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quinta-feira, 24 de julho de 2025

NIETZSCHE, LUTERO E OS CAMPONESES


1. Quando a Reforma estourou, os camponeses começaram a alimentar esperanças pelo fim da servidão. Diziam: “Cristo libertou todos os homens!”. Lutero considerou a declaração problemática sob a perspectiva teológica, social, política e econômica. Então disse assim:
Abraão e os outros patriarcas não tinham escravos? [...] Um reino terreno não pode sobreviver se nele não houver uma desigualdade de pessoas, de modo que algumas sejam livres e outras presas, algumas soberanas outras súdita" (Lutero, Works, IV, p. 240).
2. Em Gaia Ciência (aforismo 358), Nietzsche resume bem a dupla natureza da Reforma: “Lutero fez no interior da ordem eclesiástica, portanto, precisamente o que combateu de forma intransigente na ordem civil – uma rebelião camponesa”.

3. Trocando em miúdos: Lutero combateu a hierarquia eclesiástica, mas sacralizou a hierarquia social.



Jones F. Mendonça

LUTERO E OS CAMPONESES DA SUÁBIA

1. No impulso do impacto que as ideias de Lutero tiveram na Alemanha, um grupo de camponeses da Suábia fez a seguinte exigência: “Toda a comunidade terá o poder de escolher e depor um pastor" (Artigo 1). Não queriam ser conduzidos por pastores indicados pelos príncipes. Desejavam uma igreja democrática.

2. Lutero examinou o pedido dos camponeses e escreveu assim: “Se os bens da paróquia provêm dos governantes, e não da comunidade, então a comunidade não pode aplicar esses bens ao uso daquele que escolher, pois isso seria roubo e furto” (Admoestação à paz, 1525).

3. Trocando em miúdos: se a terra na qual vivem os camponeses pertence ao príncipe, o templo no qual se reúnem os camponeses também pertence a ele. Assim, caso queiram eleger (e depor) seu próprio pastor, que adquiram sua própria propriedade e construam seu próprio templo.

4. Problema: boa parte dos camponeses não tinha propriedades. Aliás, os camponeses denunciam o roubo dos campos comuns pela nobreza (art. 10). Quanto à esta queixa Lutero responde: “deixo esta questão para os advogados, pois não é apropriado que eu, um evangelista, delibere sobre este assunto”.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 16 de julho de 2025

LUTERO, ARISTÓTELES E OS COMETAS


1. No final do segundo volume de suas “Preleções ao Gênesis” (1535-1545), Lutero discorre sobre o arco-íris, fenômeno visual apresentado nas linhas da Bíblia como sinal da aliança entre Deus e os seres vivos, cuja finalidade é funcionar com memorial-garantia, assegurando que a terra jamais seria destruída novamente pelas águas (Gn 9,8-17).

2. Lutero entende que o arco-íris não pode ser explicado pela razão, como supunha, por exemplo, Aristóteles em seu tratado “Meteorológica”(metéoros + lógos),” escrito há aproximadamente 2000 anos antes do nascimento do reformador. No tratado, Aristóteles defende que o arco-íris é o resultado do reflexo da luz solar projetada nas gotículas das nuvens (estava certo).

3. Mais adiante, após debochar dos filósofos por acreditarem que os fenômenos naturais podem ser explicados à luz da razão, Lutero diz o seguinte: “todos esses fenômenos são obras de Deus ou de espíritos malignos”. Ele cita como exemplo as “cabras dançantes”, as “serpentes voadoras”, e as “lanças ardentes” (!?), interpretadas como “travessuras dos espíritos no ar”.

