sexta-feira, 25 de abril de 2025

SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DO CRUCIFICADO

1. Na história da arte cristã, o Cristo crucificado foi retratado de duas formas elementares: o Christus Victor (Cristo vitorioso) e o Christus Patiens (Cristo sofredor). O primeiro foi moldado a partir da teologia dos chamados Pais da Igreja, e enfatizava a vitória de Cristo sobre a Cruz, o pecado, a morte e as forças destrutivas do mal. O segundo ganhou força a partir do final da Idade Média, influenciado pela teologia de Anselmo de Cantuária, teólogo do século XI. A ideia era apresentar Cristo como “homem de dores”, exaltando seu corpo ensanguentado, flagelado, desfigurado pelos açoites.

2. Um exemplo do Christus Victor pode ser visto na tela “Ressurreição”, de Matthias Grünewald, exposta no Museu Unterlinden, França (IMAGEM DA DIREITA). A tela mostra na extremidade direita um colorido Cristo ressurreto em ascensão acima do túmulo. O esquife está aberto, os guardas desmaiados, a figura de Cristo aparece cercada por um grande halo resplandecente em contraste com a escuridão do céu noturno. Com os braços estendidos mostrando as feridas em suas mãos, Cristo parece esboçar um singelo e sereno sorriso em seu rosto. Uma visão gloriosa.

3. O Christus Patiens fez e ainda faz muito mais sucesso nas representações artísticas e no imaginário religioso cristão. É um erro pensar que o essa representação só ganhou destaque na teologia católica. Lutero, no debate de Heidelberg, de 1518, propôs a sua “teologia da cruz”, buscando relacionar os sofrimentos de Cristo aos sofrimentos do cristão. O Cantor Cristão (p. ex. hinos 84 e 94) está repleto de canções que exaltam o sofrimento de Cristo na Cruz. E o que dizer do filme "A Paixão de Cristo", um espetáculo de sangue, violência e mau gosto?

4. Alguns artistas, como o russo Viktor Vasnetsov, buscaram retratar Cristo na cruz sem enfatizar o sangue e as marcas da violência que dilacerou sua carne e desfigurou seu corpo (IMAGEM DA ESQUERDA). Repare que a asa de um anjo cobre (propositalmente?) a chaga aberta do lado direito. Outro detalhe: a face de nenhum dos anjos é exibida com o propósito de destacar o semblante sereno de Cristo, no centro.


Jones F. Mendonça

O PAPA COMO ANTICRISTO: UMA BOBAGEM QUE JÁ DURA QUASE MIL ANOS

1. A crença ainda muito popular que supõe ser o papado a manifestação do anticristo pode ser encontrada no século XII, difundida pelos cátaros e valdenses, grupos cristãos que rejeitavam alguns dos elementos centrais da ortodoxia católica. No século XIV foi repetida por John Wyclif, reformador religioso inglês considerado um dos precursores da Reforma Protestante ao lado de Jan Hus.

2. Mas o responsável pela popularização da crença foi Lutero, que em seus escritos não cansa de acusar “o Papa e seus comparsas” de tentarem ocupar o lugar de Cristo, colocando-se acima das Escrituras. O líder supremo da Igreja também é criticado por se deixar seduzir pela “Coroa da soberba”, ao buscar reunir em suas mãos o poder espiritual e o poder temporal.

3. Lutero usa as expressões “contracristo” e “anticristo” para se referir não apenas ao Papa e a seus auxiliares, mas a todos os que contrariam o que Cristo fez e ensinou. Em sua Carta à Nobreza Alemã o monge agostiniano declara com todas as letras: “o Papa é o anticristo”. Mas é preciso ler as cartas de Lutero tendo em vista um contexto muito particular, relacionado ao catolicismo de seu tempo e à sua experiência de vida.

4. Não tenho ideia do que Lutero diria se ressuscitasse hoje, sendo capaz de avaliar e julgar o que é ou não é anticristão ou contracristão. Muitas são as denominações, há líderes para todos os gostos, diversas são as crenças, múltiplas são as maneiras como se articulam fé e realidade concreta. Mas se este julgamento estivesse em minhas mãos, Francisco, que nos deixou recentemente, teria seu nome imortalizado na calçada dos bons exemplos.

