sábado, 28 de junho de 2025

AGOSTINHO E O DISPENSACIONALISMO


1. Por séculos prevaleceu entre os cristãos a percepção de que os judeus eram perseguidos porque carregavam uma espécie de culpa por terem assassinado Jesus Cristo. Essa culpa explicaria as perseguições na Europa Medieval, no período da Reforma, na Alemanha nazista, etc. Mas, no século XVIII nasceu o “restauracionismo”, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento, que incluía o retorno dos judeus à Eretz Israel, à Terra Prometida. Aqui estão as raízes do sionismo cristão.

2. No século XIX essa crença ganhou um modelo sofisticado, conhecido como dispensacionalismo. Para os dispensacionalistas, a história da humanidade, desde Adão, deve ser dividida em sete estágios ou eras, sendo a primeira a “era da inocência” (Adão e Eva) e a última a “era do milênio” (o reinado de Cristo na terra). O mundo atual estaria vivenciando a sexta era, o “tempo da graça”, com início na morte e ressureição de Cristo. A batalha escatológica entre Israel e seus inimigos já estaria acontecendo (O Irã seria "Magog").

3. Mas de onde teria vindo essa ideia de dividir a história do mundo em sete eras? Bem, nesta semana comecei a ler o "Comentário ao Gênesis", escrito por Agostinho de Hipona, famoso teólogo cristão do século IV/V. Para minha surpresa Agostinho já associava os sete dias da criação a “sete idades do mundo”, também começando com Adão e Eva e terminando com o retorno triunfal de Cristo nos céus. Fico pensando se os dispensacionalistas não se inspiraram nas interpretações alegóricas de Agostinho.

4. Você encontra a exposição agostiniana a respeito das sete eras do mundo em “Sobre o Gênesis, Contra os maniqueus”, Livro I, cap XXIII.



Jones F. Mendonça

RELIGIÃO E RESSIGNIFICAÇÃO


1. Encravado entre o Vale de Cedron e o Vale de Josafá, em Jerusalém, ergue-se um monumento de pedra em telhado cônico conhecido ora como Túmulo de Absalão (pelos judeus), ora como Túmulo de Zacarias (pelos cristãos). Construído no primeiro século, o local tem sido um dos centros de peregrinação mais populares de Jerusalém desde o período romano tardio. Mas, afinal, a construção foi edificada por quem e com qual finalidade? Quer saber a verdade? Ninguém sabe ao certo.

2. Os judeus identificaram o local como sendo o túmulo de Absalão levando em conta o que diz 2Sm 18,18: “Absalão tinha resolvido erigir para si a estela que está no vale do Rei, porquanto dizia: não tenho filhos que conservem a memória de meu nome...”. O atual monumento seria uma ampliação construída ao redor dessa estela. Duas fontes diferentes, o Pergaminho de Cobre e o testemunho de Josefo, mencionam a existência do monumento em Jerusalém. Mas ambos estão apenas reproduzindo uma antiga tradição.

3. Desde o início do segundo século, após a expulsão dos judeus de Jerusalém, a região passou ser controlada pelos cristãos, que logo trataram de “cristianizar” a construção de pedra, identificada como sendo o túmulo de Zacarias, pai de João Batista. Uma inscrição, datada para o século IV, registra o seguinte: “Túmulo de Zacarias, piedoso mártir e pai de João”. A inscrição foi apagada e apedrejada por judeus durante séculos, que se sentiam afrontados com a mudança. Mas os sinais da inscrição foram preservados em ranhuras e mais tarde decifrados.

4. O fenômeno da ressignificação é um elemento muito presente nas religiões. A páscoa judaica, por exemplo, aparece relacionada à saída do Egito; para os cristãos passou a significar a ressurreição de Cristo. O Pentecostes era originalmente uma festa que celebrava a colheita; para os cristãos foi ressignificada e relacionada à inauguração do derramamento do espírito. Mesmo entre os judeus, as festas, os rituais, os locais sagrados e os códigos legais foram afetados pelo fenômeno da ressignificação.

