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quinta-feira, 28 de agosto de 2025

É CLARO QUE MOISÉS NÃO É O AUTOR DO PENTATEUCO


1. Os primeiros a notarem que o Pentateuco não pode ter sido escrito por um único autor foram os sábios judeus, convencidos de que a morte de Moisés não poderia ter sido registrada pelo próprio profeta. No final da Idade Média novos trechos foram sendo colocados em dúvida. Um exemplo: de acordo com Gn 14,14 Abraão perseguiu quatro reis que haviam sequestrado Ló e seus bens “até Dã”. Ora, o território da Dã só passou a existir quando os israelitas, liderados por Josué, atravessaram o Jordão e ocuparam a terra, que foi distribuída entre as tribos.

2. Assim, como Moisés poderia ter se referido a um território que sequer existia enquanto estava vivo? A conclusão é óbvia: quem redigiu essa história já estava na terra. E como Moisés, de acordo com texto, não entrou na terra, essa pessoa não pode ter sido Moisés. Outros detalhes que causaram estranheza: o texto se refere a Moisés em terceira pessoa: “e Moisés fez isso, e Moisés fez aquilo”. Não é difícil deduzir que o redator está contanto a história de Moisés, uma pessoa do passado cuja história foi preservada pela tradição.

3. Alguém poderia perguntar: “em que sentido a negação da autoria mosaica do Pentateuco muda o modo como lemos o texto?”. Minha resposta: muita coisa. Em primeiro lugar porque as histórias do Gênesis foram escritas em um período no qual a Lei já funcionava como parâmetro de certo e errado, ao menos para parcela da população. Assim: Gn 2,3 legitima a guarda do sábado; Gn 2,16-17 pretende convencer os israelitas a não violarem o mandamento divino (a Lei); Gn 4 condena “veladamente” os sacrifícios não cruentos oferecidos por Caim.

4. Enfim, os textos tinham como audiência indivíduos que já estavam habituados com a Lei, mesmo quando essas histórias são situadas em um tempo no qual certos costumes e tradições não haviam ainda sido afetadas pela introdução da Lei. O “território de Dã” não existia no tempo de Abraão, nem no tempo de Moisés, mas quem conta a história projeta seu conhecimento geográfico no passado. E isso também acontecia com as crenças, claro.



Jones F. Medonça

sexta-feira, 25 de julho de 2025

HIPÓTESE DOCUMENTAL, REDAÇÃO CONTINUADA E CÍRCULOS NARRATIVOS


1. No capítulo 10 do Gênesis o leitor é informado a respeito dos “clãs” e das “LÍNGUAS” faladas pelos descendentes de Noé: Jafé, Cam e Sem (Gn 10,5.20.31). Mas já no capítulo seguinte esse mesmo leitor se depara com esta surpreendente declaração: “Havia em todo o mundo UMA ÚNICA LÍNGUA e um único idioma”. Afinal, havia "muitas línguas" ou "uma única língua"? Sigamos.

2. Quando comparamos o relato da criação de Gn 1 com o relato de Gn 2 também somos surpreendidos por desconexões dessa natureza. Repare que em Gn 1 o homem é criado no sexto dia (1,26), DEPOIS da vegetação (1,11). Em Gn 2 a ordem aparece invertida: o homem é criado ANTES da vegetação: homem – Gn 2,7; vegetação – Gn 2,8-9. Como explicar isso?

3. Todas essas questões foram amplamente discutidas por estudiosos da Bíblia no século XIX. Julius Wellhausen desenvolveu uma hipótese que se tornou dominante no âmbito acadêmico até a década de 70: o Pentateuco seria o resultado da junção de quatro fontes escritas, nascidas em lugares e tempos diferentes, mais tarde unidas para compor uma obra unificada. Nesse sentido, Gn 1 e Gn 2 seriam relatos independentes.

4. A hipótese de Wellhausen, conhecida como “hipótese documental”, foi capaz de explicar não apenas os conflitos, rupturas e repetições narrativas, mas também as diferenças entre códigos legais do Pentateuco relacionados ao mesmo tema. Mas, como já foi dito, na década de 70 a hipótese documental foi alvo de uma série de críticas.

5. Apesar de reconhecerem que o Pentateuco não foi escrito por uma só pessoa, mas o resultado de um longo processo redacional, esses estudiosos perceberam que a formação desse bloco de cinco livros foi muito mais complexa do que supunha Wellhausen. Duas teorias novas surgiram: 1) Hipótese da redação continuada, 2) Hipótese dos círculos narrativos.