4. Lutero terminou de escrever o comentário um ano antes de sua morte, tornando este trabalho uma fonte importante para compreender o pensamento do reformador em sua fase madura. É possível adquirir “Preleções sobre o Gênesis” gratuitamente no site do Project Gutemberg, no formato PDF, em inglês.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de abril de 2025

SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DO CRUCIFICADO

1. Na história da arte cristã, o Cristo crucificado foi retratado de duas formas elementares: o Christus Victor (Cristo vitorioso) e o Christus Patiens (Cristo sofredor). O primeiro foi moldado a partir da teologia dos chamados Pais da Igreja, e enfatizava a vitória de Cristo sobre a Cruz, o pecado, a morte e as forças destrutivas do mal. O segundo ganhou força a partir do final da Idade Média, influenciado pela teologia de Anselmo de Cantuária, teólogo do século XI. A ideia era apresentar Cristo como “homem de dores”, exaltando seu corpo ensanguentado, flagelado, desfigurado pelos açoites.

2. Um exemplo do Christus Victor pode ser visto na tela “Ressurreição”, de Matthias Grünewald, exposta no Museu Unterlinden, França (IMAGEM DA DIREITA). A tela mostra na extremidade direita um colorido Cristo ressurreto em ascensão acima do túmulo. O esquife está aberto, os guardas desmaiados, a figura de Cristo aparece cercada por um grande halo resplandecente em contraste com a escuridão do céu noturno. Com os braços estendidos mostrando as feridas em suas mãos, Cristo parece esboçar um singelo e sereno sorriso em seu rosto. Uma visão gloriosa.

3. O Christus Patiens fez e ainda faz muito mais sucesso nas representações artísticas e no imaginário religioso cristão. É um erro pensar que o essa representação só ganhou destaque na teologia católica. Lutero, no debate de Heidelberg, de 1518, propôs a sua “teologia da cruz”, buscando relacionar os sofrimentos de Cristo aos sofrimentos do cristão. O Cantor Cristão (p. ex. hinos 84 e 94) está repleto de canções que exaltam o sofrimento de Cristo na Cruz. E o que dizer do filme "A Paixão de Cristo", um espetáculo de sangue, violência e mau gosto?

4. Alguns artistas, como o russo Viktor Vasnetsov, buscaram retratar Cristo na cruz sem enfatizar o sangue e as marcas da violência que dilacerou sua carne e desfigurou seu corpo (IMAGEM DA ESQUERDA). Repare que a asa de um anjo cobre (propositalmente?) a chaga aberta do lado direito. Outro detalhe: a face de nenhum dos anjos é exibida com o propósito de destacar o semblante sereno de Cristo, no centro.


Jones F. Mendonça

O PAPA COMO ANTICRISTO: UMA BOBAGEM QUE JÁ DURA QUASE MIL ANOS

1. A crença ainda muito popular que supõe ser o papado a manifestação do anticristo pode ser encontrada no século XII, difundida pelos cátaros e valdenses, grupos cristãos que rejeitavam alguns dos elementos centrais da ortodoxia católica. No século XIV foi repetida por John Wyclif, reformador religioso inglês considerado um dos precursores da Reforma Protestante ao lado de Jan Hus.

2. Mas o responsável pela popularização da crença foi Lutero, que em seus escritos não cansa de acusar “o Papa e seus comparsas” de tentarem ocupar o lugar de Cristo, colocando-se acima das Escrituras. O líder supremo da Igreja também é criticado por se deixar seduzir pela “Coroa da soberba”, ao buscar reunir em suas mãos o poder espiritual e o poder temporal.

3. Lutero usa as expressões “contracristo” e “anticristo” para se referir não apenas ao Papa e a seus auxiliares, mas a todos os que contrariam o que Cristo fez e ensinou. Em sua Carta à Nobreza Alemã o monge agostiniano declara com todas as letras: “o Papa é o anticristo”. Mas é preciso ler as cartas de Lutero tendo em vista um contexto muito particular, relacionado ao catolicismo de seu tempo e à sua experiência de vida.

4. Não tenho ideia do que Lutero diria se ressuscitasse hoje, sendo capaz de avaliar e julgar o que é ou não é anticristão ou contracristão. Muitas são as denominações, há líderes para todos os gostos, diversas são as crenças, múltiplas são as maneiras como se articulam fé e realidade concreta. Mas se este julgamento estivesse em minhas mãos, Francisco, que nos deixou recentemente, teria seu nome imortalizado na calçada dos bons exemplos.