5. De modo geral fingimos que nossa religião é imutável, que atravessa os séculos sem ser afetada pelas mudanças, pelas inovações, pelos novos costumes, pelo sincretismo. Mas não existe religião que não seja sincrética em algum nível, afinal, a religião é um produto da cultura. O grande desafio para o homem e para a mulher de fé consiste em articular suas crenças e suas tradições na eterna e contínua tensão entre o velho e o novo, entre o desejo de conservar e o desejo de mudar.




Jones F. Mendonça

sábado, 21 de junho de 2025

OS CABELOS PRETOS SÃO NÉVOA


1. Em Eclesiastes 11,10 lemos o seguinte conselho: “Afasta do teu coração o desgosto, e remove o sofrimento da tua carne, pois juventude e negritude são VAIDADE”. A “negritude” da qual o texto fala é certamente uma referência aos cabelos, por isso a Bíblia de Jerusalém optou por inserir a palavra “cabelo” no texto: “juventude e CABELOS negros são vaidade”. Mas por que cargas d’água os “cabelos negros e a juventude” seriam “vaidade”?

2. Do jeito que ficou traduzido, o texto parece sugerir que os cabelos negros funcionam como uma espécie de troféu da juventude, como símbolo do apego exagerado à própria imagem. Mas não se trata disso. O que ele está dizendo é: “afasta do teu coração o desgosto, o sofrimento, porque os cabelos negros, ou seja, tua juventude, é como a 'havel'” (הבל), como névoa. Os cabelos negros são temporários, sendo mais tarde substituídos pelos cabelos brancos, pela velhice.

3. Sendo mais claro: aproveita a vida, porque a juventude é breve como a névoa.


Jones F. Mendonça

JEREMIAS E A COMUNIDADE DA GOLAH

1. Tem sido uma prática comum, desde o início do século XX, dividir o Livro do Profeta Jeremias em quatro partes. A primeira parte, caps 1-25, consiste em uma coleção de oráculos poéticos cuja finalidade principal é expor com imagens aterradoras o juízo que será derramado sobre Judá e Jerusalém, sua capital. Repare que em 1,10 a “palavra de Yahweh dirigida a Jeremias” anuncia “destruição”, mas também “reconstrução”. Para bom entendedor: “destruição” para o povo de Judá; “reconstrução” para aqueles que foram levados para o exílio.

2. O tratamento diferenciado para o “povo da terra” e o “povo da golah” é reafirmado no finalzinho da primeira seção do livro (cap. 24), por meio da “parábola dos figos”. Os “figos bons”, representam a comunidade judaica da golah, do exílio, que será tratada “com bondade” e “retornará à terra” (24,5-6). Os figos ruins representam os judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito (24,8). Seu destino: “uma maldição em todos os lugares” (cf. 24,9), incluindo golpes com “a espada e a peste” até que “desapareçam do solo” (24,10).

3. A mensagem anunciada no começo e no final do livro do profeta Jeremias revela o projeto elaborado pela comunidade exílica do período persa: apresentar a comunidade da golah como única proprietária legítima da terra. Única com as credenciais para reconstruir Jerusalém e seu templo. A figura de Jeremias atua, portanto, como voz dos exilados, fornecendo, como nos diz Nathan Mastnjak, “um locus de autoridade cooptado pelos redatores persas para suas próprias inovações e agendas” [1].

[1] MASTNJAK, Nathan. Before the Scrolls: a material approach to Israel’s prophetic library. Oxford: Oxford University Press, p. 160.


