Grande Guerra; 2) O “Mundo muçulmano” desmorona e é explorado pelas grandes potências Ocidentais; 3) Indivíduos ressentidos, incapazes de reagir com dignidade, com inteligência, com decência, usam a religião como fundamento para sua guerra santa.

Enfim, no fundo o problema do fundamentalismo violento é o mesmo: o ressentimento. O verme que corrói a alma de membros da Ku Klux Klan é o mesmo que mastiga as vísceras de um membro do ISIS. São fracos fingindo que são fortes. Covardes sob o manto da valentia.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de agosto de 2017

SEIS OU NOVE

Tonta diz que é um seis. Louca grita que é um nove. Bobinho insiste na tese de que a verdade tem muitas faces, que ambas têm razão. Vero examina a placa, olha o seu verso, percebe uma pequena alça numa das extremidades mais largas e dispara: considerando a intenção de quem o projetou, é um seis. Moral da história: fora do contexto as verdades são líquidas. No contexto as verdades são sólidas. O resto é conversa fiada.



Jones F. Mendonça