5. Descanse em paz, Francisco. E que seu legado jamais seja esquecido.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

LUTERO, OS "FILHOS DE DEUS", OS INCUBUS E OS SUCUBUS


1. A narrativa bíblica presente no capítulo seis do Gênesis – a união dos “filhos de Deus” às “filhas dos homens” – recebeu ao longo da história três explicações básicas: 1) os “Filhos de Deus” são os descendentes de Adão pelo tronco de Seth (benditos); as “Filhas dos homens” são descendentes Adão pelo tronco de Caim (malditas); 2) Os “Filhos de Deus” são seres angelicais; as “filhas dos homens” são humanas; 3) Os “Filhos de Deus” são homens poderosos da antiguidade, precursores das uniões poligâmicas com as “filhas dos homens”, mulheres dotadas de grande beleza.

2. A proposta nº 1 aparece nas Preleções sobre o Gênesis, produzidas por Martinho Lutero entre 1535-1545 (Commentary on Genesis, Vol. 2: Luther on Sin and the Flood). O monge agostiniano entende que o texto aponta para duas violações: 1) Os descendentes de Adão gerados por Seth (“Filhos de Deus”) desejaram as descendentes de Adão geradas de Caim, as “cainitas” (“Filhas dos homens”); 2) O texto revela um ímpeto maligno: desejar tantas mulheres quantas pudessem tomar (poligamia). Lutero faz essa interpretação inspirado na opinião de Nicolau de Lyra, teólogo que viveu entre os séculos XIII e XIV (1270-1349).

3. O reformador rejeita a interpretação judaica que vê os “Filhos de Deus” (bney ha-elohim) como sendo seres angelicais expulsos da corte celeste e convertidos em “demônios”. Para o reformador, tal interpretação não passa de “balbucios judaicos”. A razão: o reformador acredita – reproduzindo crendices medievais muito populares – que demônios podem sim assumir forma humana e até mesmo seduzir e se relacionar sexualmente com homens e mulheres, mas nega que esse tipo de relação seja capaz de gerar filhos tal como indicado no capítulo seis do Gênesis: “quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos” (Gn 6,4).

4. Seguem trechos das Preleções sobre o Gênesis: “Mas quanto aos demônios lascivos e prostitutas (íncubos e súcubos), eu não nego — não, eu acredito! — que um demônio pode ser um lascivo ou uma prostituta, pois ouvi homens citarem suas próprias experiências. [...] Quando o diabo está na cama, um jovem pode pensar que tem uma garota com ele, e uma garota que tem um jovem com ela; mas que qualquer coisa possa nascer de tal concubinato, eu não acredito. Muitas feiticeiras foram, em um momento ou outro, submetidas à morte na fogueira por conta de suas relações com demônios”.

5. Assim, embora reconheça ser possível a relação sexual entre homens/mulheres e demônios masculinos/femininos (íncubos e súcubos), Lutero rejeita veementemente que o capítulo seis do Gênesis trate desse tipo de relação. Para ele, como já foi dito, o texto condena 1) a união entre os descendentes de Seth e de Caim; 2) as uniões poligâmicas. Problemas: 1) O Antigo Testamento jamais condena as uniões poligâmicas; 2) A expressão “bney ha-elohim”, traduzida por “filhos de Deus” sempre indica membros da corte celeste, como Jó 1,6: “No dia em que os Filhos de Deus (bney ha-elohim) vieram se apresentar a Yahweh…”.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de março de 2024

LUTERO, BEAUVOIR E OS BEBÊS


1. Quando Lutero diz, em suas Preleções sobre o Gênesis, que a mulher possui uma habilidade especial para acalentar bebês, em contraste com o homem, inapto para a tarefa, está naturalizando algo que é aprendido, e não implantado no DNA da fêmea.

2. Em "O segundo sexo", ao declarar que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher", Simone de Beauvoir está dizendo exatamente isso: ser fêmea é algo dado pela natureza, ser "mulher" é uma construção social.

3. Assim, quando alguém diz: "isso não é coisa de mulher", está dizendo, "isso não é coisa que a sociedade [patriarcal] consolidou como papel reservado à fêmea". Mas Beauvoir não é tonta a ponto de dizer que tudo é construção social.

