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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

ELAINE PAGELS E AS ORIGENS DE SATANÁS

1. No final da década de 70, Elaine Pagels tornou-se mundialmente famosa com a publicação de “The Gnostic Gospels”. A autora é especialista em gnosticismo, uma corrente religiosa que nasceu no contexto do cristianismo primitivo e foi visto como uma ameaça à ortodoxia cristã primitiva. Neste ano, no ápice de sua fama, Pagels escreveu “Miracles and Wonder” (Doubleday, 2025, 336 p.), ainda sem tradução em português. Desta vez o foco de seu trabalho é a figura de Jesus. Com certeza o livro despertará muitas polêmicas.

2. Quero aproveitar para falar de um livro menos conhecido de Pagels, publicado em 1995: “The Origin of Satan: How Christians Demonized Jews, Pagans, and Heretics”. Tal como sugere o título, o livro procura explicar como a figura de Satanás, relativamente insignificante no Velho Testamento, ganhou proeminência e importância na visão dos primeiros cristãos, que passaram a atribuir influência demoníaca a todos aqueles que eram vistos como opositores de sua fé, como judeus, “pagãos” e “heréticos” (também vale ler: "Quem matou Jesus?", de John Dominic Crossan).

3. Passaram-se dois mil anos, meu caros, e esse tipo de recurso ainda funciona, por isso o livro merece ganhar espaço nas prateleiras de quem está interessado em compreender algumas das raízes do atual contexto religioso evangélico. O dualismo gnóstico e depois maniqueísta fez sucesso no passado e sua força ainda é visível nos discursos inflamados de líderes fundamentalistas que têm transformado seus púlpitos em zona de guerra político-partidária, em prostíbulo metafísico-eleitoral (eita, que agora exagerei!). E nesses discursos o "Zarapelho", o "Satanás", é sempre o outro.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de junho de 2025

A FÉ COM LÓGICA É MORTA

1. Por alguma razão o algoritmo do YouTube entende que eu aprecio debates entre judeus e cristãos sobre a figura de Jesus, em particular sobre sua messianidade. Os debatedores que mais pipocam na minha tela são Tassos Lycurgo (apologeta cristão) e o rabino Micha (judeu), ambos apegados à interpretação fundamentalista de suas respectivas Escrituras.

2. De um lado Tassos tenta demonstrar que Jesus é o messias tal como profetizado nas “Antigas Escrituras”. Do outro lado Micha se esforça para comprovar que esta declaração é falsa e não encontra apoio nos textos sagrados. O nível do debate é baixíssimo, com ataques pessoais, leituras equivocadas e tentativas de desqualificar o oponente. Que canseira...

3. Não seria mais honesto e maduro o adepto da fé cristã dizer: “creio que Jesus é o messias e que ressuscitou dos mortos e não preciso provar nada pra ninguém!”? E não seria igualmente honesto e maduro o rabino declarar: “a Torah é a luz do mundo, creio que o messias ainda está por vir e ninguém tem nada a ver com minhas crenças!”?

4. O número de visualizações que esse tipo de debate alcança chega a passar de meio milhão. Sim, é surpreendente (e trágico!). Crenças não se provam, não se justificam racionalmente e nem mesmo exegeticamente. Crenças são o resultado de experiências (individuais ou coletivas), cristalizadas posteriormente em fórmulas de fé, em dogmas.

5. O cristão crê de um jeito, o judeu de outro, o espírita, o hindu, o budista, o muçulmano, o umbandista, o bahaísta e o zoroastrista de outro e de outro modo. É saudável que todos dialoguem em nome de um bem comum. Mas o sujeito de fé que tenta provar que tal religião é a mais verdadeira ou mais falsa faz papel de padego, boboca, obtuso, pacóvio, sandeu.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

OS CORPOS NO JUÍZO FINAL


As duas imagens revelam impressões do imaginário cristão a respeito da ressurreição no dia do juízo final. A da esquerda ilustra um manuscrito do século XV. A da direita, obra de Luca Signorelli, é do século XVI. Embora os elementos sejam os mesmos (anjos, trombetas, corpos ressurretos), as mudanças na representação do corpo, a partir da influência do Renascimento, são muito nítidas.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 11 de junho de 2019

