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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

O QUE É UM "CORAÇÃO QUEBRANTADO" NA BÍBLIA HEBRAICA?


1. Um dos meus passatempos prediletos é examinar a variedade de sentidos que uma mesma palavra ou expressão hebraica desempenha ao longo do texto bíblico, dependendo do contexto. Hoje quero analisar a expressão “coração quebrantado/despedaçado”, presente nos seguintes textos: Sl 34,18; 51,17; 69,20; 147,3, Is 61,1 e Jr 23,8. Na maioria desses versos, a imagem do coração em pedaços tem sentido negativo: indica uma pessoa que se encontra em uma situação de abalo emocional profundo, miséria, humilhação ou desânimo.

2. No Sl 34,18, por exemplo, lemos que Yahweh está perto dos “corações quebrantados”, ou seja, dos “desanimados”, “abatidos” (a NTLH é uma das poucas que acerta. Não é “contrito” como quer a Bíblia de Jerusalém). No Salmo 69,20 o salmista tem seu “coração quebrantado” porque sofre um insulto e se sente humilhado. Um indivíduo que tem o “coração quebrantado” precisa de cura, como sugere o Sl 147,3: “ele cura os corações despedaçados e cuida dos seus ferimentos”. Is 61,1 tem o mesmo apelo: “O Espírito de Yahweh cura os corações quebrantados” ( = abatidos).

3. O único texto que emprega “coração quebrantado” para indicar contrição, arrependimento, é o Sl 51,17: “Sacrifício a Deus é um espírito quebrantado, coração quebrantado e esmagado”. Resumindo: 1) Ter um coração quebrantado significa, na maioria dos casos, que determinado indivíduo se sente humilhado, abatido, abandonado, por isso declara necessitar do auxílio divino; 2) Em um caso específico (51,17), ter um coração quebrantado indica que uma pessoa humilhou-se diante da divindade, ou seja, que está arrependida.

4. Agora vejamos o caso de Jr 23,8. Note que o profeta emprega a expressão "coração despedaçado" para indicar um estado de espírito terrivelmente abalado diante da revelação que lhe foi dada. Esta palavra, além de despedaçar seu coração, também faz estremecer todos os seus ossos, conduzindo seu corpo ao colapso: "Sou como um bêbado, como um homem que o vinho dominou". Jeremias não está declarando arrependimento. Ele se revela atônito, assombrado com "as santas as palavras" de Yahweh.

5. Para alguns, essa diferenciação pode parecer desnecessária, inútil. Mas para o tradutor é importante distinguir uma coisa da outra, afinal de contas há grande diferença entre sentir-se abalado devido a uma ação externa (abandono, ofensa, perda do patrimônio, derrota em uma batalha ou espanto diante de uma revelação inesperada) e a auto-humilhação provocada pelo reconhecimento de alguma falta.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

É CLARO QUE MOISÉS NÃO É O AUTOR DO PENTATEUCO


1. Os primeiros a notarem que o Pentateuco não pode ter sido escrito por um único autor foram os sábios judeus, convencidos de que a morte de Moisés não poderia ter sido registrada pelo próprio profeta. No final da Idade Média novos trechos foram sendo colocados em dúvida. Um exemplo: de acordo com Gn 14,14 Abraão perseguiu quatro reis que haviam sequestrado Ló e seus bens “até Dã”. Ora, o território da Dã só passou a existir quando os israelitas, liderados por Josué, atravessaram o Jordão e ocuparam a terra, que foi distribuída entre as tribos.

2. Assim, como Moisés poderia ter se referido a um território que sequer existia enquanto estava vivo? A conclusão é óbvia: quem redigiu essa história já estava na terra. E como Moisés, de acordo com texto, não entrou na terra, essa pessoa não pode ter sido Moisés. Outros detalhes que causaram estranheza: o texto se refere a Moisés em terceira pessoa: “e Moisés fez isso, e Moisés fez aquilo”. Não é difícil deduzir que o redator está contanto a história de Moisés, uma pessoa do passado cuja história foi preservada pela tradição.