4. Quem faz isso é a chamada "esquerda identitária", que nada tem a ver com Marx ou com o socialismo. A direita conservadora, por outro lado, milita pela naturalização daquilo que é construído. Como se os edifícios dos costumes tivessem caído do céu.


Jones F. Memdonça

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

DOUGLAS WILSON E A ESCRAVIDÃO NO SUL DOS EUA


1. Ganhou grande repercussão na mídia o convite feito ao teólogo reformado Douglas Wilson para participar como palestrante em um evento organizado pela Consciência Cristã. O motivo do estranhamento: Douglas Wilson seria um defensor da escravidão, desde que seja feita "de acordo com padrões bíblicos".

2. Como não tenho o costume de acolher acriticamente informações vindas de segunda mão, fui consultar "Southern Slavery: as it was" (Escravidão no Sul: como era"), escrita pelo referido teólogo. Na página 8 você lê o seguinte: "A verdade é que a escravatura no Sul está sujeita a críticas porque não seguiu o padrão bíblico em todos os pontos”.

3. Parei por aí...


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A IGREJA PRESBITERIANA, A MAÇONARIA E A POLÍTICA

1. Muitos dos protestantes que chegaram ao Brasil em meados do século XIX eram membros da maçonaria, instituição que apoiava a evangelização e formava com os protestantes uma relação que envolvia cooperação mútua. Missionários protestantes como John Boyle (presbiteriano) e Salomão Ginsburg (batista) foram frequentemente protegidos por maçons em suas andanças pelo Brasil dos séculos XIX e XX. Reflexos dessa aliança aparecem frequentemente em jornais protestantes.

2. Em 03/03/1900, por exemplo, uma nota publicada no periódico presbiteriano “O Puritano” lamenta que o jornal católico O Lábaro, classificado como “pasquim imundo”, desfira ataques “contra o protestantismo e contra a maçonaria”. Com o tempo, no entanto, as relações entre a maçonaria e a Igreja presbiteriana começaram a azedar e em 06/08/1903 um sínodo foi convocado para discutir o assunto.

3. Na decisão final, publicada no mesmo jornal presbiteriano em 20 de agosto de 1903, consta o seguinte: “O Synodo (sic) julga inconveniente legislar sobre o assunto. Considerando, porém, as contendas acerbas que se teem (sic) levantado sobre a questão, o Synodo (sic) recommenda (sic) aos crentes de uma e de outra parte que nutram sentimentos de caridade christã (sic) uns para com os outros...”.

4. Apesar do sínodo não ter apresentado uma decisão conclusiva sobre o assunto, uma minoria convencida da incompatibilidade entre a Maçonaria e o Evangelho solicitou aos ministros maçons que deixassem a ordem. O sínodo, por sua vez, julgou “prejudicial á (sic) causa do Evangelho qualquer propaganda pró ou contra a Maçonaria no seio da Egreja (sic)”. Na prática a Igreja Presbiteriana rachou por conta desta querela.

5. Na atual polarização política que assola o país, a Igreja Presbiteriana faria enorme bem se mantivesse a postura adotada em 1903, colocando-se neutra em questões político-ideológicas. Se a Igreja está sendo assolada, como querem nos fazer crer, por uma “nefasta influência do pensamento de esquerda”, por que finge não ver algumas feições fascistas do pensamento de direita que tem se desenvolvido no Brasil?

6. Estão coando mosquitos e engolindo camelos. Ou, quem sabe, coando camelos e mosquitos vermelhos e engolindo camelos e mosquitos azuis.


Jones F. Mendonça

 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

LUTERO E AS ÁGUAS NA ESTRUTURA COSMOGÔNICA DOS HEBREUS

1. Neste vídeo, publicado no canal “A Tenta do Necromante”, o professor Osvaldo Luiz Ribeiro fala sobre a semelhança entre as palavras hebraicas “mayim” (água/águas) e “shamaiym” (céu/céus). Ambas têm terminação plural dual, usada para indicar elementos que aparecem em pares, como mãos e orelhas. Mas por que "céus" e "águas" teriam terminação dual?

