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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O ÁGAPE COMO AMOR CARNAL EM CÂNTICO DOS CÂNTICOS


1. No Livro de Cântico dos Cânticos, capítulo 7, verso 6, lemos assim: “como és bela, como és formosa, que AMOR delicioso!”. E por que este amor é tão delicioso? Ora, por causa dos cachos, dos seios, do umbigo, do quadril, da boca que se derrama, “molhando-me lábios e dentes” (7,9). O texto fala de um amor “caliente”, claro. Muita gente vive repetindo por aí que na Bíblia esse tipo de amor é indicado pela palavra grega “eros”, que se diferencia de “ágape” (amor incondicional, divino) e de “fileo” (amor entre humanos, entre amigos). Mas isso está errado. Muito errado.

2. Veja que na versão grega do texto de Cântico dos Cânticos (chamada de Septuaginta), traduzida por judeus versados no idioma grego, a palavra “ágape” foi a escolhida para traduzir esse amor humano, carnal, entre homem e mulher: “ί ὡραιώθης καὶ τί ἡδύνθης, ἀγάπη, ἐν τρυφαῖς σου” (7,9). Sabe o que isso significa? Significa que uma diferenciação considerável entre “ágape” e “fileo” talvez tenha até existido entre os gregos antigos em alguma época específica, mas na Bíblia ela simplesmente inexiste. Inventaram essa classificação tripartida do amor.

3. Trata-se de uma ideia fixa, cristalizada, protegida por uma casca sólida, polida e preservada na mesma caixa em que se guardam os sonhos. Alguém poderá argumentar que o amor que se desenvolve entre os amantes em Cântico dos Cânticos é “ágape”, incondicional, divino, porque na verdade reflete o amor de Deus por Israel (é o que dizem os alegoristas). Se é assim, como explicar o uso de ágape em 1Rs 11,2, que declara com todas as letras que Salomão se ligou a muitas mulheres estrangeiras por “AMOR” (ágape!!!). Ora, o texto não deveria registrar “eros”?

4. Conclusão: na versão grega do Antigo Testamento a palavra “eros” jamais é usada, mesmo quando claramente indica amor carnal, mesmo quando enfatiza a atração pela derme nua, pelos beijos, pelos afagos ardentes. Por outro lado, “ágape” e “fileo” são empregadas de forma intercambiável, servindo para se referir ao amor da divindade pelos humanos, ao amor dos humanos pela divindade, ao amor dos homens pelas mulheres e até mesmo o amor de homens e mulheres pelas coisas mais vis.


Jones F. Mendonça

sábado, 21 de junho de 2025

OS CABELOS PRETOS SÃO NÉVOA


1. Em Eclesiastes 11,10 lemos o seguinte conselho: “Afasta do teu coração o desgosto, e remove o sofrimento da tua carne, pois juventude e negritude são VAIDADE”. A “negritude” da qual o texto fala é certamente uma referência aos cabelos, por isso a Bíblia de Jerusalém optou por inserir a palavra “cabelo” no texto: “juventude e CABELOS negros são vaidade”. Mas por que cargas d’água os “cabelos negros e a juventude” seriam “vaidade”?

2. Do jeito que ficou traduzido, o texto parece sugerir que os cabelos negros funcionam como uma espécie de troféu da juventude, como símbolo do apego exagerado à própria imagem. Mas não se trata disso. O que ele está dizendo é: “afasta do teu coração o desgosto, o sofrimento, porque os cabelos negros, ou seja, tua juventude, é como a 'havel'” (הבל), como névoa. Os cabelos negros são temporários, sendo mais tarde substituídos pelos cabelos brancos, pela velhice.

