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sábado, 21 de junho de 2025

OS CABELOS PRETOS SÃO NÉVOA


1. Em Eclesiastes 11,10 lemos o seguinte conselho: “Afasta do teu coração o desgosto, e remove o sofrimento da tua carne, pois juventude e negritude são VAIDADE”. A “negritude” da qual o texto fala é certamente uma referência aos cabelos, por isso a Bíblia de Jerusalém optou por inserir a palavra “cabelo” no texto: “juventude e CABELOS negros são vaidade”. Mas por que cargas d’água os “cabelos negros e a juventude” seriam “vaidade”?

2. Do jeito que ficou traduzido, o texto parece sugerir que os cabelos negros funcionam como uma espécie de troféu da juventude, como símbolo do apego exagerado à própria imagem. Mas não se trata disso. O que ele está dizendo é: “afasta do teu coração o desgosto, o sofrimento, porque os cabelos negros, ou seja, tua juventude, é como a 'havel'” (הבל), como névoa. Os cabelos negros são temporários, sendo mais tarde substituídos pelos cabelos brancos, pela velhice.

3. Sendo mais claro: aproveita a vida, porque a juventude é breve como a névoa.


Jones F. Mendonça

sábado, 27 de abril de 2024

JÓ E ECLESIASTES EM ANCIENT NEAR EASTERN TEXTS (ANET)


1. Embora os livros bíblicos de Jó e Eclesiastes possuam cada qual suas próprias singularidades, textos refletindo sobre o sofrimento do justo (Jó) e da aparente falta de sentido da vida (Eclesiastes) são bem atestados entre os diversos povos do Antigo Oriente Próximo desde o II milênio antes da era comum. Quem tiver interesse em conhecer tais escritos deve se debruçar sobre uma coletânea de textos conhecida como ANET (Ancient Near Eastern Texts), que em português pode ser traduzida como “Textos do Antigo Oriente Próximo”. A obra reúne material oriundo da Mesopotâmia e do Egito. Seguem os escritos que de algum modo possuem afinidade com Jó e Eclesiastes e suas respectivas datações/páginas em ANET:

1. “Homem de Deus” ou “Jó sumeriano” (~2000 a.C.); ANET, pp. 589-591.
2. “Eu enaltecerei o Senhor da Sabedoria” (~1200 a.C.); ANET pp. 596-601;
3. “O diálogo de um sofredor com seu amigo” ou “Teodiceia babilônica” ou “Qohelet babilônico” (1000-800 a.C.); ANET pp. 601-604.
4. Textos egípcios classificados como “controvérsia sapiencial” (ANET, pp. 475-479), “O lamento do agricultor” (ANET, pp. 407-410), “O diálogo da pessoa cansada da vida com sua alma” (ANET, pp. 405-407) e “As palavras de exortação de Ipu-Ver (ANET, pp. 441-444).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de julho de 2023

OS OLHOS EM JÓ


1. No livro de Jó os olhos desempenham papeis variados com a finalidade de potencializar a força poética dos versos. Defendendo-se da acusação de que seu sofrimento era causado por alguma falta, Jó diz assim: “fiz um pacto com MEUS OLHOS para não olhar para uma virgem” (31,1). Aqui, como em diversos outros momentos, Jó expõe as incoerências da lógica da retribuição. Enfim, “como posso estar sendo punido se meus olhos sempre se desviaram do mal?”

2. Em 29,15, mais uma vez destacando suas ações sempre dispostas para o bem, Jó recorre à imagem dos olhos, que vêm acompanhados dos pés: “eu era OLHOS PARA O CEGO, e pés para o coxo”. No verso seguinte ele acrescenta: “eu era o pai dos pobres...”. Ora, pergunta-se mais uma vez o servo sofredor, “se fiz o que era justo, por que sofro? Por que Shadday pisa sobre mim como o grão na moenda; esmaga-me como a lama das ruas?”.