3. Alguém poderia perguntar: “em que sentido a negação da autoria mosaica do Pentateuco muda o modo como lemos o texto?”. Minha resposta: muita coisa. Em primeiro lugar porque as histórias do Gênesis foram escritas em um período no qual a Lei já funcionava como parâmetro de certo e errado, ao menos para parcela da população. Assim: Gn 2,3 legitima a guarda do sábado; Gn 2,16-17 pretende convencer os israelitas a não violarem o mandamento divino (a Lei); Gn 4 condena “veladamente” os sacrifícios não cruentos oferecidos por Caim.

4. Enfim, os textos tinham como audiência indivíduos que já estavam habituados com a Lei, mesmo quando essas histórias são situadas em um tempo no qual certos costumes e tradições não haviam ainda sido afetadas pela introdução da Lei. O “território de Dã” não existia no tempo de Abraão, nem no tempo de Moisés, mas quem conta a história projeta seu conhecimento geográfico no passado. E isso também acontecia com as crenças, claro.



Jones F. Medonça

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

ZADOK, UM "SACERDOTE SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS"


1. Já defendi, em post anterior, que “ser alguém segundo o coração de Deus”, como Davi (cf. 1Sm 13,14), é uma maneira de dizer que determinado indivíduo foi fiel cumpridor da lei, ou melhor, da lei tal como aparece registrada no Deuteronômio. Outro rei louvado por sua fidelidade à lei deuteronômica é Josias, por isso o Segundo Livro dos Reis declara: “não houve antes dele [de Josias] rei algum [nem Davi!?] que se tivesse voltado, como ele, para Yahweh, DE TODO O SEU CORAÇÃO...” (2Rs 23,25).

2. Além de reis, também “procede conforme o coração de Deus” um sacerdote. Quando o sacerdote Eli é advertido de que o ofício sacerdotal seria removido de sua casa, a seguinte promessa é anunciada: “farei surgir um SACERDOTE FIEL, que procederá CONFORME O MEU CORAÇÃO e o meu desejo, e lhe concederei uma casa que permaneça, a qual andará sempre na presença do meu ungido”. Mas quem é esse sacerdote? E quem é esse ungido ao lado do qual atuará esse sacerdote?

3. Bem, esse “ungido” é Davi e esse sacerdote é Zadoc, que substituiu a linhagem de Eli (cf. 1Rs 2,27). Embora a genealogia bíblica apresente Zadoc como descendente de Aarão, assim como Eli, especula-se que ele tenha sido originalmente um sacerdote jebuseu incorporado à religião israelita por meio de algum tipo de negociação. Seja como for, veja que Zadoc, ao lado de Davi e Josias, recebe um status especial. E por que todos receberam esse status especial? Ora, porque foram avaliados a partir do que diziam as leis deuteronômicas.

4. Então não tem nada a ver com o fato de Davi ser alguém que constantemente se arrependia? Não. Saul também é apresentado como alguém arrependido após ter poupado Agag, rei amalequita, do anátema (cf. 1Sm 15,3): “Pequei e transgredi a ordem de Yahweh e os teus mandamentos, porque temi o povo e lhe obedeci" (1Sm 15,24). É importante perceber que o critério de avaliação dos reis, sacerdotes e profetas bíblicos não era baseado em valores modernos, mas em valores considerados preciosos pelo redator.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 5 de agosto de 2025

O CORAÇÃO NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Três expressões na Bíblia Hebraica empregam o elemento “coração” como expressão da vontade. O primeiro exemplo vem de uma característica atribuída a Davi, a Zadoc e aos “pastores”, que agiam “segundo o CORAÇÃO DE DEUS” (cf. 1Sm 13,14; 1Sm 2,35; Jr 3,15). Assim, a expressão “segundo o CORAÇÃO de Deus” deve ser lida como “segundo A VONTADE de Deus”. “Coração”, aqui, não possui qualquer apelo sentimental.

2. Em alguns casos, o “coração” é o do próprio personagem. Josias, por exemplo, é louvado por se voltar para Deus “de todo o seu coração” (2Rs 23,25). O que isso significa? Significa que este rei está sendo elogiado por obedecer a Deus com toda A SUA VONTADE, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. E quem pode agir dessa maneira? De acordo com o Deuteronômio, todo aquele que circuncidou o “prepúcio do seu coração” (Dt 10,16).