ABBA NÃO É “PAIZINHO”, ÁGAPE NÃO É “AMOR INCONDICIONAL” E KAIRÓS NÃO É O “TEMPO DE DEUS”

1. Investigo a origem de interpretações equivocadas do texto bíblico do Novo Testamento. A ideia tão difundida de que o aramaico “abba” significa “paizinho” (Mc 14,36) vem de um livro do renomado e competente teólogo alemão Joachim Jeremias (The prayers of Jesus, 1967). Sua tese foi derrubada por James Barr num artigo publicado em 1988 (“Abba isn’t Daddy”). Aliás, o próprio Jeremias reconheceu seu erro numa edição posterior de sua Teologia do Novo Testamento (Devo essa ao Lucas Fernandes). “Abba” significa simplesmente “pai” como o hebraico “ab”.

2. Apesar do NT não dar um sentido diferenciado ao termo grego “ágape” (amor), não faltam publicações teológicas argumentando que ágape significa, no NT, “amor de Deus” ou “amor incondicional”. A origem dessa confusão talvez venha de outro teólogo alemão: Paul Tillich. Em sua teologia sistemática, Tillich discorreu sobre os diferentes tipos de amor existentes no pensamento grego (ágape, fileo, eros, storge). Meu palpite é o seguinte: leitores apressados talvez tenham atribuído ao “ágape” do NT o mesmo sentido que Tillich quis dar em sua teologia sistemática.

3. Um terceiro grande equívoco ocorre em relação ao termo grego “kairós”. Não faltam citações e sermões que atribuem ao termo um significado que ele jamais teve no NT. O que se diz é: “’chronos’” é o tempo cronológico e ‘kairós’ é o tempo da salvação, tempo de Deus”. Mas a tese não resiste a um exame cuidadoso. É falsa. Oscar Cullmann, em seu “Cristo e o tempo” (1946) refletiu sobre o tempo a partir da obra salvífica de Cristo, dando especial destaque ao termo “kairós” (“chronos” e “aiôn” ganham pouco espaço). Ele jamais definiu “kairós” como “tempo de Deus”, mas sua ênfase na ação divina no “kairós” (tempo) talvez tenha dado origem ao equívoco.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 5 de abril de 2019

SUBMISSÃO E MODÉSTIA EM PAULO E ROMA

Em 1Tm 2,9-15 Paulo dá a Timóteo algumas recomendações relativas às mulheres (vestuário e submissão ao homem) que estão bem de acordo com a cultura predominante na Antiga Roma.

O discurso (misógino) abaixo, proferido por Marco Catão em 195 d.C., foi uma resposta a um protesto de mulheres contra uma lei que impunha a elas restrições ao vestuário e uso de joias. Os temas são os mesmos:

“Nenhuma proibição dos maridos podia retê-las em casa. [...] Do jeito que as coisas estão, nossa liberdade, derrubada em casa pela indisciplina feminina, está sendo esmagada e pisada também aqui, no Fórum. [...] as mulheres tinham de estar sob o controle de pais, irmãos e maridos” (BURROW, John. Uma história das histórias, 2013, p. 135).



Jones F. Mendonça

sábado, 23 de fevereiro de 2019

SATURNÁLIA, CARNAVAL E QUARESMA


No período de quarenta dias, entre a quarta-feira de cinzas (em 2019: 06/mar) e o Domingo de Ramos (em 2019: 14/abr), os primeiros cristãos comemoravam a Quaresma. Era um período de reflexão inspirado no jejum de 40 dias feito por Jesus no deserto. Faziam penitência a fim de meditarem a respeito da Paixão. O período de abstinência de carne era longo. Muita gente reclamava.