3. Sendo mais claro: aproveita a vida, porque a juventude é breve como a névoa.


Jones F. Mendonça

sábado, 27 de abril de 2024

JÓ E ECLESIASTES EM ANCIENT NEAR EASTERN TEXTS (ANET)


1. Embora os livros bíblicos de Jó e Eclesiastes possuam cada qual suas próprias singularidades, textos refletindo sobre o sofrimento do justo (Jó) e da aparente falta de sentido da vida (Eclesiastes) são bem atestados entre os diversos povos do Antigo Oriente Próximo desde o II milênio antes da era comum. Quem tiver interesse em conhecer tais escritos deve se debruçar sobre uma coletânea de textos conhecida como ANET (Ancient Near Eastern Texts), que em português pode ser traduzida como “Textos do Antigo Oriente Próximo”. A obra reúne material oriundo da Mesopotâmia e do Egito. Seguem os escritos que de algum modo possuem afinidade com Jó e Eclesiastes e suas respectivas datações/páginas em ANET:

1. “Homem de Deus” ou “Jó sumeriano” (~2000 a.C.); ANET, pp. 589-591.
2. “Eu enaltecerei o Senhor da Sabedoria” (~1200 a.C.); ANET pp. 596-601;
3. “O diálogo de um sofredor com seu amigo” ou “Teodiceia babilônica” ou “Qohelet babilônico” (1000-800 a.C.); ANET pp. 601-604.
4. Textos egípcios classificados como “controvérsia sapiencial” (ANET, pp. 475-479), “O lamento do agricultor” (ANET, pp. 407-410), “O diálogo da pessoa cansada da vida com sua alma” (ANET, pp. 405-407) e “As palavras de exortação de Ipu-Ver (ANET, pp. 441-444).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 22 de março de 2024

SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA CARIOCA: AULAS


1. De modo geral, são classificados como “literatura sapiencial” os livros de Provérbios, Jó e Eclesiastes. O primeiro, formado por uma coletânea de sentenças curtas, é assertivo, direto, repleto de declarações imperativas: “escuta, meu filho”, “inclina teu ouvido…” (1,8; 22,17). Os dois últimos possuem natureza bem distinta: expõem muitas perguntas e oferecem poucas respostas. Jó expressa um sentimento de crise diante da dor e da perda material e afetiva. Eclesiastes também é uma literatura de crise, mas a crise, neste caso, é existencial, uma vez que a vida humana parece subsistir meramente como “névoa” e “doença ruim” (6,2).

2. Um leitor atento perceberá que a história de José, em Gn 37,39-50, preserva muitos elementos comuns à chamada literatura sapiencial, por isso foi classificada por von Rad como “romance literário didático” (um conto sapiencial). Inspirado no trabalho de von Rad, Shemaryahu Talmon sugeriu que a história de Ester igualmente revela a influência de uma “mão” sapiencial. R. N. Whybray, nas mesmas pegadas de von Rad, viu na narrativa de sucessão (2Sm 9-20; 1Rs 1-2) as marcas de uma tradição sapiencial. Também parecem preservar traços sapienciais os livros de Jonas, Rute, Daniel e alguns Salmos (como o 39 e 104), dentre outros.

3. Mas será que não estaríamos sendo seduzidos por uma espécie de “pan sapiencialismo”, como sugeriu Will Kynes? Existiu de fato, no Antigo Israel, um grupo de escribas palacianos conhecidos como “sábios” (חכם), atuando ao lado (e muitas vezes em conflito) de figuras bem conhecidas, como os sacerdotes e profetas? Será que a literatura sapiencial expressa a percepção de mundo de um grupo específico? É mesmo possível falar em uma “tradição sapiencial”? Que relação ela possui com os demais livros que compõem a Bíblia Hebraica? E, por fim: quais os limites desse suposto corpus literario?

4. A tentativa de responder a esta e a outras perguntas relacionadas à literatura sapiencial você encontra em “Was There a Wisdom Tradition? New Prospects in Israelite Wisdom Studies”, editado por Mark S. Sneed (Atlanta, SBL, 2015). Esta e outras questões também serão abordadas no curso "Livros Poéticos e Sapienciais da Bíblia Hebraica" do Seminário Teológico Batista Carioca. Espero você em nossa sala virtual. Procure a Viviane, nossa secretária: (21) 96536-9181.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

YAHWEH COM TETAS E VENTRE


1. A partir do capítulo 12, o Livro do Gênesis basicamente se detém na história de Abraão, Isaac, Jacó e José. O capítulo 50, o último do livro, expõe ao leitor a morte de Jacó e José, seu filho. Ambos são embalsamados de acordo com a tradição funerária egípcia (50,2.26). Mas antes de morrer, no capítulo 49, Jacó anuncia uma série de bênção aos filhos.