2. Na percepção do professor Osvaldo, a semelhança entre as palavras e seu caráter dual tem relação com o imaginário dos hebreus quanto à estrutura cosmogônica: as “águas de baixo” (mayim) e as “águas de cima” (shamayim). Os céus, nesse sentido, seriam percebidos como águas superiores. 

3. O professor Osvaldo chegou a essa conclusão por intuição, por seu contato com o hebraico e pela compreensão que tem em relação ao modo como os hebreus enxergavam o mundo. E eu acho que ele está certíssimo. Ele não diz no vídeo (e eu não sei se sabe disso), mas Lutero tinha uma opinião muito parecida, certamente pela influência de gramáticos/exegetas judeus medievais:
Os hebreus derivam muito apropriadamente o termo shamaim, o nome dos céus, da palavra maim, que significa “águas”. Pois a letra shin muitas vezes é empregada em palavras compostas para designar a relação [de uma coisa com a outra], de modo que shamaim é algo aquoso ou que provém da água. Isso também se evidencia pela sua cor; e a experiência ensina que o ar é úmido por natureza (Lutero, Preleções ao Gn 1,6).
4. Lutero diz muita bobagem em suas Preleções ao Gênesis. Mas aqui ele acerta. Caso queira ler algumas de suas bobagens, veja aqui, aqui e aqui.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

NEGACIONISMOS

Em maio de 2020, quando a pandemia começava a empurrar para a cova grande número de vítimas, a “Coalizão pelo Evangelho” (TGC Brasil) divulgou um manifesto destacando: 1) Os negativos e “inevitáveis efeitos colaterais sociais” do isolamento social; 2) O papel da mídia, que “claramente não goza da credibilidade que outrora desfrutava” e, finalmente, 3) O “endeusamento da ciência”. Deveria ter criticado, ao contrário: 1) Os efeitos perigosos das aglomerações; 2) A desinformação que se reproduzia como piolho nas mídias não oficiais; 3) O negacionismo da ciência. Essa galera do “Soli Deo gloria”, como sempre, coando mosquitos e engolindo camelos.


Jones F. Mendonça

sábado, 25 de dezembro de 2021

LUTERO E A TEOLOGIA LIBERAL (PARTE II)

1. O termo “teologia liberal” tem aparecido com certa frequência associado ao discurso cristão progressista de forma bastante equivocada. A teologia liberal clássica é um fenômeno de natureza bem distinta. Nascida no ambiente acadêmico alemão do século XIX, suas principais características podem ser resumidas em cinco pontos (aqui sigo Grenz e Olson). Alguns deles têm os pés fincados na Reforma. Vejamos.

2. A primeira característica – influência do iluminismo – é a tentativa de reconstruir a fé à luz do conhecimento moderno, por isso o liberalismo teológico também tem sido chamado de “modernismo teológico”. A segunda, herança dos reformadores (e do humanismo), é o espírito crítico e certa a rejeição à autoridade da tradição. Estavam decididos, como Lutero, a romper com as crenças tradicionais quando isso parecia correto e necessário.

3. A terceira é a ênfase na dimensão prática do cristianismo em detrimento das especulações teológicas a respeito da natureza de Deus. Em quarto lugar aparece uma tendência que também foi buscada por Lutero: o cânon dentro do cânon. Mas se para Lutero a essência das Escrituras é o Cristo Divino-Salvador (como enfatizado por Paulo), para os liberais é o Cristo ético, completamente despido de sua dimensão sobrenatural.