Com a finalidade de se despedir da carne, o povo fazia uma festa, debochava dos reis, do clero e até da sua miséria. Era uma celebração marcada pelos excessos, afinal no dia seguinte teriam de se abster de carne e fazer penitência. Os festejos ganharam o nome de Carnaval, termo que tem origem na expressão latina usada pelo Papa Gregório, em 590 d.C.: “Carnem levare” (retirar a carne). É provável que a festa tenha se inspirado na saturnalia romana.

Com o tempo o Carnaval foi incorporando elementos novos, fenômeno que acontece com diversas festas, como o Natal (árvore, pisca-pisca, panetone...), e a Páscoa (ovo de chocolate, coelho...). Do ponto de vista etimológico, não se trata de uma “festa da carne” (carnalidade), mas da “abolição da carne” (carne de animal). Na prática o Carnaval funciona como tempo reservado à diversão. Em alguns casos como válvula de escape para desejos reprimidos.

Uma última curiosidade: a quarta-feira de cinzas tem este nome porque neste dia os fies eram benzidos com as cinzas dos ramos de palmeira utilizados na domingo de Ramos do ano anterior.

Tela: O combate entre o Carnaval e a Quaresma, de Pieter Brueguel, 1559.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

VULTUS TRIFRONS, TRINDADE TRICÉFALA


Nesta iluminura do século XVI, o Pai, o Filho e o Espírito Santo aparecem representados com cabeças iguais (Trindade Tricéfala, ou Vultus Trifrons) tal como na representação trimurti hindu composta por Brahma (criador), Vishnu (mantenedor) e Shiva (destruidor). Este tipo de representação foi condenado pelo teólogo católico Johannes Molanus, no século XVI, e mais tarde pelo papa Urbano VIII, no século XVII [1].

Caso queira dar uma olhada nas belas iluminuras do manuscrito, visite o site da Bibliothèque Nationale de France clicando aqui.

Nota: 

[1] WILLIAMS, David. The function of the Monster in Medieval Thought and Literature, 1999, p. 133.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 13 de novembro de 2018

A VITÓRIA SOBRE O HADES: MITO, ESCRITURA E ARTE



O retorno do mundo subterrâneo é um tema pré-cristão muito antigo. No Novo Testamento ele aparece, por exemplo, em 1Pe 3,18-20 e é repetido do Credo Apostólico, confissão de fé formulada nos primeiros séculos. A literatura (e o cinema) souberam trabalhar o tema da vitória sobre o Hades. 

Uma cena, em "O Senhor dos Anéis", retrata o mago cinza (Gandalf) descendo ao Hades lutando com um dragão. A luta não é fácil, mas Gandalf sai vitorioso e ressurge do abismo ainda mais forte. Agora ele é um mago branco. Os paralelos são diversos. 

Nesta tela, de Tintoretto, Cristo desce ao Hades para resgatar os espíritos em prisão. O Hades, antes imerso em trevas, agora aparece iluminado por sua presença. Repare que os corpos são expostos numa perspectiva enviesada, uma marca do trabalho de Tintoretto. O contraste entre luz e sombra do maneirismo de Tintoretto inspirou o tenebrismo, técnica aplicada com maestria por Caravaggio.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de junho de 2018

O "JESUS PIMENTINHA" NA ARTE E NA LITERATURA


Nesta tela, de Max Ernst (Virgin Spanking, 1926), o menino Jesus aparece sendo disciplinado por Maria. Repare que o halo despenca de sua cabeça enquanto a mão ameaçadora de sua mãe desce em direção às suas nádegas já avermelhadas.

Embora esta representação ousada tenha causado muito escândalo no início do século XX, já nos primeiros séculos, nos chamados “Evangelhos da infância”, Jesus aparece como uma criança travessa, astuta e até mesmo cruel.

No evangelho de Tomé da infância, por exemplo, uma criança provoca Jesus e é transformada numa árvore seca. Em outra passagem Jesus é acusado de empurrar um menino de um terraço. Para provar sua inocência, ele a ressuscita.