6. A hipótese da REDAÇÃO CONTINUADA propõe o seguinte: havia, originalmente, uma narrativa completa, que ia da Criação à morte de Moisés. Mais tarde essa história teria sofrido interferências redacionais atualizadoras e interpretadoras. A hipótese dos CÍRCULOS NARRATIVOS, por outro lado, supõe os diversos blocos narrativos do Pentateuco tiveram sua própria história de crescimento, sendo unidas mais tarde.

7. Atualmente há quem busque outras soluções. W. H. Schmidt, por exemplo, tentou combinar o modelo dos círculos narrativos com o modelo de fontes. Seja como for, uma coisa é certa: o Pentateuco tal como o conhecemos é uma obra compósita, produzida por muitas mãos que liam e reliam narrativas mais antigas, as atualizavam, as ressignificavam.




Jones F. Mendonça

quarta-feira, 16 de julho de 2025

LUTERO, ARISTÓTELES E OS COMETAS


1. No final do segundo volume de suas “Preleções ao Gênesis” (1535-1545), Lutero discorre sobre o arco-íris, fenômeno visual apresentado nas linhas da Bíblia como sinal da aliança entre Deus e os seres vivos, cuja finalidade é funcionar com memorial-garantia, assegurando que a terra jamais seria destruída novamente pelas águas (Gn 9,8-17).

2. Lutero entende que o arco-íris não pode ser explicado pela razão, como supunha, por exemplo, Aristóteles em seu tratado “Meteorológica”(metéoros + lógos),” escrito há aproximadamente 2000 anos antes do nascimento do reformador. No tratado, Aristóteles defende que o arco-íris é o resultado do reflexo da luz solar projetada nas gotículas das nuvens (estava certo).

3. Mais adiante, após debochar dos filósofos por acreditarem que os fenômenos naturais podem ser explicados à luz da razão, Lutero diz o seguinte: “todos esses fenômenos são obras de Deus ou de espíritos malignos”. Ele cita como exemplo as “cabras dançantes”, as “serpentes voadoras”, e as “lanças ardentes” (!?), interpretadas como “travessuras dos espíritos no ar”.

4. Lutero terminou de escrever o comentário um ano antes de sua morte, tornando este trabalho uma fonte importante para compreender o pensamento do reformador em sua fase madura. É possível adquirir “Preleções sobre o Gênesis” gratuitamente no site do Project Gutemberg, no formato PDF, em inglês.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de junho de 2025

QUEM ESCREVEU A BÍBLIA?

1. Uma tradição muito antiga atribuiu a determinados personagens bíblicos a autoria de livros ou blocos de livros. Assim, Moisés seria o autor do Pentateuco, Josué o autor do livro que leva seu nome, Jeremias o autor do livro do Reis, etc. A grande verdade, no entanto, é que essas atribuições de autoria são meramente especulativas. Ao que tudo indica, os livros foram escritos por "autores" e não por um autor apenas.

2. Muitos dos códigos legais presentes no Pentateuco, por exemplo, aparecem registrados de forma repetida, porém modificada, sugerindo que um código mais antigo foi relido e atualizado, de forma que pudesse dar respostas a novos problemas e desafios, não contemplados no código mais antigo. Isso acontece, por exemplo, em relação às leis relacionadas aos escravos, aos empréstimos a juros e ao amor ao inimigo.

3. Em relação ao livro de Josué, uma série de fórmulas estereotipadas, tendências teológicas e de estilo, sugerem que o livro foi escrito por indivíduos de alguma maneira vinculados ao Deuteronômio. Na verdade não apenas o livro de Josué possui afinidades com o Deuteronômio. São igualmente classificados como "deuteronomistas" os livros de Juízes, Samuel e Reis. Reflexos da "teologia deuteronomista" também podem ser encontrados em profetas como Jeremias.

4. Desde o início do século XX o livro do profeta Jeremias vem sendo dividido em quatro partes, relacionadas a autores diferentes. Textos poéticos, predominantes nos capítulo 1-25, seriam os mais antigos. Textos em prosa, de natureza "biográfica", seriam mais recentes. Um terceiro grupo de textos teriam sido redigidos por "deuternomistas"; e um último, de natureza mista, revela grande preocupação em apresentar um futuro glorioso para Jerusalém e Judá e punição aos seus inimigos.

5. Uma matéria publicada há alguns dias no Haaretz (Israel), apresenta novas ferramentas de análise do texto que parecem promissoras para nos ajudar a datar os textos. Boa leitura! 