4. A última característica da teologia liberal é o deslocamento da transcendência para a imanência, outra influência marcante do iluminismo. A “filosofia moral” de Kant, a “filosofia intelectual” de Hegel e a “filosofia intuitiva” de Schleiermacher formaram o tripé, no século XIX, sobre o qual a teologia liberal nasceu. No início do século XX, teólogos como Barth, Brunner e Bultmann propuseram, cada qual a seu modo, um retorno à transcendência.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

LUTERO E A TEOLOGIA LIBERAL

1. No final da Idade Média, a última moda entre teólogos escolásticos como Tomás de Aquino era a busca pela exposição das verdades divinas nos termos da filosofia de Aristóteles. Lutero achava tudo isso pura perda de tempo. Em sua tese 49 “Contra os Escolásticos”, divulgada em setembro de 1517, o reformador declarou: “Se uma fórmula silogística subsistisse em questões divinas, o artigo sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido”. Lutero tinha um discurso um tanto quanto fideísta, como o de Tertuliano.

2. Bem, não demorou muito e os teólogos protestantes ressuscitaram o gosto medieval pela filosofia aristotélica. Entre os séculos XVI e XVII nasceu a chamada “escolástica protestante”, cujos principais expoentes foram Johann Gerhard, David Hollaz e Johannes Quenstedt. A linguagem sofisticada era usada e abusada pelos teólogos para falar sobre o nascimento de Cristo: Maria seria a “causa materialis”, o Espírito Santo, a “causa efficiens” e blá, blá, blá. É bem provável que Lutero ficasse horrorizado.

3. No século XIX os chamados “teólogos liberais” reduziram o cristianismo aos limites da razão. Não se contentaram em demonstrar que as verdades reveladas são compatíveis com a razão, como gostavam os escolásticos (e os neocalvinistas). Queriam submeter a Revelação à razão. Os teólogos liberais também levaram às últimas consequências o livre exame luterano e reivindicavam total autonomia para interpretar as Escrituras. Queriam pensar teologicamente sem as amarras dogmáticas.

4. Não há, no século XXI, qualquer movimento de matriz protestante com legitimidade para reivindicar o papel de verdadeiro herdeiro da reforma. Hoje Lutero seria excomungado por propor uma mudança no cânon, algo que seria enxergado como “atualização das Escrituras”. Para quem não sabe, o reformador atribuiu aos livros de 2 Pedro, 1 e 2 João, Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse um valor menor de inspiração. Tiago foi chamado de “epístola de palha” e Judas de “epístola desnecessária”.

5. O reformador, como qualquer um, fazia leitura seletiva das Escrituras. Seu critério era o seguinte: “Tudo aquilo que Cristo não prega não é apostólico, mesmo que seja escrito por São Pedro ou São Paulo... Tudo aquilo que Cristo prega seria apostólico mesmo que procedesse de Judas, Pilatos ou Herodes”[1]. Lutero tinha muitos defeitos, mas não era dissimulado. Assumia o que fazia. Hoje seria excomungado pela Santíssima Ordem dos Pastores. A acusação: negar a doutrina da inspiração das Escrituras.

[1] WA, 7, 386 (Prefácio a Tiago e Judas, 1546).


Jones F. Mendonça

 

sábado, 18 de dezembro de 2021

OS TRÊS FILHOS NATIMORTOS DA REFORMA

Quando um fiel assume que determinada Declaração Doutrinária (batista, presbiteriana, metodista, etc.) é fiel às Escrituras, está, de certa forma, dizendo que ela também é inspirada e inerrante. Mais do que isso: está dizendo que a comissão que elaborou a Declaração é inerrante. Nesse sentido a Declaração Doutrinária desempenha a mesma função do Papa. Mas não é Papa de carne e osso, é Papa de tinta papel. O livre exame, o sacerdócio universal dos crentes e o Sola Scriptura são três filhos natimortos da Reforma.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

CALVINO E OS “HORRIVELMENTE EVANGÉLICOS”

Calvino, aquele reformador que ajudou a fundar uma espécie de teocracia em Genebra, chama de “decretum horribile” a decisão divina de lançar, sem remédio, à morte eterna, um punhado de gente “por seu decreto” (Institutas, Livro III, XXIII). Talvez tenha saído daí alcunha “terrivelmente evangélico”. Querem nos convencer, como Calvino, que o "horribile" é "boa nova". Mas aquilo que é "horribile" é só horrível mesmo...

As Institutas em latim, aqui.