3. Em 10,5, reconhecendo que a natureza divina é absolutamente distinta da dos homens, o personagem que dá nome ao livro faz a seguinte pergunta retórica ao Supremo Juiz: “porventura tens OLHOS DE CARNE, ou vês com veem os homens?”. Em sua angústia, como Jeremias perseguido por seus opositores, Jó lamenta: “MEUS OLHOS se consomem na angústia, meus membros definham como sombra”. É significativo que em 42,5 os olhos reapareçam, mas sob nova condição:
“Conhecia-te só de ouvido,
mas agora MEUS OLHOS te veem”.
4. Mas o que Jó vê exatamente? A que tipo de conclusão ele chega? Considerando que a nova percepção de Jó acerca da divindade é inserida no ambiente de uma tormenta (סערה; cf. 38,1), certamente o que ele vê não é um Deus que pode ser domado, que pode ser esquadrinhado pelos olhos e pelas lentes da teologia sistemática. Assim, o que ele vê é um Deus que se comporta de forma imprevisível, que agita violentamente a poeira das estepes em dia de ventania. No meio dessa tempestade Jó se vê como pó, como cinza que rodopia ao sabor do vento. E só.



Jones F. Mendonça

sábado, 24 de dezembro de 2022

SALOMÃO DE BOCHECHA ROSADA

1. Assim como os pintores renascentistas retratavam os personagens bíblicos como europeus (fisionomia, vestes, arquitetura, etc.), os tradutores europeus certamente também foram influenciados por sua própria cultura enquanto traduziam a Bíblia. Dou um exemplo.

2. O Livro dos Cânticos, capítulo 5, verso 10, geralmente é traduzido desse modo: “Meu amado é branco e rosado”. Esta tradução sugere que o amado é branco com bochechas rosadas. Mas não é isso. Explico.

3. Uma tradução mais literal fica assim: “meu amado é ofuscante/ardente e vermelho”. A ideia talvez seja retratá-lo como Davi ou quem sabe destacar seu vigor, representá-lo como uma brasa avermelhada e ofuscante. Difícil saber com certeza.

4. A palavra traduzida por “branco” e que optei por traduzir por “ofuscante” é “tzah” (צח). Ela reaparece em Is 18,4 para qualificar o calor: “como um calor ardente  [tzah] em plena luz do dia” e em Is 32,4: “a língua dos gagos falará com desembaraço e com limpidez”.

5. “Tzah” sempre indica algo brilhante, ofuscante, claro, límpido, nunca a cor branca. Veja que até os cuchitas, que eram negros, são descritos como sendo “altos e polidos”. O termo que traduzi por “polido” aqui “morat” (מורט), um verbo.

6. Os tradutores divergem quanto à tradução de “morat”. A NVI entende que os cuchitas são “um povo alto e de pele macia”. A BJ que são “gente de alta estatura e de pele bronzeada”. Eita! Quem tem razão? Nem a NVI nem a BJ.

7. O verbo é empregado para indicar o “bronze polido” ou a “espada polida” (cf. 1Rs 7,45; Ez 21,10-11). Tudo isso sugere que quando alguém era qualificado como “reluzente”, “polido”, “brilhante”, “límpido” ou “ofuscante”, a ideia era indicar sua força, seu vigor.

8. Assim, tanto o amado do Livro dos Cânticos, como os poderosos guerreiros cuchitas mencionados no livro do profeta Isaías, eram tratados como pessoas “ofuscantes”, ou seja, “vigorosos”.




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A BÍBLIA HEBRAICA E A LITERATURA DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

Tenho reservado o pouco tempo disponível para ler e analisar a produção literária dos povos vizinhos de Israel, como Egito, Assíria, Babilônia e Ugarit, na Síria. Tais textos foram traduzidos e podem ser encontrados em muitas obras – a maioria em inglês e alemão. Quem estiver interessado em conhecer este material e algumas de suas relações com a cultura preservada pelo Antigo Israel na Bíblia Hebraica (BH), encontrará uma boa antologia de textos aqui:
PRITCHARD, James B. (edit.). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Princeton: Princeton University Press, 1969.
A obra aparece na literatura especializada pela sigla ANET e consiste em uma coleção de mitos, contos, crônicas reais, orientações ritualísticas, encantamentos, textos mortuários, cartas reais, preceitos legais, oráculos proféticos e textos de natureza sapiencial, como provérbios e lamentos de um justo que sofre (semelhantes ao de e aos Salmos 22 e 38).