Jones F. Mendonça

AGOSTINHO E A MULHER ÚTERO-SERVIL


1. Em seu Comentário ao Gênesis, Agostinho de Hipona oferece respostas a muitas perguntas que provavelmente inquietavam os teólogos de seu tempo. Por exemplo: “por que Adão nomeou aves e animais terrestres, mas não nomeou os peixes?” (Livro IX, capítulo XI). Como se vê, trata-se de uma pergunta ex-tre-ma-men-te, relevante. Bem, Agostinho foi fruto do seu tempo. Coisa da época. Deixemos o teólogo africano em paz. Mas o que preocupava Agostinho de verdade era o papel da mulher na criação. Por que Deus não optou por criar outro homem? Não teria sido (segundo ele, não eu) muito mais útil, muito mais sensato e racional? Não. Ele explica.

2. Agostinho apresenta duas boas razões para Deus ter criado uma mulher, e não um homem, para lhe fazer companhia. Vamos lá. Resposta número 1: a mulher foi criada para gerar filhos, ou, como ele diz, “para ajudá-lo a semear o gênero humano”. Para ajudar o primeiro homem a cultivar o jardim o melhor teria sido um homem, mas para “espalhar sementes”, uma mulher seria mais apropriada. Resposta número 2: Caso Deus tivesse criado outro homem, em igual nível de autoridade, estaria promovendo a discórdia. Era preciso criar uma mulher, submissa ao homem, de forma que pudesse cumprir suas ordens com obediência exemplar.

3. A mulher, para Agostinho, é um "útero-servil".



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O CRISTIANISMO NA CHINA COM FELIPE DURANTE


1. Um dos meus passatempos diários, enquanto sigo na van para o trabalho, é assistir vídeos e ler textos sobre a China. Procuro diversificar as fontes para evitar tomar como certas informações tendenciosas, generalizantes, distorcidas e enviesadas sobre o país. É preciso fugir de conteúdos nitidamente ideológicos, estejam eles alinhados à direita ou à esquerda. Além dos livros, um bom caminho é ouvir a opinião de brasileiros que trabalharam no país, como Sérgio Habib, empresário que morou muitos anos na China e atualmente é representante da JAC Motors no Brasil. Habib não demoniza nem idealiza a China, e esta é uma boa notícia.

2. Mas dá para confiar em tudo o que ele diz? Bem, é claro que não. Por isso é importante ouvir outros depoimentos. Nesta semana conheci o canal do Felipe Durante, engenheiro brasileiro que mora na China há cinco anos. Ele também já morou em Hong Kong e vez por outra conta algumas de suas aventuras na ilha. Voltemos à China continental. Felipe caminha pelo país com uma câmera, mostrando shoppings, hospitais, bairros pobres ou ricos e templos religiosos. Em um dos vídeos, ele entra em uma igreja cristã repleta de turistas que disponibiliza em seus bancos uma série de Bíblias escritas em mandarim. Ué, mas a Bíblia não é proibida na China?

3. Vamos com calma. Tanto na China como no Irã as religiões são controladas pelo Estado. No caso do Irã, por exemplo, há inúmeras igrejas cristãs em funcionamento, mas apenas aquelas cuja corrente foi devidamente registrada e autorizada, tais como a Igreja Católica Romana, Católica Armênia e até a Igreja Evangélica Presbiteriana, maior denominação protestante em funcionamento no país. Na China o registro das religiões organizadas também é obrigatório. Tanto as igrejas de orientação católica como protestantes são controladas por órgãos estatais: Catolicismo: Igreja Católica Patriótica Chinesa (CPC); Protestantismo: Movimento Patriótico das Três Autonomias (TSPM).

4. A CPC foi fundada em 1957, é formada por indivíduos que sequer são católicos e não reconhece a autoridade do Papa. Assim, bispos e padres são nomeados pela CPC, colocando os sacerdotes que não se submetem ao órgão estatal na clandestinidade. O Vaticano e o governo chinês vêm tentando chegar a um acordo, mas as negociações ainda estão em andamento. No âmbito protestante as preocupações aparecem relacionadas ao receio de que as igrejas de matriz protestante utilizem seus espaços religiosos para propagar ideologias contrárias às do Partido Comunista Chinês (PCC). O PCC sempre esteve ciente das fortes relações políticas, econômicas e ideológicas entre os missionários estrangeiros e os EUA e as potências da Europa.