2. A bênção, marcada por extrema beleza poética, dedica alguns versos a José, filho outrora perdido, mas reencontrado. O texto fala de arcos quebrados, de nervos rompidos, de flores, de espinhos, de colinas verdejantes. Tudo muito bonito e magistralmente pensado. No v. 25 o leitor se depara com a seguinte declaração:
Pelo El de teu pai, que te socorre,
por Shaddai que te abençoa:
Bênçãos dos céus no alto,
bênçãos do abismo deitado embaixo,
bênçãos das MAMAS [שדים]
e do VENTRE [ורחם].
4. Trocando em miúdos: é bênção para todo o lado. Chama a atenção o emprego de “mamas” e “ventre” na última linha, uma vez que é rara a apresentação de Yahweh com atributos femininos na Bíblia Hebraica. Eles enfatizam um Deus que dá suporte tanto na geração de filhos como no seu sustento (veja os reflexos em Lc 11,27 e Lc 23,29).

5. Alguns tradutores, talvez escandalizados com a descrição de Yahweh como uma divindade dotada de atributos exclusivamente femininos, substituem “mamas” por “fartura", e “ventre” por "fertilidade" (NVI). A NTLH foge completamente do assunto: “bênçãos de muitos animais e muitos filhos”(!!?).



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 7 de abril de 2023

OS SALMOS, EM CINCO PARÁGRAFOS CURTOS


1. O Livro dos Salmos, tal como se encontra em nossas Bíblias, é fruto de um longo trabalho feito por compositores, colecionadores e editores. Estes últimos dispuseram os Salmos de acordo com alguns esquemas programáticos. Algumas vezes esse esquema segue a lógica da autoria: 42-49 (Coré); 50 (Asaf); 51-72 (DAVI); 72-83 (Asaf) e 84-89 (Coré). Note que o “Salmo de Davi” aparece no centro, cercado por Asaf e Coré (disposição quiásmica).

2. Mas até mesmo os títulos de “autoria” parecem ter sido incluídos pelos editores. Aliás, a tradução “Salmo de...” (Davi, Coré, Asaf...) tem sido objeto de muita discussão. Afinal, o Salmo 51 foi escrito por Davi, foi inspirado na vida de Davi ou o nome “Davi” é apenas uma homenagem à personalidade a qual se atribuía o patrocínio da coleção? Está confuso? Eu explico.

3. Na abertura do Salmo 3 lemos assim: “mizmor LeDavid”. Uma tradução mais fiel seria “Salmo para Davi” ou “Salmo a Davi” (o “Le”, antes do nome de Davi é preposição). Em alguns casos esse “Le” (לְ) indica pertencimento, como consta, por exemplo em um selo encontrado em Jerusalém datado para a época de Ezequias: “PERTENCE a Ezequias, filho de Acaz” (LeEzequias).

4. Na Bíblia essa preposição também funciona como indicativo de pertencimento quando aparece antes de nomes próprios. Quer exemplos? Lá vai. Veja o caso de Rt 4,9: “comprei da mão de Noemi tudo o que PERTENCIA a Elimelec” (לאלימלך). Veja agora 1Sm 27,6: “É por isso que Siceleg PERTENCE aos reis de Judá” (למלכי). Assim sendo, porque não devemos ler: “Salmo pertencente a Davi”?

5. Seja como for, esses títulos deixam uma coisa bem clara: de alguma maneira o editor via afinidade entre o Salmo e a personalidade referida no título. Talvez pensasse que era seu autor, talvez patrocinador, talvez que essas personalidades apenas funcionavam como inspiração para um poeta posterior, que se imaginava, por exemplo, na pele de Davi. Quem saberá?


Jones F. Mendonça

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

SOBRE SATANÁS E SUA "QUEDA"

1. Uma interpretação que se tornou tradicional e remonta aos primeiros séculos vê Is 14 e Ez 28 como uma espécie de sinopse poética da queda de Satanás, desde sua rebelião contra Yahweh até sua punição definitiva, sendo “reduzido a cinzas” (Ez 28,18), “precipitado no abismo” (Is 14,15). Mas tanto Isaías como Ezequiel falam da punição de reis de carne e osso.