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O LIVRO DO LEVÍTICO E O NARIZ PROIBIDO



1. De acordo com algumas traduções do livro bíblico de Levítico, o texto de Lv 21,18 diz que nenhum homem que possua "nariz chato" (haram) poderá oferecer ofertas queimadas a Deus. Acontece que "haram" não significa "nariz chato" nem aqui nem na China. Vale destacar que a palavra "nariz" sequer existe no texto. "Haram" reaparece, por exemplo, em Js 11,21: "Josué os destruiu (haram), juntamente com suas cidades".

2. Tudo o que podemos saber é que o texto proíbe o acesso de pessoas "destruídas" (mutiladas?) a alguns locais considerados sagrados. Quando o texto hebraico foi traduzido para o grego, a palavra escolhida como equivalente a "haram" foi κολοβορριν, termo que significa, de acordo com alguns léxicos "nariz destruído/desfigurado".

3. É possível que um tradutor mal intencionado (sendo claro: racista) tenha buscado o significado de "haram" na versão grega do texto: "nariz desfigurado" e como tinha certa aversão por narizes que não se enquadravam no seu modelo ideal de nariz, achou por bem traduzir "haram" por "nariz chato". Traduzir textos antigos não é tarefa fácil, mas tem gente que força a barra. 



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

NAZIREUS, CABELO E VINHO

1. O livro bíblico de Números, em seu capítulo 6, descreve uma antiga prática religiosa de “santificação da cabeça” (Nm 6,11), ritual com caráter votivo, chamado de nazireato. O candidato, que podia ser homem ou mulher (6,2), obrigava-se a se abster do produto da videira, do contato com cadáveres e do corte do cabelo (6,3-6).

2. Após o fim do período do voto, cuja duração podia variar, o(a) candidato(a) rapava totalmente a cabeça e seus cabelos eram queimados, juntamente com a oferta de um animal (6,18). Dois homens na Bíblia são apresentados fazendo voto de nazireu: Sansão (Jz 13,5.7; 16,17) e Paulo (At 18,18; 21,23).

3. Sansão, no entanto, parece não ter seguido à risca seu voto, afinal como evitar tocar em corpos sem vida em uma batalha sangrenta (Jz 14,19 e 15,15-16)? Além do mais, o banquete, oferecido em 14,10 dificilmente não incluiria bebida. O texto de Atos não diz com clareza que Paulo vez voto de narizeu, isso fica apenas sugerido.

4. A abstenção do vinho parece ser um costume bem antigo, cultivado por grupos seminômades como os recabitas (Jr 35,6), que também mantinham a tradição de viver em tendas (v. 7). Uma crítica velada aos cultivadores de vinha – e, portanto, ao vinho – aparece em Gn 9,20-21.

5. Embora a Bíblia não mencione qualquer mulher fazendo o voto do nazireato, a rainha Helena de Adiabene é uma das mais famosas naziritas. O Talmud (Nazir 19b) relata que seu voto aparece relacionado a seu filho. Ela teria prometido que se tornaria uma nazirita por sete anos caso ele voltasse em segurança da guerra.

6. O local onde foi sepultado o corpo de Helena, localizado a 820 m ao norte da antiga muralha da cidade de Jerusalém, é considerado como o maior e mais belo dos túmulos da cidade. Ainda não está clara para mim a origem de dois costumes: a abstenção de vinho (forte entre os conservadores recabitas) e do corte do cabelo.


Jones F. Mendonça

 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

SOBRE AS RESTRIÇÕES ALIMENTARES NO LEVÍTICO

Lendo uma coletânea de ensaios publicados em “The Book of Leviticus: composition and reception” (Brill, 2003), editado por Rolf Rendtorff e Robert A. Kukler, acabei conhecendo o trabalho da antropóloga britânica Mary Douglas. No capítulo 3 de “Pureza e perigo” (Perspectiva, 1976), ela reflete sobre “as abominações do Levítico”. Desde o judaísmo rabínico uma série de tentativas foi elaborada para explicar as (estranhas) restrições alimentares presentes no livro: os animais fariam mal à saúde, a proibição visaria impedir que os israelitas acolhessem costumes estrangeiros, etc. Mary Douglas desenvolveu uma tese diferente e inovadora. De forma básica, ela defende que as restrições precisam ser lidas à luz do relato sacerdotal da criação (Gn 1,1-2,4b). Aos que têm interesse no assunto, acho que vale dar uma conferida.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

SOBRE O "ÊXODO HISTÓRICO"

Apesar da falta de evidências materiais (e do ceticismo de alguns arqueólogos), Richard Elliott Friedman defende a presença de um núcleo histórico no relato bíblico do Êxodo. Por trás da narrativa, tal como lemos no segundo livro do Pentateuco, um núcleo mais antigo refletiria uma migração de levitas (um grupo pequeno) do Egito para a região do Levante. Isso explicaria:

1. A ausência no nome “Israel” e referências ao Templo na Canção do Mar (a canção seria muito antiga, talvez pré-israelita, preservada por sacerdotes levitas oriundos do Egito);

2. Ausência da tribo de Levi na Canção de Débora (os levitas, nesse tempo, ainda não haviam chegado à terra ou eram apenas um grupo de sacerdotes);

3. Nomes egípcios dados a levitas, como Hophni, Hur, Merari, Mushi, Fineias e Moisés.

4. A tentativa, por parte das fontes atribuídas a sacerdotes levitas (E, P e D), de identificar divindades adoradas pelos patriarcas (sob o epíteto "El") com o recém-chegado YHWH (Cf. Ex 3; 6).

5. Paralelos arquitetônicos entre o Templo/arca da aliança e elementos do culto egípcio (a circuncisão também era praticada no Egito).

6. A ênfase das fontes levíticas E, P e D em ordenarem que não se deve maltratar estrangeiros.

Lei ao texto completo no TheTorah.

 

Jones F. Mendonça

sábado, 2 de janeiro de 2021

JOSÉ COMO CONTO SAPIENCIAL

1. Em seu comentário ao livro de Gênesis (1949), von Rad destacou o “notável parentesco” da história de José com a sabedoria antiga. José é representado na história como uma espécie de manifestação concreta das virtudes exaltadas no livro de Provérbios: é paciente, piedoso, sábio, foge da mulher estrangeira, não retribui o mal com o mal, etc. Seria a história de José um conto sapiencial?

2. Em ensaio publicado em “The Book of Genesis” (Brill, 2012, p. 232-261), Michael V. Fox acolhe parcialmente a tese de von Rad (vê afinidade entre o relato e a tradição sapiencial), mas entende que a história não tinha a finalidade de instruir discípulos nas diversas virtudes da sabedoria. Sua principal intenção seria enfatizar “a desgraça e a reabilitação de um servo”, ensinando que os sábios também estão sujeitos às vicissitudes da vida (cf, Ecl 9,11).


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 4 de junho de 2020

CAIM E ABEL, POR WILLIAM BLAKE


Um Adão assombrado, uma Eva em prantos, um Abel desfalecido e um Caim arrependido (?) ilustram esta tela fantasmagórica do mestre William Blake (~1805). Muito mais aqui.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 10 de abril de 2020

NOTAS SOBRE DEUTERONÔMIO 26

Dt 26,12-15 trata do dízimo trienal. O texto determina que o ofertante declare diante de Javé que não contaminou o dízimo a ser entregue ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva.  O verso 14 explica em que situações esse dízimo poderia ser contaminado. São duas as situações: 1) comer parte desse dízimo durante o luto; 2) oferecer parte desse dízimo por um morto.  

Em relação ao ponto 1, Tigay [1] propõe duas possibilidades:
  • Um enlutado fica impuro por estar na mesma tenda que um cadáver por manuseá-lo durante o enterro ou pelo contato com outras pessoas que se tornaram impuras de uma dessas maneiras. Em tais condições qualquer alimento que ele tocasse se tornaria impuro.
  • Um enlutado fica impuro ao usar parte do dízimo em uma refeição fúnebre.
Ele explica que tais recomendações são uma reminiscência de uma prática encontrada nas “Instruções aos Oficiais do Templo” hititas. Em relação ao ponto 2:
  • Os antigos acreditavam que os vivos podem ajudar os espíritos dos mortos no Sheol, fornecendo-lhes comida e bebida. Essa prática foi difundida no mundo antigo e também é atestada entre alguns judeus nos períodos do Segundo Templo e depois, como em Tobias 4,17: “Derrame seu pão e vinho na tumba dos justos e não dê para os pecadores”. Em algumas sepulturas escavadas em Samaria, capital do Reino do Norte, foram encontrados buracos no chão, semelhantes aos encontrados nas tumbas de Ugarit, que serviam de receptáculo para alimentos e bebidas oferecidas aos mortos. A Torá não proíbe essa prática, mas, como o contato com os mortos é profanado ritualmente, proíbe o uso do dízimo por ela.
Um artigo publicado no The Bible and Interpretation (Afterlife and Resurrection Beliefs in the Second Temple Period), citando Joseph S. Park [2], afirma que essa noção é apoiada ainda pelas antigas inscrições das tumbas judaicas.