3. Por vezes a referência ao coração expressa algum tipo de motivação reprovável. Isso acontece quando é dito que determinada pessoa age de acordo “com o seu próprio coração”. Este tipo de apelo negativo ao coração pode ser encontrado em Ezequiel: “dize aos que profetizam SEGUNDO O SEU PRÓPRIO CORAÇÃO” (Ez 13,2) e “volta-te contra as filhas do teu povo que profetizam SEGUNDO O SEU PRÓPRIO CORAÇÃO” (Ez 13,17).

4. Neste último exemplo o “coração” desempenha a mesma função, atuando como sinônimo de “vontade”. Assim, quem profetiza “segundo o seu próprio coração”, faz isso de acordo com suas próprias vontades e não “de acordo com o coração/vontade de Deus”. O “coração” também pode aparecer de alguma maneira relacionado ao intelecto (Ecl 1,13), aos desejos (Pv 20,5), às paixões (Gn 34,3) e ao medo (1Sm 28,5).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de julho de 2025

HIPÓTESE DOCUMENTAL, REDAÇÃO CONTINUADA E CÍRCULOS NARRATIVOS


1. No capítulo 10 do Gênesis o leitor é informado a respeito dos “clãs” e das “LÍNGUAS” faladas pelos descendentes de Noé: Jafé, Cam e Sem (Gn 10,5.20.31). Mas já no capítulo seguinte esse mesmo leitor se depara com esta surpreendente declaração: “Havia em todo o mundo UMA ÚNICA LÍNGUA e um único idioma”. Afinal, havia "muitas línguas" ou "uma única língua"? Sigamos.

2. Quando comparamos o relato da criação de Gn 1 com o relato de Gn 2 também somos surpreendidos por desconexões dessa natureza. Repare que em Gn 1 o homem é criado no sexto dia (1,26), DEPOIS da vegetação (1,11). Em Gn 2 a ordem aparece invertida: o homem é criado ANTES da vegetação: homem – Gn 2,7; vegetação – Gn 2,8-9. Como explicar isso?

3. Todas essas questões foram amplamente discutidas por estudiosos da Bíblia no século XIX. Julius Wellhausen desenvolveu uma hipótese que se tornou dominante no âmbito acadêmico até a década de 70: o Pentateuco seria o resultado da junção de quatro fontes escritas, nascidas em lugares e tempos diferentes, mais tarde unidas para compor uma obra unificada. Nesse sentido, Gn 1 e Gn 2 seriam relatos independentes.

4. A hipótese de Wellhausen, conhecida como “hipótese documental”, foi capaz de explicar não apenas os conflitos, rupturas e repetições narrativas, mas também as diferenças entre códigos legais do Pentateuco relacionados ao mesmo tema. Mas, como já foi dito, na década de 70 a hipótese documental foi alvo de uma série de críticas.

5. Apesar de reconhecerem que o Pentateuco não foi escrito por uma só pessoa, mas o resultado de um longo processo redacional, esses estudiosos perceberam que a formação desse bloco de cinco livros foi muito mais complexa do que supunha Wellhausen. Duas teorias novas surgiram: 1) Hipótese da redação continuada, 2) Hipótese dos círculos narrativos.

6. A hipótese da REDAÇÃO CONTINUADA propõe o seguinte: havia, originalmente, uma narrativa completa, que ia da Criação à morte de Moisés. Mais tarde essa história teria sofrido interferências redacionais atualizadoras e interpretadoras. A hipótese dos CÍRCULOS NARRATIVOS, por outro lado, supõe os diversos blocos narrativos do Pentateuco tiveram sua própria história de crescimento, sendo unidas mais tarde.

7. Atualmente há quem busque outras soluções. W. H. Schmidt, por exemplo, tentou combinar o modelo dos círculos narrativos com o modelo de fontes. Seja como for, uma coisa é certa: o Pentateuco tal como o conhecemos é uma obra compósita, produzida por muitas mãos que liam e reliam narrativas mais antigas, as atualizavam, as ressignificavam.