2. Isaías 14,3-23 consiste em um mashal (sátira poética) contra o rei da Babilônia, nação responsável pela destruição de Jerusalém no início do século VI. Ez 28, 11-19 é um qiyna (elégia, lamento fúnebre) contra o rei de Tiro, cidade fenícia conhecida por seu comércio marítimo. Os destinatários dos oráculos são indicados nos títulos (Is 14,4 = Babilônia; Ez 28,12 = Tiro).

3. Além de Ezequiel e Isaías, oráculos contra nações estrangeiras também podem ser encontrados, por exemplo, em Amós, Jeremias, Naum e Obadias. De forma geral esses oráculos seguem um modelo: tal rei foi tomado pelo orgulho, por isso será punido severamente por Yahweh. São recorrentes as imagens da “queda”.

4. O rei de Edom, arrogante porque habita na “fenda do rochedo”, e que deseja ter “entre as estrelas o seu ninho” (Ob 1,3-4), será precipitado de lá. O rei de Tiro, orgulhoso do sucesso de seu “comércio intenso”, será “atirado por terra” (28,16-17). Em Isaías a imagem é a mesma: “dizias no teu coração: ‘Hei de subir até o céu... [mas] foste precipitado no Sheol” (Is 14,13-15).

5. As palavras atribuídas a Jesus, em Lc 10,18: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago!” apenas reproduzem uma percepção já consagrada na literatura judaica: “todos os poderes opressores (humanos ou não) serão lançados por terra". Mas não há qualquer razão para associar Lc 10,18 a Isaías 14 ou Ezequiel 28. Isso é invenção dos exegetas alegoristas dos primeiros séculos.


Jones F. Mendonça

sábado, 24 de dezembro de 2022

SALOMÃO DE BOCHECHA ROSADA

1. Assim como os pintores renascentistas retratavam os personagens bíblicos como europeus (fisionomia, vestes, arquitetura, etc.), os tradutores europeus certamente também foram influenciados por sua própria cultura enquanto traduziam a Bíblia. Dou um exemplo.

2. O Livro dos Cânticos, capítulo 5, verso 10, geralmente é traduzido desse modo: “Meu amado é branco e rosado”. Esta tradução sugere que o amado é branco com bochechas rosadas. Mas não é isso. Explico.

3. Uma tradução mais literal fica assim: “meu amado é ofuscante/ardente e vermelho”. A ideia talvez seja retratá-lo como Davi ou quem sabe destacar seu vigor, representá-lo como uma brasa avermelhada e ofuscante. Difícil saber com certeza.

4. A palavra traduzida por “branco” e que optei por traduzir por “ofuscante” é “tzah” (צח). Ela reaparece em Is 18,4 para qualificar o calor: “como um calor ardente  [tzah] em plena luz do dia” e em Is 32,4: “a língua dos gagos falará com desembaraço e com limpidez”.

5. “Tzah” sempre indica algo brilhante, ofuscante, claro, límpido, nunca a cor branca. Veja que até os cuchitas, que eram negros, são descritos como sendo “altos e polidos”. O termo que traduzi por “polido” aqui “morat” (מורט), um verbo.

6. Os tradutores divergem quanto à tradução de “morat”. A NVI entende que os cuchitas são “um povo alto e de pele macia”. A BJ que são “gente de alta estatura e de pele bronzeada”. Eita! Quem tem razão? Nem a NVI nem a BJ.

7. O verbo é empregado para indicar o “bronze polido” ou a “espada polida” (cf. 1Rs 7,45; Ez 21,10-11). Tudo isso sugere que quando alguém era qualificado como “reluzente”, “polido”, “brilhante”, “límpido” ou “ofuscante”, a ideia era indicar sua força, seu vigor.

8. Assim, tanto o amado do Livro dos Cânticos, como os poderosos guerreiros cuchitas mencionados no livro do profeta Isaías, eram tratados como pessoas “ofuscantes”, ou seja, “vigorosos”.




Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de agosto de 2022

AS ENTRANHAS DO JUSTO SOFREDOR

1. Traduzido literalmente, o Sl 26,2 fica desse jeito: “examina-me, Senhor, coloca-me à prova, depura meu coração e meus rins”. A palavra hebraica traduzida por “depura” é tzaraf (צרף), utilizada para indicar a atividade do ourives na purificação de metais preciosos. Mas por que o salmista pede para que seu coração e seus rins sejam “depurados/purificados”?