Os cristãos dos primeiros séculos, criadores de tais narrativas, não viam problemas em aceitar a infância do Filho de Deus com as cores de uma infância comum, repleta de rebeldia, imaturidade e até mesmo de maldade.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 28 de março de 2018

A PERSONIFICAÇÃO DA SABEDORIA DIVINA NOS GATHAS IRANIANOS

Investigo o recurso literário da personificação da sabedoria (hokhmah), fenômeno que aparece em Provérbios 1-9, em Jó 28, na Sirácida 24, na Sabedoria de Salomão 7; 18, em Baruc 3 e numa interpolação presente no capítulo 42 do livro apócrifo de Enoque etíope. Interessa-me a origem desse recurso e sua relação com o prólogo do evangelho de João.

Há quem sugira uma influência egípcia (Isis, Maat), canaanita (Asherah) ou mesopotâmica (Astarte, Innana). Mas não encontrei textos religiosos produzidos por tais povos capazes de justificar qualquer orientação nesse sentido (você pode consultar uma coleção deles num trabalho organizado por James Pritchard em “Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament”).

W. Bousset indicou um caminho diferente: o Irã. De forma mais específica, a personificação de um atributo divino estaria presente nos Gathas, poemas atribuídos a Zaratustra (profeta persa do século VII a.C.). Nos Gathas o “Espírito Benevolente” (Spenta Mainyu) emana do “Senhor da Sabedoria” (Ahura Mazda) e opera em todos os aspectos da existência. Ele age nos homens, instruindo-os.

O problema é que esses textos foram transmitidos de forma oral por séculos, até ganharem a forma escrita (como saber se os textos não foram contaminados com outras crenças?). Outro problema é a tradução (foi escrito em dialeto gáthico, idioma de difícil tradução). Ainda assim penso que seja uma boa pista.

É possível ler 17 capítulos dos Gathas no Zaratustra.com (a tradução para o inglês é obra de Mobou Firouz Azargoshasb). Leia sobre os Spenta Mainyu nos Gathas aqui.  Sobre possíveis conexões entre o zoroastrismo e a Bíblia Hebraica aqui e uma introdução aos Gathas e a tradução de 17 capítulos para o inglês aqui.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 12 de março de 2018

SOBRE "EROS", "ÁGAPE", "PHILEO" E FIRULAS

Ora, se “ágape” é empregado no NT para expressar o amor mais elevado, incondicional, como muitos insistem, como explicar o uso da palavra neste lamento de Paulo: “Pois Demas me abandonou por amor (ágape) ao mundo presente” (2Tm 4,10). O termo correto não deveria ser “eros”, supostamente - como dizem - “amor egoísta, carnal”?

E se o NT, de fato, faz distinção entre “ágape” (amor incondicional, divino) e “fileo” (amor fraternal, de amigo), como explicar o uso de “fileo” aqui: “pois o próprio Pai vos ama (fileo, Jo 16,27). É verdade que há preferência pelo “ágape” nas relações entre o humano e o divino no NT, mas na prática, “ágape” e “fileo” são intercambiáveis, como no diálogo entre Pedro e Jesus em Jo 21,15-17.

Não há ocorrência do “eros” no NT. Mas a demonização do termo só aparece nos textos dos primeiros padres (nas palavras de Nietzsche, o cristianismo “envenenou o eros”.). Veja o que diz Santo Inácio, por exemplo: “O meu amor (eros) foi crucificado e não há em mim fogo de paixão. [...] Não me atraem o alimento de corrupção e os prazeres desta vida” (Carta aos Romanos, 7,2). Ratzinger acata em parte a crítica nietzschiana em sua “Carta Encíclica Deus Caritas Est”.

Um exercício simples, mas muito útil para desmascarar equívocos cristalizados pela repetição: escolha uma palavra (grega ou hebraica) e localize todas as suas ocorrências no texto bíblico. O contexto vai denunciar a farsa. Não confie em dicionários.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

CHRISTUS VICTOR: ARTE E CRISTOLOGIA


Desde o século XI, tanto na arte visual como na literatura, a cruz geralmente aparece como símbolo de dor, de violência e de morte (Christus Patiens). Nesta representação, bastante atípica para o século XVI, Cristo aparece associado à cruz com uma expressão triunfante, pisando a cabeça de satanás (Maarten de Vos, 1585). A imagem ilustra a capa da obra "Christus Victor" (1931), do teólogo sueco Gustaf Aulén.