5. Um site da internet bastante confiável sobre o protestantismo na China é o Chinasource.org. Embora seja um canal mantido por cristãos para a difusão do protestantismo na China, os artigos disponibilizados no site expressam equilíbrio e estão livres de clichês e lugares comuns.


Jones F. Mendonça

SHIBOLET, GALAAD E OS GALILEUS


1. De acordo com uma história contada no livro bíblico de Juízes, indivíduos da tribo de Efraim (Oeste) se distinguiam dos israelitas que viviam em Galaad (Leste) pelo sotaque, uma vez que não conseguiam diferenciar o som da consoante “shim” (שׂ) – som de “SH” – da consoante “samekh” (ס) – som de “SS”. Assim, para saber se uma pessoa era benjamita bastava pedir para que pronunciasse uma palavra como “shibolet” (שׂבלת). Se ela dissesse “sibolet” (סבלת) sua identidade era imediatamente revelada. Usando este artifício, o gaaladita Jafté teria descoberto e matado 42 mil homens de Efraim (Jz 12,1-7).

2. O Novo Testamento registra diferenças de sotaque entre nortistas, como Pedro, e sulistas, como os sacerdotes de Jerusalém. Os evangelhos nos informam que Pedro foi denunciado por seu sotaque ao tentar negar que conhecia Jesus, o “Nazareu”: “De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia” (Mt 26,73; Mc 14,70; Lc 22,59). Mas será que a diferença também tinha a ver com a pronúncia do “SH”? Não neste caso. Sabemos, graças a uma antiga anedota, que os galileus não conseguiam articular muito bem as chamadas “consoantes guturais” no dialeto aramaico falado na Palestina do I século.

3. Essa falta de habilidade impedia que os galileus conseguissem distinguir entre “hamâr” (burro), “hamar” (vinho), “‘amah” (lã) e “immar” (cordeiro), por isso se tornaram alvo de chacota entre os comerciantes de Jerusalém: "Ô galileu, tolo, o que tu precisas é de uma coisa para montar (hamâr, um burro), de algo para beber (hamar, vinho), algo para fazer uma roupa ('amar, lã), ou algo para um sacrifício no Templo (immar, cordeiro)?”. Esta curiosa zombaria aparece registrada na Mishah (bEribin, 53b) e é comentada por Geza Vermes em “As várias faces de Jesus” (Record, 2006, p. 326).

*“Shibolet” significa “espiga”, como em Jó 24,24: “como a cabeça da ESPIGA são cortados”, referindo-se aos “ímpios”.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de junho de 2025

OS LEGENDÁRIOS E A ROTA DO CAÇADOR

1. Nas últimas décadas, diversos movimentos cristãos, como o G12, Impacto radical e Veredas Antigas, prometeram experiências transformadoras lançando mão de reuniões ou eventos voltados para o crescimento espiritual ou fortalecimento das famílias. Com os Legionários não é diferente. O objetivo central do movimento, de acordo com seu fundador, Chepe Putzu, é fazer com que os homens assumam seu papel como “sacerdotes do lar” e “retornem à sua configuração original”, espalhando pelo mundo um modelo de homem baseado na “masculinidade de Jesus”.

2. Para buscar essa “masculinidade perdida” são organizadas caminhadas, acampamentos e desafios físicos e psicológicos em regiões montanhosas, conduzidas de um modo muito parecido com os acampamentos militares: escaladas, pernoite em barracas, gritos de guerra, ritos de passagem, uso de insígnias, uniformes, etc. Caso você queira saber um pouco mais sobre os Legendários, o melhor caminho é ir na raiz, buscando informações a respeito de como o movimento nasceu e qual o seu projeto original.