5. Descanse em paz, Francisco. E que seu legado jamais seja esquecido.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 14 de março de 2025

O QUE SIGNIFICA "POBRES DE ESPÍRITO"?

1. A expressão “pobres de espírito” (Mt 5,3), presente no Sermão do Monte de Mateus, aparece ao lado de “mansos” (5,4), “aflitos” (5,5), “promotores da paz” (5,9) e “perseguidos” (5,10). No contexto parece claro que ser “pobre de espírito” ou indica uma virtude (como os “mansos” e “promotores da paz”); ou a condição de quem precisa do auxílio divino (como os “aflitos” e “perseguidos”). A segunda opção parece ser a mais acertada: ser “pobre de espírito” é ser “oprimido”, “desafortunado”, “desamparado”, “humilhado”.

2. Mas de onde teria vindo essa expressão? Bem, é bastante provável que o grego "πτωχοι τω πνευματι" corresponda ao hebraico “שפל־רוח” ( = “rebaixado de espírito”, cf. Pv 16,19 e Is 57,15) ou “עני ונכה־רוח” ( = “pobre e ferido de espírito”, cf. Is 66,2). Em Provérbios, “pobre de espírito” é colocado em oposição aos “exaltados”; Isaías 57,15 destaca que embora resida nas alturas, Yahweh está junto dos “pobres de espírito”; Isaías 66,2 faz a mesma comparação: Yahweh tem nos céus o seu trono, mas seus olhos estão voltados para o “pobre e o ferido de espírito”.

3. A tradução “espiritualmente pobres”, proposta pela NTLH, vai em outra direção, sugerindo que esses indivíduos são dotados de uma espiritualidade empobrecida, debilitada, adoecida. Outra tradução que se desvia do sentido que o texto quer dar é “humilde de espírito”, pessoa simples, que não procura se colocar acima das demais. O ideal seria “humilhada em espírito”, porque esta é sua condição: humilhada, rebaixada, subjugada, oprimida pelos poderosos. Deus, assim, se coloca como aquele que estende a mão aos “pobres de espírito”, ou seja, a todos aqueles que por alguma razão se sentem pisados como a lama das ruas.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de março de 2025

O "COLO DO ÚTERO" NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Quando uma mulher caminha para os últimos dias da gravidez, o colo do útero começa a se preparar para a saída do bebê, dilatando-se e tornando-se mais flexível. É óbvio que os antigos israelitas não tinham uma compreensão detalhada a respeito da fisiologia do parto, mas as parteiras sabiam que uma dilatação precisava acontecer e que uma ajuda do bebê era importante.

2. Aquilo que hoje chamamos de “colo do útero” era conhecido em hebraico como “mishber” (משבר), algo como “local do rompimento”. Dois exemplos. Em Isaías 37,3 lemos este lamento atribuído ao rei Ezequias: “os filhos chegaram AO PONTO DE NASCER (mishber), mas não há força para dar à luz” (Bíblia de Jerusalém). Uma tradução literal seria: “os filhos se achegam AO LOCAL DO ROMPIMENTO, mas não há força para fazê-los nascer”.

3. O verso aparece no contexto da invasão assíria, cujo exército estava estacionado em Laquis, a poucos quilômetros de Jerusalém. A imagem de mulheres em trabalho de parto, incapazes de dar à luz, fui usada pelo rei Ezequias para enfatizar sua tristeza frente à ameaça imposta pelo exército inimigo, que revelava ser capaz de permitir a vida ou declarar a morte dos filhos do seu povo. A fraqueza da mãe reflete a fraqueza de Jerusalém.

4. No livro do profeta Oséias, o “mishber”, nosso “colo do útero”, reaparece, desta vez enfatizando a apatia do bebê, que não reage frente aos esforços desesperados da parteira: “os cordões do parto vêm sobre ele, mas ele é filho não sábio, porque é tempo [de nascer], mas não toma posição no local dos filhos” (Os 13,13). Os “cordões do parto” são as dores do parto e a não “tomada de posição” indica a falta de cooperação do bebê com a parteira e com a mãe.