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A SABEDORIA E A INSENSATEZ EM PROVÉRBIOS

1. O capítulo 9 do livro bíblico de Provérbios apresenta a “Sabedoria” e a “Insensatez” de forma personificada. A primeira constrói uma casa, prepara uma mesa farta e convida os ingênuos e os sem juízo a se alimentarem de seu banquete. No v. 6 deixa um conselho: “Deixai a ingenuidade e vivereis; segui o caminho da inteligência”.

2. A partir do v. 13 a “Senhora insensatez” também faz seu discurso. Ela se assenta à porta da casa e chama os que seguem pelo caminho reto: “venham cá, tolinhos, quero falar com vocês, seus desmiolados” (v. 16). Quando se aproximam ela diz assim: “a água roubada é mais doce e o pão escondido é mais saboroso” (v. 17).

3. Esses que passam pela rua e que caem em sua conversa são os ingênuos, pessoas de “cabeça fraca”. No v. 18 a Sabedoria faz um alerta aos que seguem os conselhos da Senhora insensatez: “não sabem que em sua casa estão os rephaim e seus convidados no fundo do Sheol”. A imagem evocada no final do capítulo é pra lá de sinistra (ela reaparece em 2,18).

4. O termo hebraico “rephaim” (plural de rapha’) era usado para indicar o aspecto sombrio, fantasmagórico, dos habitantes do mundo dos mortos, o Sheol. A mensagem final basicamente é esta: “não caia na conversa mole da Senhora Insensatez: sua casa está apinhada de mortos e suas paredes ocultam o alçapão dos infernos”.


Jones F. Mendonça

sábado, 2 de janeiro de 2021

JOSÉ COMO CONTO SAPIENCIAL

1. Em seu comentário ao livro de Gênesis (1949), von Rad destacou o “notável parentesco” da história de José com a sabedoria antiga. José é representado na história como uma espécie de manifestação concreta das virtudes exaltadas no livro de Provérbios: é paciente, piedoso, sábio, foge da mulher estrangeira, não retribui o mal com o mal, etc. Seria a história de José um conto sapiencial?

2. Em ensaio publicado em “The Book of Genesis” (Brill, 2012, p. 232-261), Michael V. Fox acolhe parcialmente a tese de von Rad (vê afinidade entre o relato e a tradição sapiencial), mas entende que a história não tinha a finalidade de instruir discípulos nas diversas virtudes da sabedoria. Sua principal intenção seria enfatizar “a desgraça e a reabilitação de um servo”, ensinando que os sábios também estão sujeitos às vicissitudes da vida (cf, Ecl 9,11).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

JÓ E A TEOLOGIA DA RETRIBUIÇÃO

1. Sofar de Naamat olhou para o Jó moribundo e disse assim: “Não sabes que o júbilo dos ímpios é efêmero e a alegria do malvado só dura um instante?” (20,4-5). E acrescentou, olhando de forma desdenhosa as feridas de Jó: “Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio” (v. 29).

2. Desafiando a teologia da retribuição, segundo a qual o sofrimento só se explica como resultado de alguma falta, Jó respondeu: “Então por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (21,7).

Jó padecia do corpo, mas não do cérebro.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de novembro de 2020

SOBRE TEOLOGIAS FRÁGEIS

1. Sofar de Naamat olhou para o Jó moribundo e disse assim: “Não sabes que o júbilo dos ímpios é efêmero e a alegria do malvado só dura um instante?” (20,4-5). E acrescentou, olhando de forma desdenhosa as feridas de Jó: “Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio” (v. 29). 

2. Desafiando a teologia da retribuição, segundo a qual o sofrimento só se explica como resultado de alguma falta, Jó respondeu: “Então por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (21,7). 

3. Jó padecia do corpo, mas não do cérebro



Jones F. Mendonça