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quarta-feira, 3 de junho de 2009

POR UMA NOVA TEODICÉIA: ENTRE EPICURO E CALVINO

Por Jones Mendonça


Sempre que passeio de bicicleta com meu filho a conversa acaba num assunto filosófico. Ele começa a fazer perguntas do tipo “quem criou Deus?”, ou “até onde vai o universo?”. São perguntas complicadas, mas sempre dou um jeitinho de responder. Certa vez ele me veio com a velha pergunta: “pai, porque Deus não acaba de vez com os homens maus?”. Assim ele me fustigava a lhe oferecer uma teodicéia (explicação que visa justificar a presença do mal). Pensei em citar o texto bíblico que diz que “não há justo, nem sequer um”[1], assim poderia lhe dizer que Deus não acaba com os homens maus simplesmente porque não há nenhum homem completamente bom. Mas essa resposta seria muito teológica para uma criança e ele certamente não ia se dar por satisfeito. No fundo, no fundo, o que ele queria mesmo era saber se Deus, sendo tão poderoso, não podia acabar com a fome, com as pestes, com a violência, e com tanta maldade que existe no mundo. Parti então para a tentativa de lhe explicar o conceito de livre arbítrio. “Mas o que é isso pai?”, perguntou o menino curioso. Disse-lhe que para que não fôssemos como robôs, condenados a só fazer aquilo que os donos mandam, Deus nos fez livres, mas como conseqüência disso o mal passou a ser uma possibilidade (que acabou se tornando real). Após essa resposta surgiu uma pergunta que me levaria ao total embaraço: “se somos livres, então é possível que o mal nos domine por completo e acabe levando o mundo ao mais tenebroso caos?”. Não! Disse eu apavorado. No final Deus sempre vence, afinal Ele dirige a história. Ora, disse ele, mas se Deus dirige a história, como você pode dizer que somos livres? A conversa tinha chegado agora ao seu ponto crucial. Será que é possível dirigir a história sem dirigir os homens? Somos realmente livres? O paradoxo que atormenta teólogos, filósofos e até mesmo cientistas geniais tinha exposto sua face medonha à luz da nossa descontraída conversa.


Stephen Hawking, considerado por muitos o mais brilhante físico teórico desde Einstein, e que ocupa a cátedra que foi de Newton na Universidade de Cambridge, dedicou um capítulo de seu livro “Buracos negros, universos bebês e outros ensaios” ao tema “estará tudo determinado?”. Apesar de sua inquestionável e fantástica genialidade, Hawking também se revela intrigado com o tema:
Seremos realmente senhores de nosso destino? Ou tudo que fazemos está determinado e preestabelecido? Em favor da predestinação, costuma-se dizer que, sendo Deus onipresente e estando acima do tempo, Ele saberia o que ia acontecer. Mas nesse caso, como poderíamos ter algum livre-arbítrio? E se não temos livre-arbítrio, como podemos ser responsáveis por nossos atos? Seria difícil considerar uma pessoa culpada se ela está predestinada a roubar um banco. Nesse caso poderíamos puni-la por isso? [2]
O livro nada tem a ver com religião, aliás Hawking aparentemente nem crê num Deus pessoal, apesar disso, questões envolvendo livre arbítrio, determinismo e responsabilidade pessoal também o deixam encucado. Desde que o homem começou a observar a natureza com as lentes da razão, na Grécia Antiga, o tema tem sido marcado por debates candentes. Ao adentrar nos átrios da religião, os ânimos se tornam ainda mais aflorados, já que passa a não se tratar mais de mera opinião, mas de fé, de verdade, de certeza.
A discussão sobre a influência dos deuses no mundo dos mortais foi energicamente descartada por Epicuro, filósofo do século IV a.C. O termo “providência divina” nenhum sentido fazia para ele:
Os deuses existem, afirma Epicuro, mas seriam seres perfeitos que não se misturam às imperfeições e às vicissitudes da vida humana. Os deuses viveriam em perfeita serenidade nos espaços que separam os mundos. Sua perfeição suprema constitui o ideal a que aspiram os sábios e deve ser objeto de culto desinteressado; não teria sentido adorá-los de maneira servil, temerosa e interesseira, pois eles desconhecem o mundo imperfeito dos homens e de modo algum atuam sobre ele [3].
Os deuses de Epicuro “vivem na beata solidão dos intermundos, completamente separados dos homens, para não morrerem e para sua felicidade”[4]. O mundo epicurista seria como um barco à deriva, tendo como tripulantes a humanidade.