3. Um bom começo é ler “A rota do caçador”, escrito por Chepe Putzu, guatemaleco conhecido como “Legendário número 3” (Jesus seria o Legendário n° 1). Você também pode conhecer algumas ideias do fundador assistindo entrevistas disponíveis no YouTube, de forma que possa tirar suas próprias conclusões. Muitas das críticas feitas aos Legendários são falsas ou distorcidas, focadas em boatos que raramente podem ser verificados. É nas ideias de Chepe Putzu que eu encontrei os maiores problemas.



Jones F. Mendonça

LUCAS E O POBRE

1. Logo na abertura do Evangelho de Lucas o leitor é informado a respeito do nome do destinatário do texto: “excelentíssimo Teófilo” (1,3). A palavra grega traduzida por “excelentíssimo” é o superlativo de “κρατος” (kratos), que significa “poderoso”. Assim, esse tal Teófilo, seja quem for, é alguém “poderosíssimo”, ou, como dizemos hoje, “excelentíssimo” ou “ilustre”. Em suma: uma pessoa importante. Só recebem este tratamento no Novo Testamento o governador Félix e seu sucessor, Festo (At 23,26; 24,3; 26,25).

2. “Lucas” escreve para Teófilo, o “excelentíssimo”, com objetivos claros: “narrar os fatos que se cumpriram entre nós [os seguidores do Crucificado], desde o princípio”, “de modo ordenado”, “após acurada investigação” (Lc 1,1-3). O autor do texto acrescenta que a composição do relato foi feita com a ajuda de “testemunhas oculares e ministros da palavra”. Assim, este autor – que não sabemos sequer se é Lucas, “o médico” de Col 4,14 – indica que pretende contar a Teófilo a história de Jesus, tal como havia recebido de outras pessoas.

3. Em “Lucas” Jesus é o defensor dos humildes, dos famintos, constantemente oprimidos pelos “homens de coração orgulhoso”, pelos “ricos” (Lc 1,51-53). Em "Lucas" Jesus veio “evangelizar os pobres” e “libertar os oprimidos” (4,18). Em “Lucas” são “bem-aventurados os pobres” e malditos os “ricos” (6,20.24). Em “Lucas” o pobre “coberto de úlceras”, que se alimenta da mesa do rico, é conduzido ao “seio de Abraão” e o rico às chamas (16,19-26). Lucas apresenta um reino de ponta a cabeça. Segue uma tradição antiga, expressa na oração de Ana:

“Os que viviam na fartura se empregam por comida,
e os que tinham fome não precisam trabalhar.
A mulher estéril dá à luz sete vezes,
e a mãe de muitos filhos se exaure”

"É Iahweh quem empobrece e enriquece,
quem humilha e quem exalta"

"Levanta do pó o fraco
e do monturo o indigente" ( 1Sm 2,5.7.8 ).



Jones F. Mendonça

JESUS COMO "MACHO ALFA"


1. Uma das propostas centrais dos “Legendários”, movimento cristão fundado por Chepe Putzu em 2015, é a seguinte: o homem precisa retornar à sua configuração original, e essa “configuração original” diz respeito ao modelo de masculinidade exercida por Jesus. Bem, já pintaram Jesus de diversas maneiras, inclusive há um “Jesus saradão”, como o “Cristo Ressuscitado”, esculpido por Michelangelo em 1516, e o Jesus marombado exposto em “Gólgota”, obra produzida por Pordenone em 1521. Mas Jesus como “Macho Alfa”... essa é nova.

2. É interessante que todos esses grupos interessados em apresentar Jesus como modelo de macho gostam de enfatizar que a masculinidade ideal é aquela que expressa atributos que valorizam uma dimensão provedora/protetora do macho, que, inclusive, seria natural, inata. Assim, o homem ideal seria aquele que protege sua fêmea e sua prole, que provê recursos para sua subsistência, etc. Acontece que o Jesus dos evangelhos não tinha moradia fixa, não tinha mulher, nem filhos. Até sua atividade profissional era precária: era um tekton, um artífice.