Detalhes sobre a arte no site do The British Museum:



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O EVANGELHO DE MARCOS NA PATRÍSTICA

Trecho do artigo publicado no The Bible and Interpretation, por Michael Kok: 
Quais são as razões para o fato de Marcos ter sido negligenciado [no período patrístico]? Além de suas deficiências gramaticais e estilísticas, Marcos pode ter sido considerado incompleto por ocultar histórias sobre aparições do nascimento e pos-mortem de Jesus, bem como os seus ensinamentos éticos no Sermão do Monte que se tornaram familiares pelos outros evangelhos. Na verdade Mateus reproduz mais de 90 por cento do conteúdo do Marcos, mas também insere um rico material adicional e revisa ou omite um número de passagens que podem ter sido teologicamente problemáticas (Mc 2,21; 3,19b-20; 6,5; 7,19b.32-35; 7,33-34; 8,22-26; 10,18). O procedimento de Lucas é semelhante, embora suas omissões sejam mais extensas (por exemplo, Marcos 6, 45-8, 26), terminando por reproduzir apenas 51 por cento de conteúdo de Marcos. 


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A DIALÉTICA EM HERÁCLITO, PLATÃO, ARISTÓTELES, HEGEL, MARX E BARTH

Compreender termos teológicos ou filosóficos a partir de obras especializadas geralmente é uma tarefa espinhosa para quem está iniciando os estudos nessas áreas. Sempre correndo o risco de simplificar demais o trabalho filosófico dos grandes pensadores, resolvi escrever um pequeno ensaio sobre a dialética, buscando explicar o termo da maneira mais simples e didática possível no âmbito das diversas escolas filosóficas. Apesar de ter consultado muitas obras optei por não citá-las a fim de tornar o texto mais fluido. Espero que ajude.

Um bom ponto de partida para compreender o que vem a ser dialética (dia=um para o outro + legein=dizer, explicar) é conhecer as ideias de Heráclito.

Heráclito (540-476 a.C.): Atribui-se a Heráclito de Éfeso a criação de uma nova forma de ver o mundo, a dialética (ainda que o termo só tenha sido empregado mais tarde, por Platão). Discordando dos eleatas, filósofos da cidade de Eleia que defendiam um universo de estado imutável, Heráclito dizia que a natureza está sujeita a uma única lei: a lei da mudança. “Ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio, porque o rio não é mais o mesmo”, dizia o filósofo. Para Heráclito tudo está em constante transformação, “tudo flui” (gr. panta rei), e não há nada que seja perpétuo, exceto o constante devir (ou vir-a-ser). “O que se opõe coopera, e da luta dos contrários procede a mais bela harmonia”, insistia o filósofo de Éfeso.

Platão (424-347 a.C.): Platão é bem conhecido por ter sido discípulo de Sócrates e de ter fundado a Academia, uma escola dedicada à ciência e à filosofia que se reunia no jardim de Academo. Para Platão é por meio do diálogo e da conseqüente confrontação de ideias que os equívocos são eliminados e a verdade aparece. Em Platão a dialética é um instrumento de busca da verdade. É importante compreender que para Platão “aprender não é outra coisa senão recordar”. Para ele o conhecimento racional jaz dormente na alma e precisa ser despertado. E como se acorda esse “conhecimento latente”? Por meio da dialética, responderia o filósofo. Assim, a dialética de Platão pressupõe a pré-existência da alma e o inatismo das ideias. A dialética platônica se expressa nos diálogos escritos pelo filósofo, particularmente nos chamados “diálogos da maturidade”, tais como o Menon, o Fédon e a República.  