Jones F. Mendonça

sábado, 27 de novembro de 2021

SOBRE O CRISTIANISMO IDEOLÓGICO

A justificativa apresentada pelo pastor José Wellington, presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, para abandonar sua postura apolítica e mergulhar de cabeça na política partidária foi a seguinte: “quando tivemos agora esta última reforma da nossa Carta Magna, [...] nós descobrimos que havia um pacto da religião maior no Brasil [o catolicismo] para querer se assenhorar do direito de culto religioso no país. [...] Foi quando nós acordamos [...]. E nós temos isso até como Providência Divina. Pode-se dizer que foi Deus quem não deixou” (28/02/92). Foi Deus, sei...

O abuso da religião com fins fins políticos já dura – só no cristianismo – cerca de dois mil anos. A teologia foi instrumentalizada pela ideologia imperial cristã romana, pelas Coroas portuguesa e espanhola no período colonial, por Lutero para legitimar a servidão, por Calvino para justificar a morte aos hereges, por racistas da Ku Klux Klan para por fogo em negros nos EUA, por fanáticos negacionistas no século XXI. Aí me aparece aquele líder religioso do YouTube (como o Malapacas e o NicoSolaFide) dizendo os evangélicos progressistas inventaram o cristianismo ideológico. Só sendo muito tonto...



Jones F. Mendonça

domingo, 14 de novembro de 2021

AS DISPUTAS RELIGIOSAS E AS "FAKE NEWS" NO BRASIL REPÚBLICA

1. Leio jornais das primeiras décadas do século XX para compreender bem como se davam as disputas religiosas após a Constituição Republicana de 1891. Em julho de 1943, diante do crescimento do pentecostalismo no Brasil, um jornal católico publicou texto contra os pentecostais, classificados como “os mais ignorantes, os mais fanáticos e os mais perniciosos de todos os protestantes”. E acrescenta “suas reuniões são verdadeiras ‘macumbas’”.

2. O autor destaca que a “seita pentecostal” era repudiada até mesmo pelos demais protestantes e argumenta, por exemplo, que uma edição do Jornal Batista no início da década de 30 – classificado pelo autor como “jornal protestante-esquerdista” (!) – enumerou alguns dos frutos do pentecostalismo. Na relação aparecem: “perda de fé, amor livre, imoralidade, espiritismo, hipnotismo... loucura”, etc. A estratégia católica era destacar os efeitos nocivos do livre exame luterano, prática que a cada dia gerava mais denominações protestantes que já nasciam se digladiando.

3. Na sequência também é mencionado o jornal presbiteriano “A Mensagem”, que teria tratado o pentecostalismo como “seita turbulenta e de confusão”. Outro jornal presbiteriano, “O Puritano”, publicado em 1939, teria noticiado que num culto pentecostal, “após alguns dias de jejum e reuniões e gritarias” um membro tentou arrancar a língua de um bebê, imaginando estar possuída pela “antiga serpente”.

4. Apesar de toda a oposição católica (com boa dose de exageros, inclusive ampliando a crítica protestante aos pentecostais), o pentecostalismo veio para ficar. O jornal Diário da Noite noticiava, em 10 de março de 1969, a inauguração no largo da Pompeia, em São Paulo, daquele que seria “o átrio do maior templo evangélico do mundo”, com a presença do prefeito Faria Lima. O projeto do templo, sede da Igreja Pentecostal Brasil para Cristo, previa até mesmo a construção de um heliponto!

 

Jones F. Mendonça

sábado, 16 de outubro de 2021

LUTERO E O MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero interpreta o “haja luz” de Gn 1,3 insistindo em seu sentido histórico e na necessidade de uma interpretação que leve em conta o aspecto gramatical simples do texto. Veja:
Moisés está aqui registrando fatos históricos [...]. Embora seja difícil descrever que tipo de luz era essa, ainda não estou inclinado a pensar que devemos nos afastar, sem motivo, da gramática simples.
O reformador rejeita as interpretações alegóricas que entendiam essa “luz” como sendo uma referência aos “anjos bons” e as “trevas” como indicação velada aos “anjos maus”. E assim conclui: “isto é brincar com alegorias”.