Após a revolução intelectual proporcionada pelos pensadores iluministas, séculos depois, a idéia de um Deus que criou o mundo e o abandonou, como um relojoeiro que dá corda num relógio e o deixa funcionar sozinho, se tornou moda na Europa, principalmente na Inglaterra. Esse ponto de vista entrava em sério conflito com aquilo que vemos ao longo da Bíblia, já que o Deus bíblico é um Deus que age na história, preocupando-se e interagindo com suas frágeis criaturas.

Por outro lado, temos a doutrina proposta pelos reformadores. Calvino, por exemplo, achava que o homem, antes do pecado, usufruía de livre-arbítrio, e que caso quisesse, poderia alcançar a vida eterna. Apenas Adão e sua mulher Eva foram livres, mas após o pecado se tornaram inclinados ao mal como todos nós: “Mas os que professam ser cristãos, e ainda buscam o livre arbítrio no homem perdido e imerso em morte espiritual, corrigindo a doutrina da Palavra de Deus com os ensinos dos filósofos, estes se desviam totalmente do caminho...”[5].

Após ceder à tentação da serpente, afirmava Calvino, o homem perdera o livre-arbítrio, tornando-se escravo do pecado, coisa que só poderia ser mudada com a intervenção divina. Todas as ações dos homens, segundo Calvino, convergem para os propósitos divinos: “Daí, afirmamos que não só o céu e a terra, e as criaturas inanimadas, são de tal modo governados por sua providência, mas até os desígnios e intenções dos homens, são por ela retilineamente conduzidos à meta destinada”[6]. O reformador francês vai ainda mais longe, dizendo que até mesmo “os ladrões e os homicidas, e os demais malfeitores, são instrumentos da divina providência, dos quais o próprio Senhor se utiliza para executar os juízos que ele mesmo determinou”[7].

Analisando o Deus dos epicureus e o de Calvino, é possível estabelecer alguns paralelos. Se o Deus dos epirureus não interferia no mundo sensível, o de Calvino interfere até demais. Por outro lado, tanto deus dos epicureus quanto o de Calvino não são afetados pelos homens, já que para Calvino “quando ouvimos que Deus se ira, não devemos imaginar que exista nele qualquer emoção, mas, antes, devemos considerar esta expressão como tomada de nosso prisma”[8].

Há algo que se revela após um exame cuidadoso dos escritos de Calvino, o seu deus é também o deus dos filósofos. Vive na longínqua “solidão dos intermundos”. Mas ao contrário do deus dos epicureus, este atua na terra, não por amor, já que não possui sentimentos, mas para determinar o destino dos homens, que como fantoches caminham ou para a fornalha, ou para o gozo eterno das bem-aventuranças.

Retomo à pergunta feita por Hawking: “se não temos livre-arbítrio, como podemos ser responsáveis por nossos atos?”[9]. Na teodicéia calvinista o mal acaba sendo causado por Deus (sei que Calvino nega isso, mas é uma conseqüência lógica), tornando o homem isento de culpa diante de seus erros. Concordo com René Kivitz, quando diz que “o mal é o resultado de uma ação humana em afastar-se do Deus, sumo bem”[10]. No entanto é necessário perceber as implicações desta afirmação. Caso o homem possua ações verdadeiramente livres e seja o causador do mal, teríamos que aceitar que Deus não pode prever suas ações más. Afinal, Sua pré-ciência implicaria numa pré-destinação. Ou será que é possível a não concretização de algo que já foi previsto? Assim, a única maneira de destruir o mal seria destruindo o liberum arbitrum do homem, transformando-o num mero boneco manipulado pelos impiedosos fios do destino.

Mas como explicar o fato das escrituras descreverem Deus como sendo onisciente? Bem, pelo que sabemos Deus abriu mão do exercício de sua onipotência na pessoa de Jesus Cristo, permitindo que fosse morto por homens! Se ele pôde abrir mão do exercício de sua onipotência, porque não abriria mão do exercício de sua onisciência para que o homem fosse realmente livre?

A grande verdade é que para que haja um relacionamento verdadeiro é necessário que haja liberdade entre as partes envolvidas nesse relacionamento. Como bem afirmou Ricardo de Gondim: “os relacionamentos só podem acontecer com liberdade real. Sem liberdade, qualquer relacionamento ou é coercitivo e, portanto, desprovido de qualquer valor, ou não existe”[11].