Aristóteles (384-322 a.C.): Aluno de Platão e filho de um médico, Aristóteles se tornou mestre de Alexandre, o Grande. Em Aristóteles a dialética constitui a parte da lógica que estuda os raciocínios prováveis. Não trazem certeza nem descobrem a verdade como em Platão, mas opinião ou probabilidade. No pensamento do filósofo a dialética declina em favor do método analítico (silogismo demonstrativo ou científico), ganhando um sentido negativo ou até mesmo pejorativo. A relação entre dialética e analítica é tratada no Organon. A diferença entre esses termos diz respeito, acima de tudo, às premissas: a analítica decompõe silogismos e demonstrações científicas (fundamentos seguros); a dialética tem a ver com o ato retórico de persuasão (premissas não isentas de dúvidas).

Hegel (1770-1831): Há quem considere a filosofia hegeliana como um imenso e elaborado platonismo, mas é importante destacar que Hegel repudia qualquer visão de dois mundos. Para ele as ideias estão nas coisas, como Aristóteles. Como já foi apresentado, a dialética repousa nas contradições internas, ou nos opostos presentes em todas as áreas da vida humana. Para Hegel a dialética é o movimento racional que nos permite superar essas contradições. A dialética de Hegel é concebida em três etapas: tese (afirmação), antítese (negação) e síntese (negação da negação). Tese e antítese são sempre falsas, mas impelem para uma síntese que concilia os opostos que eram excludentes. O conhecimento é considerado como um processo contínuo, histórico e progressivo. A filosofia hegeliana é considerada idealista porque busca explicar a evolução do mundo pela evolução da ideias. Hegel achava que o homem poderia transformar a realidade de acordo com critérios racionais: mudam-se as ideias, mudam-se as coisas. Colocando em outros termos: “A verdade é o movimento da ideia”.

Karl Marx (1818-1883): o filósofo alemão converteu a dialética em um método com a ajuda de Friedrich Engels, seu parceiro na elaboração do Manifesto Comunista. Ele inverteu a dialética hegeliana sugerindo que o mundo material é o fundamento das ideias e não o contrário como anunciava a filosofia idealista de Hegel.  Em suma: “as coisas vão de transformando e as ideias vão atrás”. Em primeiro lugar vem a natureza, que é transformada pela ação humana em meios de produção (relações materiais=infraestrutura). São essas relações materiais, segundo Marx, que sustentam todos as crenças, ideias, teorias e pensamentos da sociedade (ideologia=superestrutura). Em termos mais vulgares: “segundo vive o homem, assim ele pensa”. Ainda que tenha insistido que a superestrutura é reflexo da infraestrutura, Marx acentuou que ambas acabam por se influenciar reciprocamente (repudiando o materialismo mecanicista).

Karl Barth (1886-1968): A teologia de Barth é denominada dialética porque para ele o falar de Deus sempre expressa simultaneamente um sim e um não: está distante, mas também está próximo; sua Revelação, a Bíblia, é simultaneamente palavra de Deus e palavra de homens. Em seu comentário sobre Epístola aos Romanos, de 1919, Barth elaborou a dialética entre tempo e eternidade e entre Deus e o homem. Ora, se o homem e Deus estão numa relação antitética (de oposição), em que medida é possível encontrar uma síntese? Como superar a presença simultânea do “sim” e o “não” que atravessam o homem? Atormentado pelo fantasma de Hegel, Barth saiu em busca de uma resposta. Rejeitando as soluções dadas pela teologia natural (superação da dualidade pela razão humana) e pela teologia mística (superação da dualidade pela contemplação), o teólogo chegou a conclusão de que o homem não pode se livrar de sua “dualidade demoníaca” senão pela redenção, uma revelação exclusivamente vertical (de cima para baixo, como na tradição calvinista). Só ela permite ao homem saber que está numa condição de alienação e de morte. Enfim, o laço da contradição que atormenta o homem só pode ser desfeito por iniciativa divina. No ato da encarnação (visto como um ato de amor) Deus se faz culpado da contradição contra si mesmo. Dado o seu caráter dialético, a teologia Barth também ficou conhecida como “teologia da crise”. Entre os discípulos de Barth que mais se destacaram figuram Emil Brunner e Friedrich Gogarten.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 28 de março de 2013