5. Mishber só aparece nesses dois textos: Is 37,3 ( = 2Rs 19,3) e Os 13,13. O primeiro funciona como retrato do desespero: “Jerusalém está cercada, o que será de nossos filhos”. O segundo compara um “bebê insensato” – pouco disposto a colaborar com o trabalho da parteira – com Jerusalém, indiferente aos apelos de seu Deus (13,16).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

AS CIDADES DA "TERRA DE NOD"


1. Quem faz uma leitura atenta do texto do Gênesis prestando bastante atenção na narrativa, percebe que os descendentes de Caim fundam uma cidade. E por que eles fundam uma cidade? Bem, porque se para Adão a terra se tornou apenas pouco produtiva (Gn 3,17), para Caim ela se tornou estéril (4,11-12). Assim, o que resta aos cainitas é construir cidades, criar animais, inventar instrumentos musicais e fundir metais. Agricultura, nem pensar!

2. A imagem que acompanha este post vem do Manuscrito Egerton de Gênesis, produzido entre 1350-75. Ela exibe alguns dos descendentes de Caim mencionados em Gn 4,17-24: Henoc (construtor de cidades), Jabel (habitante de tendas e cuidados de rebanhos), Jubal (pai de todos os que tocam lira e charamela) e Tubalcaim (pai de todos os laminadores de cobre e ferro). Noema aparece fiando um tecido, mas o ofício de tecelã não é mencionado no texto, é criação do artista.

3. Todos os descendentes de Caim nascem a partir de sua união com uma mulher cujo nome não é mencionado (4,17). Quem é ela? Bem, o texto apenas diz que ela é da “terra de Nod” ( = terra da peregrinação, cf. 4,16). Quem lê o relato como se fosse um texto jornalístico ou algo produzido pela pena de um historiador fica confuso: “quem são os pais dessa moça”? Seria uma filha desconhecida de Adão e Eva? Ou, quem sabe, a serpente transformada em mulher?

4. Mas o texto não possui natureza histórica. Tudo o que ele pretende é comunicar uma mensagem. Guarde isso no coração e durma bem.



Jones F. Mendonça

TEOLOGIA E FILOSOFIA

1. Desde o momento em que o cristianismo se tornou uma religião proselitista, jamais deixou de empregar a filosofia para expor e dissecar os dogmas de fé. Paulo, por exemplo, claramente faz uso de elementos da filosofia platônica e estoica para comunicar sua mensagem. Quando diz, por exemplo, que as realidades espirituais são percebidas “como que por espelho” (1Co 13,12) ou que algumas ações humanas devem ser condenadas por agirem “contra a natureza” (Rm 1,26), toma por empréstimo categorias mentais e expressões linguísticas tomadas do platonismo e do estoicismo.

2. Os Pais da Igreja dissecaram os dogmas de fé a partir da filosofia neoplatônica; os escolásticos fizeram isso lançando mão da filosofia aristotélica; os reformadores retornaram a Platão; os protestantes liberais usaram os óculos da filosofia kantiana; Karl Barth, na primeira fase de seu pensamento, buscou apoio no existencialismo de Kierkegaard. E tem mais. Os teólogos da libertação viram até a possibilidade de dialogar com a filosofia marxista. E pode isso, Arnaldo? Ora, claro que pode. Se foi possível instrumentalizar Platão, Aristóteles, Kant e tantos outros, porque não seria legítimo articular fé e filosofia a partir de Marx?


Jones F. Mendonça

A VOZ DE JEREMIAS

1. Alguns textos que compõem os livros proféticos são realmente difíceis de interpretar. Isso acontece porque nem sempre é possível identificar a voz de quem fala. Um oráculo pode começar com a fala divina e no meio do caminho alternar para outra voz (e outro tempo verbal). Quero tomar como exemplo um trecho do livro do profeta Jeremias (Jr 9,9-11).