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O PECADO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Todas as vezes que um leitor da Bíblia se depara com a palavra “pecado”, no Antigo Testamento, está lendo a tradução da palavra hebraica “hata’” (חטא) ou algumas de suas variantes. Mas qual o seu significado? Bem, seu sentido mais básico é “errar”, “falhar”, “cometer um equívoco”. Quer um exemplo? Assim que percebe que sua rebelião contra Senaqueribe deu errado, o rei Ezequias diz assim: “COMETI UM ERRO... aceitarei as condições que me impuseres...” (2Rs 20,16).

2. No exemplo acima, não faz sentido dizer que Ezequias “pecou”, porque seu erro não foi contra um mandamento divino e sim contra um rei estrangeiro. Apenas quando esse “erro” aparece relacionado ao descumprimento de alguma ordem divina, os tradutores optam pela palavra “pecado”, do latim “peccare”, que significa “tropeçar”. A escolha não foi ruim, afinal, a alusão visual a um “tropeço” funciona muito bem para indicar um erro, esteja ele relacionado a um preceito religioso ou não.

3. Ao longo dos séculos, no entanto, a palavra “pecado” passou a ser empregada de forma restrita, como se fosse possível fazer uma lista daquilo que é “certo” ou “errado” a partir do texto bíblico. No caso do Antigo Testamento, por exemplo, “matar” é considerado “pecado” apenas em certas circunstâncias. Há casos em que “NÃO matar” é tratado como um “pecado”, como no caso de Saul, que poupou a vida de Agogue, rei amalequita, e o melhor do seu rebanho (1Sm 15,9).
 
4. Além disso, a palavra “pecado”, na cabeça de boa parte das pessoas, tem servido para indicar “tropeços” muito específicos, geralmente de ordem sexual ou relacionados a práticas condenáveis de forma quase que universal, tais como a mentira, o roubo e o assassinato. No Antigo Testamento, no entanto, a percepção de que alguém cometeu um “pecado” diante de Deus está diretamente relacionada a alguma ordem divina que foi desobedecida, seja ela moralmente aceitável ou não sob uma perspectiva moderna.
 
5. Foi pensando em todas essas questões que Martin Ehrensv, um dos tradutores da Bibelen 2020 – versão da Bíblia escrita em dinamarquês –, resolveu traduzir “hata’” por expressões mais neutras, tais como “algo que Deus não quer” ou “algo que se opõe à vontade / lei de Deus”. Com este artifício, Ehrensv evita perpetuar noções equivocadas atribuídas a determinadas palavras hebraicas, cujo sentido original foi contaminado por noções que não fazem parte do seu universo linguístico.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 15 de julho de 2025

POR QUE HÁ TANTAS TRADUÇÕES DIFERENTES DA BÍBLIA?

1. É possível apresentar ao menos três razões para explicar as diferenças – por vezes gritantes – entre as versões da Bíblia disponíveis no mercado. A primeira delas aparece relacionada ao manuscrito utilizado como base para a tradução. Ao contrário do que muita gente imagina, as cópias do texto bíblico do AT e do NT, produzidas manualmente durante séculos, possuem muitas diferenças entre si, ocasionadas por diversas razões, tanto intencionais como não intencionais. É tarefa da Crítica Textual comparar essas cópias na tentativa de reconstruir aquele que seria o texto mais antigo. Este trabalho envolve uma série de complexidades que não cabem em um post do Facebook.

2. A segunda razão toca em uma questão que afeta qualquer tipo de tradução. As palavras de um determinado idioma não equivalem exatamente às palavras de outro idioma, exigindo do tradutor um exercício nem sempre fácil: escolher palavras do idioma de destino que melhor correspondam às palavras do idioma original. Esse exercício se torna ainda mais complexo quando o texto que está sendo traduzido foi redigido de forma poética (como os Salmos), ou estruturado em pequenas sentenças (como o Livro de Provérbios). Nem todos compreendem do mesmo modo as metáforas, os jogos de palavras, as sutilezas do idioma original. E é preciso acrescentar: sequer sabemos o significado de algumas palavras.