EXPLORANDO A RESSURREIÇÃO DE JESUS NO BIBLE HISTORY DAILY

O Bible History Daily está disponibilizando gratuitamente para download o e-book "Easter: exploring the resurrection of Jesus". A apresentação dos temas abordados no e-book, com seus respectivos autores, segue conforme abaixo:

1. Sara Murphy - Introduction
2. Hershel Shanks - Emmaus: Where Christ Appeared
3. N. T. Wright - The Resurrection of Resurrection
4. Marcus J. Borg - Thinking about Easter
5. Michael W. Holmes - To Be Continued…

Para baixar o e-book você precisa se cadastrar no site do Bible Hirtory Daily


Jones F. Mendonça


quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A BUSCA PELO PAULO HISTÓRICO

São Paulo, de Andrea Di Bartolo
Um leitor atento nota que o autor da Primeira Epístola aos Tessalonicenses (há relativo consenso que se trata de Paulo de Tarso) parece crer que a volta de Cristo está tão próxima que ele e os crentes de Tessalônica terão o privilégio de presenciar esse evento:
1Ts 4,15 Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem.
Já na segunda carta o clima é de cautela:

2Ts 1,1-2 a que não vos demovais da vossa mente, com facilidade, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como se procedesse de nós, supondo tenha chegado o Dia do Senhor.

No terceiro capítulo o autor (trata-se do mesmo autor da primeira epístola?) chega a chamar a atenção daqueles que não querem mais trabalhar (há motivos para trabalhar se a parousia é iminente?). Este é apenas um dos motivos que levaram alguns estudiosos a duvidar da autoria paulina para algumas cartas tradicionalmente atribuídas a ele.

Aqueles que se interessam pelo tema talvez queiram ler o artigo “The Quest for the Historical Paul" (A busca pelo Paulo histórico), escrito pelo Dr. James Tabor, presidente do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte, onde ele é professor de origens cristãs e judaísmo antigo.

Leia aqui

Visite o site de James Tabor aqui


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

DEZ MINUTOS COM DOMINIC CROSSAN (entrevista)

O ex-padre católico romano Dominic Crossan, um dos maiores estudiosos do Jesus histórico, concedeu uma entrevista a Ron  Csillag, da Christian Century. Crossan é co-fundador do Seminário Jesus ao lado de Robert Funk. O foco da entrevista é o conteúdo do seu último livro,  “The greatest prayer" (A grande oração), sobre a oração do “Pai Nosso”. 

Quando perguntado se a o termo “Pai” para se referir a Deus não é um tanto quanto sexista, Crossan responde:
Quando eles dizem 'Pai', eu pergunto o que isso significava no mundo mediterrâneo, e [eu digo que] significa "chefe de família". Aceito o termo tradicional de 'Pai', mas eu não aceito os pressupostos patriarcais. Eu digo “Pai” (mas) interpreto "chefe de família". O ponto mais importante é quando você entende o que esta metáfora representa. 
Vou aproveitar o "gancho" e dar minha opinião sobre esse ponto destacado por Crossan. Percebo que os cristãos em geral tem problemas com as metáforas religiosas. No universo protestante o literalismo tem causado inúmeros problemas. Acredito que duas frases atribuídas a Lutero e cristalizadas no pensamento protestante são a causa disso:
Scriptura Sacra sui ipsius interpres” (A Escritura Sagrada é o seu próprio intérprete).
“Tradere scripturam simplici sensus, denn literalis sensus, der thuts, da ift leben,  khafft, lehr und kunft inen” (Transmitir a Escritura pelo sentido simples, porque o sentido literal, esse faz as coisas, lhe dá vida, consolo, força, ensino e saber).
É verdade que muitas passagens bíblicas podem ser explicadas a partir de outros textos da própria Bíblia. Também é verdade que o sentido literal se mostrou muito mais coerente que os devaneios da exegese alegórica da patrística e da era medieval. Mas levar esses dois ditos de Lutero ao extremo está longe de uma atitude sensata.