2. No hebraico, os rins, o coração, o fígado, o ventre aparecem como metáforas para tudo aquilo que está oculto, como pensamentos, intenções, desejos, etc. Ao pedir para que seu “coração” e seus “rins” sejam depurados, o salmista está dizendo algo do tipo: “penetra nas minhas entranhas, no subsolo dos meus pensamentos”.

3. Como Jó, ele se declara inocente, distante do caminho dos perversos: “quanto a mim, eu ando na minha integridade” (v. 11). Assim, pede para que suas intenções sejam colocadas à prova e a justiça lhe seja feita: “faze-me justiça, ó Senhor...” (v. 1,1). O tema do servo que sofre sem razão aparente é algo recorrente na religiosidade do Antigo Israel. Surge nos Salmos, em , em Isaías, em Jeremias e na figura do Cristo que padece no Gólgota.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 4 de julho de 2022

HEBRAICO E MATERIALISMO DIALÉTICO

1. Os idiomas nascem e se desenvolvem em relação direta com o mundo material no qual estão inseridos seus falantes. Um exemplo. A palavra hebraica gazar (גזר), cujo significado primário é “cortar”, ganha diferentes sentidos entre os hebreus, considerando que a vida geralmente era ceifada pela navalha (sacrifícios/batalhas).

2. Em 2Rs 6,4 um grupo de discípulos de Eliseu corta (gazar) madeira com a finalidade de construir uma moradia. “Cortar”, neste caso, indica exatamente isso: dividir a madeira com uma lâmina afiada. Mas o verbo “gazar” pode ganhar sentidos diferentes, dependendo do contexto.

3. Em Lm 3,54, após ser lançado em um fosso, o poeta diz: “Escorrem as águas sobre minha cabeça. Eu disse: estou cortado”. A Almeida Revista e Corrigida (ARC) traduz exatamente assim: “estou cortado”. O tradutor atento entende que ele quer dizer “estou morto”, ou, como preferimos: “estou perdido”.

4. Eis a primeira lição: nem sempre a tradução mais literal é a melhor. A segunda devo a Peter Berger: "O homem inventa um idioma e descobre que a sua fala e o seu pensamento são dominados pelas regras gramaticais que ele próprio criou" ("O Dossel sagrado", 1985, p. 22).



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 29 de abril de 2022

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: ENTRE BEIJOS E SEIOS

1. O texto hebraico do Antigo Testamento não continha vogais, apenas consoantes. As vogais só foram inseridas no texto no século VII d.C. com a finalidade de ajudar na leitura. Essa característica permitiu que o texto fosse entendido de formas diferentes pelos leitores/tradutores. Um exemplo:
teus amores são melhores do que o vinho (Ct 1,2).
2. Acontece que “teus amores” (דדיך) em hebraico é graficamente igual a “teus seios” (דדיך, cf. Ez 23,21). Assim, o tradutor fica em dúvida se deve traduzir a parte b do v. 2 por “teus amores [dele] são melhores do que o vinho” ou “teus seios [dele] são melhores do que o vinho”.

3. De modo geral nossas Bíblias optam por “teus amores” (seguem o texto vocalizado do século VII d.C.). Mas os judeus responsáveis pela tradução do texto hebraico para o grego (Septuaginta) entenderam que a tradução correta é “teus seios” (μαστοι, "mastoi").

4. Eleazar de Worms, um rabino da era medieval, interpretou a palavra hebraica como "seios" e saiu-se com essa: "os 'seios' referem-se a Moisés e Arão que amamentaram o povo de Israel com a Torá". Sei...

5. Quer saber a minha opinião? O escritor fazia isso de propósito. O Cântico dos Cânticos adora duplos sentidos...




Jones F. Mendonça

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

SOBRE AS TRADUÇÕES DA BÍBLIA

1. O conjunto de livros que convencionamos chamar de “Antigo Testamento” – ou para usar um termo politicamente correto, “Primeiro Testamento” – foi escrito no idioma hebraico. Das oito mil palavras que aparecem no texto, cerca de 25% são consideradas como hápax legómena, ou seja, só ocorrem uma única vez, por isso são termos difíceis de traduzir.