3. A terceira razão diz respeito ao método de tradução: equivalência formal ou equivalência dinâmica? Os tradutores que optam pelo método de equivalência formal se esforçam para manter a estrutura original do texto. Um exemplo: “vaidade das vaidades, diz o pregador...”. Neste caso, o tradutor buscou seguir exatamente a estrutura do texto hebraico: “havel havalim ‘amar qohélet”. As versões que adotam o método de equivalência dinâmica, entendendo que a repetição de uma mesma palavra, no singular e no plural (“havel havalim” = “vaidade das vaidades”), funciona como superlativo, optam por sintetizar a ideia de maneira mais simples. Isso explica a opção feita pela NVI: “Que grande inutilidade!”.

4. É interessante notar que o exemplo acima, tomado de Eclesiastes 1,2, exigiu do tradutor duas habilidades: 1) Escolher uma palavra em nosso idioma que melhor corresponde ao hebraico “havel”, que significa “névoa” (daí “vaidade”, do latim “vanus” = “vazio”, ou, como preferiu a NVI, “inutilidade”); 2) Escolher se mantém a estrutura original do texto (equivalência formal) ou se tenta capturar a ideia que o texto quer comunicar (equivalência dinâmica). Caso o texto de Eclesiastes em questão tivesse sido registrado de maneiras diferentes nos manuscritos disponíveis, ainda seria necessário decidir qual deles reproduz melhor o texto mais antigo. Veja como não é fácil o trabalho do tradutor.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de julho de 2025

AS OVELHAS GORDAS DE EZEQUIEL


1. O capítulo 34 do Livro do Profeta Ezequiel faz uma dura crítica aos “pastores” ( = a liderança de Judá), acusados de abandonar as “ovelhas” ( = o povo), dispersadas “por toda a terra” (34,6). Distantes da sua terra natal, essas “ovelhas” são retratadas como “abandonadas, feridas e fraturadas”, carentes do cuidado divino. Diante de tal abandono, Yahweh declara no v. 11: “certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e o procurarei”.

2. O texto se torna confuso no v. 16, ao incluir um segundo grupo de ovelhas na profecia. Elas não são descritas como “abandonadas, feridas ou fraturadas”, mas como fortes e saudáveis. Um detalhe que causa dúvida nos tradutores é o seguinte: Essas ovelhas são objeto de juízo ou de salvação? Elas estão sendo “guardadas” ou “destruídas” por Yahweh? Compare você mesmo a tradução do mesmo verso na Bíblia de Jerusalém e na NVI:

“(A) Quanto à GORDA e VIGOROSA, (B) GUARDÁ-LA-EI” (BJ).
“(A’) a REBELDE e FORTE, eu a (B’) DESTRUIREI” (NVI).

3. Há dois contrastes visíveis entre essas duas traduções. Na BJ a ovelha é “gorda”; na NVI é “rebelde. Na BJ ela será “guardada”; na VNI ela será “destruída”. Quanta diferença! Pessoalmente não tenho dúvidas de que a tradução de “shamen” (שמן) por “gorda” é a mais acertada. Ponto para a BJ. Mas não acho que essas ovelhas serão “guardadas” como sugere a BJ. A NVI está correta, elas serão “destruídas”. Qual a razão disso?

4. Inicialmente é preciso dizer que tradução grega registra “guardar” (φυλασσω) e a versão hebraica “destruir” (שמד), daí a diferença*. Os tradutores da BJ tomaram como certa a versão grega, conhecida como Septuaginta. Guarde isso. Prossigamos. Note o leitor que os vv. 17 a 22 falam a respeito do julgamento das ovelhas, que serão punidas juntamente com os pastores. Mas por que as ovelhas “gordas e vigorosas” seriam punidas?

5. Isso ainda não está muito claro para mim. Talvez indique um grupo de pessoas ricas que permaneceu na terra após a destruição de Jerusalém em 587 a.C. Assim, eles apareceriam em oposição às ovelhas “abandonadas, feridas e fraturadas” do exílio. Esta oposição também aparece registrada no Livro do Profeta Jeremias, que opõe os “figos bons” (judeus do exílio) aos figos “podres” (judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito).

* As palavras hebraicas "destruir" e "guardar" são parecidas no hebraico: shamar (שמר) = guardar; shamad (שמד) = destruir. Os tradutores da BJ supõem que a versão grega preservou o sentido correto do texto: "guardar".