3. Faz parte da natureza humana criar modelos capazes de estruturar a vida, funcionando como norte, como horizonte de orientação. Assim, criamos modelos de sociedade, de estrutura familiar, de códigos morais e até mesmo modelos de comportamento que esperamos ser reproduzidos por nossos filhos e filhas. Mas esses modelos não caem do céu. São o resultado da interação entre humanos e meio ambiente, que se desenvolve a partir de uma relação dialética, de troca. Tanto a “Machonaria” como os “Legendários” descambam em essencialismo biológico barato.

4. Pior do que isso. Buscam legitimar esse essencialismo biológico usando textos ou personagens da Bíblia.




Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de junho de 2025

COMO SATANÁS VIROU "LUCIFER" EM 5 PONTOS CURTOS

1. A palavra latina “lucifer” nada tem a ver com “diabo”, “satanás” ou “capiroto”. Ela significa simplesmente “ASTRO BRILHANTE”, como em Jó 11,17 na versão latina: “tua vida ressurgirá como o meio dia, a escuridão será como LUCIFER”, ou seja, como um “astro brilhante”, provável referência a Vênus, planeta que brilha no céu como uma estrela, e que se destaca por sua luz fulgurante no céu da manhã, daí o título “estrela da amanhã”. Vênus é o terceiro astro mais brilhante no céu, atrás da lua e do sol.

2. Na versão latina da Bíblia o termo “lúcifer” reaparece em Is 14,12: “como caíste do céu, ‘lucifer’, filho da manhã, como foste atirado à terra, vencedor das nações”. Neste texto, o rei da Babilônia (cf. 14,1) é comparado a um ASTRO BRILHANTE, que devido à sua arrogância “foi precipitado no Sheol”, o mundo dos mortos (cf. 14,9-11). O texto fala da queda de um rei, não de um anjo ou ser divino. Outro soberano “lançado por terra” é o rei de Edom (cf. Ob 1,2-4).

3. A palavra “lúcifer” reaparece uma última vez em 2 Pe 1,19: “...lucifer oriatur in cordibus vestris”, ou seja, “que o ASTRO BRILHANTE resplandeça em vossos corações”. Veja que “lúcifer”, ou melhor, o “astro brilhante”, neste caso, é uma referência a Jesus, associado à luz, ao brilho, ao resplendor. Deus também é associado à luz em Jo 1,5 (“Deus é luz...”) e em Tg 1,17 (“Pai das luzes”).

4. Mas de onde veio a ideia de que “Lúcifer”, com letra maiúscula, é o nome do “capiroto”, do “zarapelho”? Essa é fácil. Quando o Antigo Testamento foi traduzido para o latim, Jerônimo, o tradutor, escolheu “lucifer” como palavra correspondente a “astro brilhante” em Is 14,12. E como ele interpretou esse “astro brilhante” como sendo Satanás, a coisa pegou.

5. E foi assim que “Satanás” ganhou nome próprio: “Lucifer”. Um nome dado pelos homens, não pelos deuses.



Jones F. Mendonça

A FÉ COM LÓGICA É MORTA

1. Por alguma razão o algoritmo do YouTube entende que eu aprecio debates entre judeus e cristãos sobre a figura de Jesus, em particular sobre sua messianidade. Os debatedores que mais pipocam na minha tela são Tassos Lycurgo (apologeta cristão) e o rabino Micha (judeu), ambos apegados à interpretação fundamentalista de suas respectivas Escrituras.

2. De um lado Tassos tenta demonstrar que Jesus é o messias tal como profetizado nas “Antigas Escrituras”. Do outro lado Micha se esforça para comprovar que esta declaração é falsa e não encontra apoio nos textos sagrados. O nível do debate é baixíssimo, com ataques pessoais, leituras equivocadas e tentativas de desqualificar o oponente. Que canseira...