Confesso que já fui seduzido pelo deus dos epicureus, distante e pouco preocupado com as mazelas humanas. Também já fui seduzido pelo deus calvinista, não por simpatizar com ele, mas porque me recusava a aceitar a idéia de um Deus mutável. Entretanto, não me foi possível exercer uma espiritualidade saudável adotando tais concepções. Após um árduo e longo caminho compreendi que a única forma de uma oração fazer sentido, era aceitar um Deus capaz de mudar diante da súplica de um angustiado fiel. Sem diálogo não há relacionamento e conversar com Deus seria como conversar com uma tartaruga, um poste ou uma samambaia.

Referências bibliográficas:
[1] Rom 3.10
[2] HAWKING, Stephen. Buracos negros, universos bebês e outros ensaios. 1995, p. 95
[3] EPICURO, Col. Os Pensadores, 1985.
[4] PADOVANI, Umberto. Filosofia da religião. p. 50.
[5] CALVINO, João. Institutas – Edição clássica (latim), Livro I, cap. XV, 2007, p. 196.
[6] Ibidem, Cap. XVI, p. 207.
[7] Ibidem, p. 217.
[8] Ibidem, Cap. XVII, p. 227.
[9] Cf. nota nr. 2.
[10] Disponível em:ttp://outraespiritualidade.blogspot.com/2006/11/teodicia.html>. Acesso em 14mai09.
[11] Disponível em: <
http://http//www.portalevangelico.pt/noticia.asp?id=2654>. Acesso em 14mai09.

domingo, 31 de maio de 2009

O ABSOLUTISMO E O RELATIVISMO TEOLÓGICO

Por Jones Mendonça

No meio protestante vigora uma tendência obsessiva pela certeza. É o que Rubem Alves denomina Protestantismo de Reta Doutrina (PRD)[1]. Nele não há lugar para dúvidas, a fé deve buscar a certeza, a infalibilidade, o conhecimento absoluto. É por isso que nos primeiros passos um novo convertido já é surpreendido pela pergunta: “tens certeza da tua salvação?”. Por esse modo de pensar, o discurso sobre o objeto (a doutrina protestante) confunde-se com o próprio objeto do discurso (a Bíblia, Deus, a salvação, etc.).
No artigo “Relativismo, certeza e agnosticismo em teologia”[2], escrito pelo pastor Augusto Nicodemos, vemos um belo exemplo da tentativa de transformar a teologia em um paradigma eterno e imutável. Ele faz distinção entre “teologia certa” e “teologia errada”, estabelecendo um evidente contraste entre a “teologia verdadeira”, ortodoxa, baseada nos antigos credos cristãos e nas confissões reformadas, e a “teologia falsa”, heterodoxa, articulada pelos teólogos liberais. Mas como bem analisa Rubem Alves: “heresia e ortodoxia são palavras criadas pelos ortodoxos. Mas [...] ortodoxos são aqueles que tiveram o poder para impor suas idéias. Heresia e ortodoxia têm muito pouco a ver com falsidade e verdade”[3]. Numa matéria publicada num jornal presbiteriano na década de 60 o atrito entre essas duas correstes já se fazia notar:
Duas correntes se chocam, duas mentalidades colidem, duas concepções ideológicas se contrapõem. De um lado estadeia-se a ala representada pelo magistério clássico e tradicional, seguro de suas convicções teológicas [...]. De outro, alinham-se espíritos irrequietos, inconformados, revolucionários, iconoclastas e presumidos, que as auras da atualização mesmerizaram frementes[4].
Logo no início do artigo o autor desdenha um teólogo por ter afirmado que “a teologia é apenas um construto humano, limitado, provisório, subjetivo...”. Mais adiante ele mesmo confessa: “Não me entendam mal. Eu também acredito que a teologia é um construto humano, e como tal, imperfeito, incompleto e certamente relativo (grifo nosso)”. Se a percepção humana da verdade é relativa, como poderemos afirmar que somos os únicos certos? Mas o autor se recusa a aceitar as conseqüências de sua própria conclusão: “reluto em aceitar as conseqüências plenas dessa declaração”.
É verdade que o relativismo absoluto nos conduz a um mundo caótico onde sequer é possível construir uma ética global. Como condenar o infanticídio em alguns países africanos se o “certo” e o “errado” dependem da cultura e da ótica pessoal?
Verdade, mentira, certo, errado. Essa tensa dialética persegue e aterroriza o ser humano. John Dominic Crossan, famoso estudioso do Jesus histórico, assim se expressa em relação a essa tensão presente no pensamento religioso moderno:
A razão e a revelação, ou a história e a fé, ou a reconstrução histórica e a articulação da crença não podem contradizer uma à outra a menos que não estejamos entendendo uma delas, ou ambas [...] Ser humano é viver na sua tensa dialética, e a nossa humanidade pode ser igualmente perdida quando a dialética falha em muito, em qualquer direção[5].
A teologia é mera tentativa de sistematizar a fé, sendo, portanto, falha. A fé vai além da razão, é supra-racional. Toda construção teológica que visa uma confissão de fé é especulativa e serve para dar certa coesão a um grupo, mas jamais deve ser fechada e inflexível. Ao mesmo tempo somos confrontados com a necessidade de estabelecer alguns pontos fundamentais, sem os quais seria impossível construir uma teologia. “Nós não necessitamos nem de uma ditadura do relativismo, nem de uma ditadura do absolutismo”[6], disse certa vez Hans Küng numa entrevista.