2. Algumas dessas hapáx derivam claramente de outras palavras hebraicas, característica que facilita a tradução. Mas a coisa se complica bastante quando o tradutor se depara com um hápax absoluto (ocorrem cerca de 400 vezes), item lexical realmente único, cuja tradução não pode ser feita a partir da relação semântica com outro termo hebraico, de mesma raiz. Qual a saída?

3. Bem, quando isso acontece, o tradutor pode recorrer a traduções do texto hebraico para outros idiomas (como a Septuaginta) ou aos chamados “cognatos”, palavras pertencentes a outro idioma (como o acadiano) que provavelmente deram origem ao hápax. Ocorre que esta solução traz grande grau de incerteza, porque a semelhança entre palavras de idiomas diferentes pode ser mera coincidência (falso cognato). Mas caso este termo esteja presente em um texto poético, há outra saída.

4. Tomemos, por exemplo, o Salmo 21,3:
“Concedeste o desejo do seu coração,
não negaste o aresheth de seus lábios” (aresheth só ocorre aqui)
5. Esse tipo de construção textual – uma marca da poesia hebraica – é conhecido como “paralelismo sinonímico”: a linha de baixo repete a ideia presente na linha de cima com palavras diferentes. Assim, podemos deduzir que o termo hápax “aresheth” possui sentido bem próximo do termo "ta’avah", traduzido por “desejo” na linha superior.

6. Uma tradução possível é:
“Concedeste o desejo do seu coração,
não negaste a súplica de seus lábios” (desejo verbalizado).


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: ENTRE PERNAS E BEIJOS

1. Depois de expor uma série de elogios ao corpo de seu amado – cabeça, olhos, cabelos, faces, lábios, braços, ventre e pernas – a amada do livro bíblico de Cântico dos Cânticos faz uma última declaração àquele que desperta nela as mais intensas paixões: “seu HEKH (חך) é doce e ele é todo desejo” (5,16).

2. Mas qual o significado de “HEKH”? Dois exemplos: “colou-se, de sede, a língua do lactente ao seu HEKH” (Lm 4,4), ou ainda “o favo de mel é doce ao teu HEKH(Pv 24,13). A palavra indica o local da boca imaginado pelos antigos como responsável pelo paladar. Assim, temos:

“Sua boca (o interior da boca) é doce, e ele (o amado) é todo desejo”.

3. A amada – isso me parece muito claro – está descrevendo o quão doce e ardente é o beijo do seu amado. Algumas versões, como a Almeida Corrigida e Fiel (ACF), traduzem o verso do seguinte modo: “SEU FALAR é muitíssimo SUAVE”. A ACF Trocou “boca” por “falar” e “doce” por “suave”.

4. Sabe-se lá o que vai pela cabeça de alguns tradutores.


Jones F. Mendonça

domingo, 16 de janeiro de 2022

TUA BOCA É COMO ROMÃ PARTIDA



1. O amado, no livro bíblico de Cântico dos Cânticos (4,3), dirige-se assim à sua amada:
Como fio escarlate são teus lábios,
Tua fala [=boca?] é formosa,
Como romã partida é tua raqqah (רקה) através do teu véu.
2. O texto descreve a beleza da amada realçando suas partes avermelhadas: os lábios, a boca como um todo e, depois, a raqqah dividida. Mas qual o significado de raqqah? O termo só reaparece no livro de Juízes (4,21-22; 5,26), utilizado para indicar o local da cabeça de Sísera penetrado por uma estaca manejada por Jael. Os tradutores geralmente optam por “têmpora”.

3. A NTLH entende que se trata do “rosto”, avermelhado como a romã. A NVI traduz por “faces”, sem destacar a semelhança com tom avermelhado da romã. A ARA também traduz o termo por “faces”, mas imagina que a semelhança é com o “brilho” (!?) da romã. Vale dizer que a palavra “brilho” não consta no texto e que existe uma palavra hebraica para “faces” (פנים). A BJ imagina que seja uma referência aos dois “seios”.

4. Posso estar redondamente enganado, é claro, mas se você olhar bem para uma romã aberta vai notar certa semelhança com o interior de uma boca. Caso eu esteja correto, Jael não teria fincado uma estava na “têmpora” de Sísera, mas na abertura da boca. O texto enfatiza que a estaca atravessou a “raqqah” e penetrou “na terra”.