Dizer que a mensagem da Bíblia precisa ser atualizada não é o mesmo que negar sua inspiração.  Efatá!

A entrevista completa pode ser lida aqui.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

QUAL A DIFERENÇA ENTRE ZELOTAS E SICÁRIOS?

Por Jones Mendonça

Na Palestina do século primeiro dois grupos de resistência à opressão romana se destacavam: zelotas e sicários. Esses dois grupos entendiam que a libertação do povo só viria mediante a luta armada. Os sicários eram conhecidos por ocultarem punhais por debaixo da roupa. O termo "sicário" vem do latim sica (punhal). Os zelotas  (fervorosos), apesar de menos radicais que os sicários, também faziam uso das armas. Simão, por exemplo, era um zelota:
Lc 6,15 "Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelote";
At 1,13 "E, entrando, subiram ao cenáculo, onde permaneciam Pedro e João, Tiago e André, Felipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus; Tiago, filho de Alfeu, Simão o Zelote, e Judas, filho de Tiago".
Há quem suponha que Judas e Pedro também fossem zelotas [1] . Não é de estranhar que Pedro estivesse portando uma espada (e fizesse uso dela!) por ocasião da prisão de Jesus. A luta dos zelotas e sicários tinha motivação política e religiosa. Eles queriam ter plena liberdade de culto, sem as constantes intromissões romanas, que elegia e depunha sacerdotes a seu bel prazer. Eles também queriam que Israel fosse independente economicamente, como na época do rei Davi e da revolta dos macabeus (167 a.C.). Para se ter uma idéia de como a taxação era pesada, veja este decreto de César, em 47 a.C.:
“Em Sidom, eles [os judeus] deviam pagar o tributo (fóros) no segundo ano [do período do arrendamento], um quarto da semeadura, tendo que, além disso, pagar o dízimo a Hircano e a seus filhos, como foi pago por seus antepassados” [2].
Pois bem, como se não bastasse, ainda tinham que pagar um imposto para Jerusalém. Logo surgiram líderes carismáticos arrebanhando pessoas para uma revolta. Flávio Josefo , um historiador judeu que viveu no século primeiro, nos relata o caso de um egípcio:
“Um golpe [...] foi aplicado aos judeus pelo falso profeta egípcio. Um charlatão, que havia ganho a reputação de profeta, apareceu no país, arregimentou uma comitiva de cerca de trinta mil ingênuos, e levou-os através de um circuito do deserto ao monte das Oliveiras”[3].
Paulo, quando foi preso em Jerusalém foi confundido com um sicário:
"Não és porventura o egípcio que há poucos dias fez uma sedição e levou ao deserto os quatro mil sicários?" (At 21,38).
Segundo Hans Kippenberg, a revolta dos judeus contra o domínio romano tinha três metas:

Ø  Suspensão do pagamento dos tributos;
Ø  Suspensão dos sacrifícios pelo povo romano e seu César, e
Ø  Ereção da soberania política.

Kippenberg, apoiando-se em Baumbach e em documentos judaicos, diz que o termo sicários “foi a denominação dada ao movimento revolucionário rural da judéia” e os zelotas como sendo “um movimento sacerdotal” [4].

Sacerdotes e camponeses unidos pela mesma causa? Bem, os sacerdotes tinham lá suas razões para se "sujar" com o braço armado dos "impuros" camponeses galileus...

Notas:
[1] DREHER, Martin N. A igreja Latino-americana no contexto mundial, 1999, p.20.
[2] AJ XIV 203, in KIPPENBERG, Hans. Religião e formação de classes na antiga Judéia, 1988, p. 104.
[3] A Guerra dos Judeus 2.261-62, in CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus, 1995, p.63.
[4] KIPPENBERG, Hans. Religião e formação de classes na antiga Judéia, 1988, p. 121.


Imagem:
DÜRER, Albrecht
St Simão
1523
Gravura, 118 x 75 mm
Metropolitan Museum of Art, New York