A tradução da Bíblia para uma outra língua e o trabalho exegético implicam em uma interpretação. Os pais da igreja interpretavam a Bíblia de acordo com os métodos exegéticos da época. Como bem analisou Rudolf Bultmann:
A reflexão sobre a hermenêutica (sobre o método de interpre­tação) mostra claramente que a interpretação, isto é, a exegese des­cansa sempre em alguns princípios e concepções que atuam como pressuposições do trabalho exegético, ainda que amiúde os intérpre­tes não sejam conscientes disto[7].
No cristianismo dos primeiros séculos a filosofia grega exerceu forte influência na construção dos dogmas de fé cristãos, ainda que muitos negassem tal fato. Hoje há teólogos influenciados pelo marxismo, pela psicanálise, pela filosofia existencialista, e tantas outras correntes de pensamento. Ninguém está isento de influências externas na exegese de um texto.
A vida nos prega peças. Em busca de uma opinião sensata, corajosa e honesta sobre a relação entre o absolutismo e o relativismo me deparei com um dos maiores ícones da ortodoxia moderna, o Papa Joseph Hatzinger, que na época era Cardeal. Confesso que a sua opinião a respeito de certezas teológicas me surpreendeu:
crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza[8].
Creio que uma teologia que faça jus ao nome “cristã” não pode abrir mão de que a Bíblia é produto de uma revelação divina, ainda que consideremos que foi escrita em linguagem humana, sendo, portanto, tosca, incompleta e limitada. Também não pode abrir mão que Jesus é Deus revelado, verbo encarnado, homem-Deus entre a humanidade desumanizada pela corrupção da sua consciência. Mas tais verdades essenciais, da forma como foram expostas, são minhas apenas, jamais terei a pretensão de torná-las inflexíveis. Entre a dúvida e a certeza fico com a esperança: “Porque na esperança fomos salvos. Ora, a esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? “(Rm 8,24).


Notas:
[1] Para Rubem Alves o PRD se caracteriza pelo fato de privilegiar a concordância com uma série de formulações doutrinárias, tidas como expressões da verdade, e que devem ser afirmadas sem nenhuma sombra de dúvida, como condição para participação na comunidade eclesial. Em sua opinião o PRD é predominante na Igreja Presbiteriana do Brasil, apesar de não se restringir a esta denominação.
[2] Publicado originalmente no site: http://tempora-mores.blogspot.com/2009/01/relativismo-certeza-e-agnosticismo-em.html. Acesso em 15 de fevereiro de 2009.
[3] ALVES, Rubem. Religião e repressão, 2005, p. 327.
[4] O Brasil Presbiteriano. São Paulo, Casa Ed. Presbiteriana. Março de 1963, 10 apud ALVES, Rubem. Religião e repressão, 2005, p. 331.
[5] CROSSAN, Dominic. Quem Matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus, 1995, p.249.
[6] Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 22 de outubro de 2007. Edição 240, p.7.
[7] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia, 2003, p. 37.
[8] RATZINGER, Joseph. Introdução
ao Cristianismo, 1970, p. 14.