3. Não seria mais honesto e maduro o adepto da fé cristã dizer: “creio que Jesus é o messias e que ressuscitou dos mortos e não preciso provar nada pra ninguém!”? E não seria igualmente honesto e maduro o rabino declarar: “a Torah é a luz do mundo, creio que o messias ainda está por vir e ninguém tem nada a ver com minhas crenças!”?

4. O número de visualizações que esse tipo de debate alcança chega a passar de meio milhão. Sim, é surpreendente (e trágico!). Crenças não se provam, não se justificam racionalmente e nem mesmo exegeticamente. Crenças são o resultado de experiências (individuais ou coletivas), cristalizadas posteriormente em fórmulas de fé, em dogmas.

5. O cristão crê de um jeito, o judeu de outro, o espírita, o hindu, o budista, o muçulmano, o umbandista, o bahaísta e o zoroastrista de outro e de outro modo. É saudável que todos dialoguem em nome de um bem comum. Mas o sujeito de fé que tenta provar que tal religião é a mais verdadeira ou mais falsa faz papel de padego, boboca, obtuso, pacóvio, sandeu.



Jones F. Mendonça

QUEM ESCREVEU A BÍBLIA?

1. Uma tradição muito antiga atribuiu a determinados personagens bíblicos a autoria de livros ou blocos de livros. Assim, Moisés seria o autor do Pentateuco, Josué o autor do livro que leva seu nome, Jeremias o autor do livro do Reis, etc. A grande verdade, no entanto, é que essas atribuições de autoria são meramente especulativas. Ao que tudo indica, os livros foram escritos por "autores" e não por um autor apenas.

2. Muitos dos códigos legais presentes no Pentateuco, por exemplo, aparecem registrados de forma repetida, porém modificada, sugerindo que um código mais antigo foi relido e atualizado, de forma que pudesse dar respostas a novos problemas e desafios, não contemplados no código mais antigo. Isso acontece, por exemplo, em relação às leis relacionadas aos escravos, aos empréstimos a juros e ao amor ao inimigo.

3. Em relação ao livro de Josué, uma série de fórmulas estereotipadas, tendências teológicas e de estilo, sugerem que o livro foi escrito por indivíduos de alguma maneira vinculados ao Deuteronômio. Na verdade não apenas o livro de Josué possui afinidades com o Deuteronômio. São igualmente classificados como "deuteronomistas" os livros de Juízes, Samuel e Reis. Reflexos da "teologia deuteronomista" também podem ser encontrados em profetas como Jeremias.

4. Desde o início do século XX o livro do profeta Jeremias vem sendo dividido em quatro partes, relacionadas a autores diferentes. Textos poéticos, predominantes nos capítulo 1-25, seriam os mais antigos. Textos em prosa, de natureza "biográfica", seriam mais recentes. Um terceiro grupo de textos teriam sido redigidos por "deuternomistas"; e um último, de natureza mista, revela grande preocupação em apresentar um futuro glorioso para Jerusalém e Judá e punição aos seus inimigos.

5. Uma matéria publicada há alguns dias no Haaretz (Israel), apresenta novas ferramentas de análise do texto que parecem promissoras para nos ajudar a datar os textos. Boa leitura! 



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de junho de 2025

ELISEU, GEASI E A "UNÇÃO DE PROFETA"

1. Nos capítulos 4-8 do Segundo Livro dos Reis tomamos contato com as aventuras de Eliseu e seu servo, Geasi. O capítulo 5 registra uma história conhecida como “A cura de Naamã”, cujo desfecho é ao mesmo tempo cômico e dramático. Sentindo-se grato a Eliseu pela cura de uma doença, o general Naamã oferece ao profeta uma generosa recompensa, que é imediatamente rejeitada. Geasi, servo de Eliseu, pensou com seus botões: “Vou pedir essa recompensa em nome de meu senhor; ele nem vai desconfiar”. Mas o texto diz que “o coração de Eliseu andou com Geasi” até Naamã (5,26), ou seja, Eliseu percebeu a malandragem do moço.