5. No Cântico dos Cânticos somos tentados a pensar que a referência seja ao que chamamos de “maçãs do rosto” (entre os hebreus seriam “romãs do rosto”). Mas neste caso, a estaca de Jael teria sido fincada na “maçã do rosto” de Sísera, algo que não faz muito sentido.

6. E você, o que acha?




Jones F. Mendonça

sábado, 1 de janeiro de 2022

ECLESIASTES E O “FIO DE PRATA”

O livro do Eclesiastes, no seu capítulo 12 (vv. 1-8), exorta o leitor a fazer bom uso de sua juventude, antes que “venham os dias da desgraça” (v. 1), antes que “se escureçam o sol, a lua e as estrelas” (v. 2), antes que “as canções emudeçam” (v. 4), antes que “pereça o apetite/querer” (v.5). É um texto triste e ao mesmo tempo inspirador. Quatro versos desafiam o tradutor/intérprete (12,6):
“Antes que o fio de prata se ROMPA
e o copo de ouro se PARTA,
antes que o jarro se QUEBRE na fonte
e a roldana se DESFAÇA no poço”.
O texto apela para que o leitor acorde para a vida, “antes que...”. Os dois primeiros versos falam de objetos preciosos: O “fio de prata” (um cordão?) e um “copo de ouro” que se rompem/se partem. Os dois últimos versos falam de objetos utilizados para apanhar água na fonte/no poço: um “jarro” e uma “roda/roldana”, que se quebram/se desfazem.

Há quem associe o “fio de prata” à medula (!) e outros a um suposto “fio prateado” visto por pessoas em seus últimos minutos de vida. É verdade que no texto, desde o início, predominam alusões a partes do corpo perdendo sua força, sua vitalidade, seu vigor, sua utilidade (visão, audição, apetite, força muscular, etc.). Mas no v. 6 a imagem evocada parece ser outra, não mais elementos do corpo, mas do cotidiano: 1) o cordão de prata que se rompe pelo uso; 2) a taça de ouro que racha pelo desgaste, 3) o jarro de barro que se quebra, 4) a roda/roldana do poço que se desfaz. 



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

LAMENTAÇÕES: UM PRÓLOGO, QUATRO EQUÍVOCOS

O livro bíblico de Lamentações em sua versão hebraica começa assim: “Como está solitária a cidade populosa...”. A versão grega do livro (LXX) acrescenta um prólogo, provavelmente inspirado em 2Cr 35,25: “...JEREMIAS sentou-se CHORANDO e lamentando com este lamento sobre Jerusalém”. Esse prólogo apócrifo produziu quatro equívocos:

1) o costume de se atribuir ao profeta Jeremias a autoria do livro; 2) a inclusão do livro entre os “profetas”, algo que não acontece na Bíblia Hebraica; 3) A classificação do livro como profeta “Maior”, com 5 capítulos, sendo na verdade muito menor que profetas “Menores” como Oseias, com 14 capítulos; 4) A injustiça de classificar Jeremias como “profeta chorão”.

Resumindo: 1) Há poucas razões para crer que Lamentações foi escrito por Jeremias; 2) O livro não deveria estar entre os “profetas”, mas entre os “poéticos”; 3) Não pertencendo ao gênero profético e com apenas 5 capítulos, não faz nenhum sentido tê-lo entre os “Profetas Maiores”; 4) Definir Jeremias como “chorão” seria mais ou menos como tratar Isaías como o “profeta peladão”, considerando o que diz Is 20,3: “Ele assim fez, andando nu e descalço”.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O SALMO ESTOMACAL

1. No Sl 7,5 o salmista pede a proteção de Javé contra seus inimigos e declara, em sua defesa, que sempre buscou viver de forma íntegra e justa. Se isso não é verdade, ele prossegue: que “persiga o inimigo a minha garganta (נפש = néfesh) e alcance e pisoteie na terra meu estômago (חי = hay) e a minha glória no pó se estabeleça para sempre”.

2. Tanto “néfesh” (lit. “garganta”) como “hay” (lit. “estômago”) são traduzidos, na grande maioria das vezes, por “vida”. Este Salmo é um raríssimo exemplo da ocorrência dessas duas palavras com sentido absolutamente concreto. Desconheço versão bíblica que traduza assim (dá uma olhada na sua).