Apesar de reconhecer que essa “luz” não poderia ser o sol, criado somente no quarto dia, Lutero insiste que “essa luz era móvel” e que “girava em um movimento circular” tal como imaginava ser o trajeto do sol ao redor da terra, marcando um período de 24 horas.

O reformador foi influenciado pelos exegetas de Antioquia, por comentaristas judeus (ambos rejeitavam a alegoria), por Nicolau de Lira e pelos pensadores humanistas. Em relação a Lira, ele comenta:
É por esse motivo que sou tão favorável a Lira e, de bom grado, classifico-o entre os melhores comentaristas. Ele sempre obedece e segue cuidadosamente a história.
A centralidade do comentário de Lira para os pensadores da Reforma foi homenageada em ditados latinos como, ‘‘Si Lyra non lyrasset, Luther non saltasset ’’ (Se Lira não tivesse tocado, Lutero não teria dançado). Lutero certamente não foi o inventor do método que hoje chamamos de histórico-gramatical, mas em seus textos há clara ênfase nos aspectos históricos e gramaticais do texto.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A TEOLOGIA COMO PATOLOGIA

1. Durante quase dois mil anos, boa parte dos teólogos cristãos justificaram o sofrimento dos judeus a partir da leitura das Escrituras. A lista começa no século II, com Irineu e Tertuliano. No século IV é repetida por Cirilo, bispo de Jerusalém, segue com Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho.

2. No decorrer da Idade Média o pensamento se manteve o mesmo: judeus estão pagando pela crucificação de Cristo (gostavam de citar Mt 27,25). Lutero, no século XVI manteve o velho e perverso antijudaísmo, visível, por exemplo, em seu texto “Os judeus e suas mentiras”, publicado em 1543. Não demorou e esse antijudaísmo se converteu em racismo, em antissemitismo.

3. A primeira manifestação positiva que conheço em relação aos judeus veio do avô presbiteriano do ex-presidente estadunidense George W. Bush. Em 1844 ele publicou um curioso livro intitulado “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”. A obra pode ser encontrada na Amazon ao custo de US$23,90.

4. George Bush (avô) era um restauracionista. A obra defendia – antes mesmo da criação do sionismo(!) – o retorno dos judeus à terra de Israel. Acreditava que na Terra Santa boa parte dos judeus se converteria ao cristianismo. Outro texto importante veio de Karl Barth: “A questão dos judeus e sua resposta cristã”, de 1949.

5. Até o século XIX todos faziam coro dizendo: “judeus estão pagando pela crucificação de Cristo”. Depois disso a coisa se inverteu: “o exército de Israel é o exército de Deus”. Ontem usavam e abusavam das Escrituras para justificar a dor e o sofrimento dos judeus. Hoje é abusada e usada para justificar seu triunfo (e a derrota dos muçulmanos!). Trata-se de uma teologia bipolar, doentia.

6. A pergunta que se impõe diante de nós, hoje, é: que tipo de pessoas os "teólogos" da atualidade estão ferindo, lançando na lama da agonia, no sheol do desespero, em nome das "Santas Escrituras"? A lista não seria pequena...

 

 Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de maio de 2021

CALVINISMO E ESTOICISMO

1. Em suas Institutas, Calvino rejeita a acusação, já feita a Agostinho, de que a doutrina da Providência seja uma versão cristã “do dogma do destino estoico” (Livro I, XVI, 8 ).

2. Ele não nega certas semelhanças entre as duas doutrinas, mas insiste que a Providência estoica aparece relacionada à Natureza/Razão Universal, diferentemente da doutrina que ele prega, segundo a qual “Deus é árbitro e moderador”.

3. Daí ele conclui: “afirmamos que não só o céu e a terra, e as criaturas inanimadas, são de tal modo governados por sua providência, mas até os desígnios e intenções dos homens, são por ela retilineamente conduzidos à meta destinada”.

4. E aqui, claro, devem ser inseridos os desígnios pecaminosos do primeiro casal. Meio louco isso, não?


Jones F. Mendonça