2. Veja que em 9,9 a voz que fala é a de Yahweh: “Não deveria eu castigá-los por isso? ...contra uma nação como esta não deveria eu vingar-me?”. No verso seguinte a imagem evocada pelo texto é a de alguém que chora: “sobre as montanhas elevo gemidos e prantos”. Pergunta: quem chora é o próprio Yahweh ou o profeta que anuncia sua mensagem? Isso não fica claro.

3. No v. 11 Yahweh expõe nova sentença contra a capital de Judá: “Eu farei de Jerusalém um monte de pedras”. Temos assim o seguinte quadro: v. 9: Yahweh ameaça punir Jerusalém (futuro); v. 10: Alguém chora por uma cidade que aparentemente já está destruída (presente); v. 11: nova ameaça contra Jerusalém (futuro).

4. É possível que um editor tenha enxertado o v. 10 entre os vv. 9 e 11, visando dar mais dramaticidade ao texto. Neste caso o choro seria o do profeta. Também é possível que os três versos venham da mão de um mesmo autor. O choro do v. 10 seria expressão da tristeza divina por aquilo que a própria divindade fará em breve contra Jerusalém.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

ZADOQUITAS E AARONITAS

1. Lemos em 2Sm 8,18 que “os filhos de Davi eram sacerdotes”. Esta declaração [em tese] é problemática, porque os sacerdotes precisavam pertencer à linhagem de Aarão (Ex 28,1). Alguns tradutores, na maior cara de pau, traduzem assim: “Os filhos de Davi eram Chefes de Estado”. Mas o hebraico registra coheniym (כהנים), sacerdotes. Os filhos de Davi podiam ser sacerdotes? Como?

2. Ezequiel 48,11 traz à tona outra questão. De acordo como profeta Ezequiel, os sacerdotes precisavam ser “filhos de Zadoc” e não “filhos de Aarão”: “Darás aos sacerdotes levitas, aos da família de Zadoc, que se aproximam de mim para me servirem” (Ez 43,19). Trocando em miúdos, precisavam ser zadoquitas, não aaronitas. Zadoc, para quem não sabe, foi sacerdote sob o governo de Davi (2Sm 8,17).

3. O Deuteronômio deixa as coisas um pouco mais complicadas, uma vez que usa a expressão “sacerdotes levitas” (Dt 17,9). O texto parece sugerir que todos os levitas podiam ser sacerdotes e não apenas os “Filhos de Aarão”, um ramo restrito dos levitas. Eita, que a coisa está ficando complicada. Candidatos até aqui: [1]“filhos de Davi”, [2]“Filhos de Aarão”, [3]“filhos de Zadoc” e [4]“Filhos de Levi”.

4. Outras figuras que aparecem exercendo o papel de sacerdotes são Moisés (Sl 99,6), Jetro (Ex 18,12) e Melquisedec (Gn 14,18-20). Nestes casos é preciso dar um desconto, porque é possível argumentar (em perspectiva sincrônica) que todos exerceram a atividade antes da instituição do sacerdócio. Mas o que dizer do personagem misterioso mencionado no Sl 110,4: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”?

5. Quem é esse “tu”? Alguns acham que é Davi e que o texto procura dar legitimidade às atividades sacerdotais exercitas por Davi e seus “filhos”. Neste caso Davi seria sacerdote de uma linhagem especial, como Melquisedec. Outros acham que a ideia é dar legitimidade ao sacerdócio zadoquita, que também não era levita (alguns até sugerem que ele era um sacerdote jebuseu). Segura essa, varão!

6. A verdade é que o livro de Hebreus viu no Sl 110,4 uma abertura possível, capaz de legitimar a classificação de Jesus como sacerdote, mesmo sendo da tribo de Judá, portanto, não levita: “Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote para a eternidade, segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 6,20). O autor de Hebreus parece estar dando uma resposta a opositores que não viam sentido em tratar Jesus como sacerdote.

7. No ponto 4 ficou faltando outro personagem não levita que exerceu atividades como sacerdote: Samuel. Acontece, minha agente, que o moço era da tribo de Efraim, era efraimita... (cf. 1Sm 1,1). 


Jones F. Mendonça