3. Um bom leitor perceberá que “perseguir a GARGANTA e alcançar e pisotear o ESTÔMAGO na terra” é o mesmo que aniquilar a vida. Versões como a NVI traduzem assim: “no chão me pisoteie e aniquile a minha vida”. A NVI capturou a mensagem. Mas que tirou toda a beleza da poesia hebraica, ah, tirou...

 

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O “JORNALEIRO” EM ISAÍAS 16,14

1. Algumas versões bíblicas – como ALMEIDA, desde 1819! – traduzem Is 16,14 assim: “tais como os anos do jornaleiro, será aviltada a glória de Moabe”. E a gente fica pensando: vendia “O Globo” ou “Estadão”? Algo não está certo aí...

2. Ocorre que “jornaleiro” indicava, há muito tempo atrás, pessoa que recebia por jornada de trabalho, daí a escolha da palavra portuguesa “jornaleiro” (o que hoje chamaríamos de “diarista”). Assim, eu não diria que a tradução está errada, mas desatualizada.

3. O termo hebraico traduzido por “jornaleiro” é שכיר (sakiyr). Ele serve para indicar uma pessoa que luta diariamente por seu sustento. O termo reaparece em Jó 7,1. Veja: “Não está o homem condenado a trabalhos forçados aqui na terra? Não são seus dias os de um sakiyr” (assalariado, diarista, etc.)?


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: UMA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL

Sempre que leciono “poesia e sabedoria hebraica” no STBC, exijo dos meus alunos como tarefa avaliativa uma análise crítica da aula “O desejo e o erotismo em Cântico dos Cânticos: uma leitura histórico-social”, ministrada pelo prof. Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro. Faço isso por três razões: 1) a exposição, verso a verso, é algo fora da curva (não é mera repetição do que aparece nos manuais); 2) O prof. Osvaldo faz muitas provocações necessárias (e julgo que meus alunos precisam ser provocados); 3) Sua leitura histórico-social faz muito sentido.

Caso você tenha interesse em assistir a aula online, faça o seguinte:
  • Clique aqui para acessar a página da Faculdade Unida de Vitória;
  • Depois clique em “quero comprar” na arte que anuncia o curso (é de graça, exceto se você optar pela emissão de certificado);
  • Um quadrinho vai aparecer (acesso – sob demanda). Caso ainda não tenha uma conta, crie uma clicando em “ainda não possui conta, clique aqui” (em cinza, na parte inferior do quadrinho).


Jones F. Mendonça

terça-feira, 12 de outubro de 2021

ASSUR, JAVÉ, CHUVA DE FOGO E GRANIZO

A Bíblia Hebraica apresenta Javé punindo seus inimigos com fogo, granizo e enxofre em diversas ocasiões. Sodoma e Gomorra, por exemplo, são destruídas após uma chuva de “enxofre e fogo” (Gn 19,24). Em Ez 38,22 a terra de Gog é ameaçada pela ira divina com uma “chuva torrencial de pedras de granizo, fogo e enxofre”. Usando um querubim como montaria, Javé dispersa seus inimigos com “granizo e brasas de fogo” em 2Sm 22,13. As “chamas de fogo” e o “granizo” reaparecem no Sl 105,32 e em Is 30,30. Um oráculo de salvação neo-assírio também incorpora alguns desses elementos:
Eu [Assur] ouvi seu clamor [de Esarhaddon].
Saí como um brilho ardente do portão do céu,
para lançar fogo e devorá-los.
Estavas no meio deles,
por isso retirei-os da tua presença.
Eu os levei montanha acima
e choveu pedras (granizo) e fogo do céu sobre eles.
Matei seus inimigos
e enchi o rio com o sangue deles.
Que eles vejam (isso) e me louvem,
(sabendo) que sou Assur, Senhor dos deuses (SAA, 24).
O texto aparece na obra identificada pela sigla SAA, cuja descrição completa é: PARPOLA, Simo. Assyrian Prophecies: State Archives of Assyria, vol. 9. Helsinki, Finland: Helsinki University Press, 1997. O autor é um respeitado assiriólogo finlandês. 

Jones F. Mendonça