2. Para surpresa de Geasi (e do leitor), Eliseu dá a seu servo uma resposta inesperada: “agora que recebeste a prata, pode comprar com ela vestes, olivais, vinhas, bois, servos e servas” (5,26). Eita! Então o golpe é válido? Não, não. Acontece que no verso seguinte Geasi recebe de seu mestre uma terrível notícia: “a doença de Naamã se apegará a ti e à tua posteridade para sempre” (5,27). E, de fato, é o que acontece: a doença de Naamã é transferida para Geasi. A história tem finalidade moralizante: 1) Um profeta não deve operar milagres em benefício próprio; 2) Jamais desrespeite um profeta (como a história das ursas, no cap 2).

3. De modo geral, todas as histórias envolvendo algum tipo de punição dirigida àqueles que se levantam contra um profeta têm a mesma finalidade: expor aos ouvintes dessas narrativas – indivíduos de um passado remoto – que determinado comportamento é considerado inaceitável. Note que na trajetória do êxodo Moisés tem sua capacidade de liderança desafiada diversas vezes. E todos aqueles que o desafiam ou morrem ou são punidos severamente. A leitura de histórias como esta no ambiente eclesiástico contemporâneo esbarra em diversos desafios, uma vez que a mensagem que o texto pretende comunicar é exatamente esta: não se meta com o "ungido" de Yahweh. 

4. Não faltam líderes vendo a si mesmos como "Moisés", "Eliseu" ou "Davi", cuja autoridade, alegadamente dada diretamente por Deus, jamais poderá ser questionada.  




Jones F. Mendonça

OS "MACHONÁRIOS" E JÔNATAS "DE GATINHAS"

1. O líder dos Machonários abriu sua Bíblia no capítulo 14 do Segundo Livro de Samuel, versão Almeida Revista e Atualizada. O texto, se você não sabe, narra a batalha entre Jônatas, filho de Saul, e os filisteus, que desafiavam com ofensas Jônatas e seu escudeiro. Os Machonários que acompanhavam a leitura ficaram empolgados: “vamos lá, Jônatas, acaba com esses maricas!”. O líder da reunião fez uma pausa, respirou fundo e reproduziu as palavras dos filisteus dirigidas a Jônatas e a seu companheiro: “subi a nós, e nós vos daremos uma lição”.

2. A galera que lotava o galpão foi ao delírio: “parte pra cima, Jônatas, mostre a esses incircuncisos o poder de tua testosterona”. Os brados eram tão altos que faziam tremer as telhas da cobertura de zinco do galpão. Logo depois veio o silêncio. Era grande a expectativa. Qual seria a atitude tomada pelo grande guerreiro machonário? Golpes de faca? Luta corporal? Disparo de flechas certeiras? Movimentos com espada? Leia você mesmo: “Então trepou Jônatas DE GATINHAS, e o seu escudeiro atrás dele” (2Sm 14,13). A decepção foi geral.

3. Um líder famosinho, arqueólogo do YouTube com voz de locutor de rádio que fazia parte da liderança tentou intervir, assumindo o microfone: “pera lá, no hebraico não diz isso não...”. E começou a ler em hebraico: “vayoal yonatan al-yadayv veal-raglayv”. Mas as palavras do arqueólogo do YouTube soavam como “ta-ta-ti, tateté, valoya, me-meme”. Não eram palavras brutas o suficiente. Diziam que parecia um Bebê Reborn falando. O clima ficou tenso e a confusão só aumentava.

4. A reunião acabou e os machonários voltaram pra casa sem conseguir resgatar a tão sonhada macheza perdida.



Jones F. Mendonça