Notas:
[1] TIGAY, Jeffrey H. The JPS Torah Commentary: Deuteronomy. Fhiladelphia, Jerusalem: Jewish Publication Society of America, 2003, p. 242-244.

[2] Joseph S. Park, Conceptions of Afterlife in Jewish Inscriptions: With Special Reference to Pauline Literature, Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament (Tübingen: Mohr-Siebeck, 2000), 2:121.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 4 de março de 2020

A REVOLTA DE CORÉ E O FOGO DE SODOMA


No conhecido episódio de Nm 16,2, Coré, Datan e Abiram desafiam a autoridade de Moisés “colocando-se de pé” diante dele. A oposição é marcada pelo verbo “pôr-se de pé”, “levantar” (qum). Em Gn 18,22 temos uma construção semelhante. Neste caso Abraão “permanece de pé diante das faces de Javé”. O verbo é outro (‘amad), mas num primeiro momento parece expressar a mesma ideia. Será?

Bem, neste caso o texto estaria sugerindo que Abraão permanece de pé “diante das faces” de Javé como que se opondo ao plano divino de destruir Sodoma. Essa oposição parece ser confirmada a partir da (insistente e ousada) intercessão do patriarca a favor de Sodoma (vv. 23-25; 27-29; 30-31; 32). Um confronto como este não seria inédito: Jacó luta com Deus... e vence! (cf. Gn 32,28; Os 12,3-4).

Para confirmar a tese eu precisaria localizar e analisar outras ocorrências do verbo “‘amad” antes da expressão “diante das faces de”. Encontrei quatro casos: Jr 35,19; Zc 3,1; 2Cr 20,13 e 18,20. Em todos eles, “ESTAR DE PÉ diante das faces de” serve apenas para indicar a posição do interlocutor. Nunca indica oposição.

O verbo usado em Nm 16,2 (revolta contra Moisés) possui sentido diferente: não significa “estar/permanecer de pé”, mas “pôr-se de pé”, “levantar”. Enfim, indica movimento, é “levantar-se” de algum lugar (Ex 24,13; Nee 9,3), “levantar” algo (Ex 26,30; 1Rs 16,32) ou “levantar-se” contra alguém ou algo (cf. Gn 4,8; Ex 15,7; Jz 20,5).

Então embora seja verdade que o texto coloca Abraão de certa maneira em oposição aos planos de Javé, esta postura não é acentuada pelo verbo. Não indica postura de confrontação, mas de súplica, de intercessão. Uma sutileza do verbo que faz muita diferença.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

CALVINO E O CÍRCULO DA SERPENTE

Em suas Institutas, Calvino diz o seguinte a respeito do pecado original: “O primeiro homem, pois, caiu porque o Senhor assim julgara ser conveniente. [...]. Portanto, o homem cai porque assim o ordenou a providência de Deus” (Livro III, cap. XXIII, seção 8). Enfim, se Calvino pudesse pintar a queda, a serpente apontaria para Deus e diria: “fiz tudo de acordo com a tua Santa Providência”. É ou não uma teologia muito louca? Tela: Domenico Zampieri.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 23 de março de 2017

JAVÉ SOBRE TOUROS E QUERUBINS

Teólogos judeus medievais apresentaram explicações diferentes a respeito do objetivo da construção do bezerro de ouro pelos israelitas no deserto tal como descrito em Ex 32. Exponho três delas: 1. Buscaram um deus alternativo (Rashi); 2. Um Moisés alternativo (um novo mediador) uma vez que imaginaram que seu líder havia morrido no monte (Ramban); e 3. Um novo pedestal sobre o qual Deus repousaria (Ibn Ezra). Leia mais aqui.  

Para Joel Baden, Professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Yale, a declaração do povo diante da imagem: “Este é o teu Deus, ó Israel, o que te fez subir da terra do Egito” (Ex 32,4) e também a de Aarão: “Amanhã será festa para Javé” (32,5), revelam que o povo reconhecia a imagem como sendo uma representação de Javé e não de outra divindade. Leia mais aqui.

Frank Moore Cross pensou que o problema fosse iconográfico: Javé deveria ser retratado como entronizado acima de dois querubins (Ex 25,22), não sobre dois touros. Neste caso o problema não seria nem a idolatria (1º mandamento, cf. Ex 34,2), nem a construção de imagem de fundição representando a divindade (2º mandamento, cf, Ex 34,4), uma vez que seria mero pedestal, tal como os querubins acima da arca.

Um último texto publicado no TheTorah percebe no texto uma conotação política. Caso queira ler mais sobre a natureza dos querubins, veja aqui.



Jones F. Mendonça