Jones F. Mendonça

domingo, 6 de julho de 2025

URIAS NÃO "LAVOU OS PÉS", POR ISSO FOI MORTO


1. Assim que recebeu a notícia de que Bat-Sheba, mulher de um dos seus generais, havia engravidado, Davi pôs em curso um plano para ocultar sua perigosa aventura sexual. Ele mandou chamar Urias, o marido traído, e disse assim: “desce à tua casa e lava os teus pés” (2Sm 11,8). Mas o que Davi queria dizer com isso?

2. Considerando que “pé” em hebraico (רגל) tem sentido amplo, podendo servir para indicar a perna (Is 47,2) ou até mesmo o órgão sexual masculino (Is 7,20), fica a pergunta: “lavar os pés” seria um eufemismo para “ter relações sexuais”? Vamos com calma. A resposta é sim e não. E vou explicar por quê.

3. A expressão “lavar os pés” reaparece na Bíblia Hebraica muitas vezes, por isso é preciso analisá-la em diversos contextos. Ela ocorre nos livros de Gênesis, Juízes, Samuel e Cântico dos Cânticos, sempre indicando a ação de banhar-se como preparativo para o repouso (cf. Gn 18,4; 19,2; 24,32; Jz 19,21; 1Sm 25,41; Ct 5,3).

4. Assim, ao dizer a Urias: “desce à tua casa e lava os teus pés”, Davi sugeriu o seguinte: “Urias, vai pra casa, toma um banho e tenha um merecido descanso da guerra”. Urias entendeu que esse banho seria acompanhado de outras atividades prazerosas, por isso diz: “irei eu à minha casa para COMER e BEBER e DEITAR-ME com minha mulher?” (11,11).

5. Urias parecia ser bom general, mas era bobinho que só. Ao recusar o pedido de Davi, o general morreu sem banho, sem banquete, sem boa noite de sono e sem a mulher. Repare que neste bela tela, produzida por James Tissot, o rei é retratado aflito ao ver a jovem Bat-Sheba banhando-se como veio ao mundo.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 13 de junho de 2025

SHIBOLET, GALAAD E OS GALILEUS


1. De acordo com uma história contada no livro bíblico de Juízes, indivíduos da tribo de Efraim (Oeste) se distinguiam dos israelitas que viviam em Galaad (Leste) pelo sotaque, uma vez que não conseguiam diferenciar o som da consoante “shim” (שׂ) – som de “SH” – da consoante “samekh” (ס) – som de “SS”. Assim, para saber se uma pessoa era benjamita bastava pedir para que pronunciasse uma palavra como “shibolet” (שׂבלת). Se ela dissesse “sibolet” (סבלת) sua identidade era imediatamente revelada. Usando este artifício, o gaaladita Jafté teria descoberto e matado 42 mil homens de Efraim (Jz 12,1-7).

2. O Novo Testamento registra diferenças de sotaque entre nortistas, como Pedro, e sulistas, como os sacerdotes de Jerusalém. Os evangelhos nos informam que Pedro foi denunciado por seu sotaque ao tentar negar que conhecia Jesus, o “Nazareu”: “De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia” (Mt 26,73; Mc 14,70; Lc 22,59). Mas será que a diferença também tinha a ver com a pronúncia do “SH”? Não neste caso. Sabemos, graças a uma antiga anedota, que os galileus não conseguiam articular muito bem as chamadas “consoantes guturais” no dialeto aramaico falado na Palestina do I século.

3. Essa falta de habilidade impedia que os galileus conseguissem distinguir entre “hamâr” (burro), “hamar” (vinho), “‘amah” (lã) e “immar” (cordeiro), por isso se tornaram alvo de chacota entre os comerciantes de Jerusalém: "Ô galileu, tolo, o que tu precisas é de uma coisa para montar (hamâr, um burro), de algo para beber (hamar, vinho), algo para fazer uma roupa ('amar, lã), ou algo para um sacrifício no Templo (immar, cordeiro)?”. Esta curiosa zombaria aparece registrada na Mishah (bEribin, 53b) e é comentada por Geza Vermes em “As várias faces de Jesus” (Record, 2006, p. 326).

*“Shibolet” significa “espiga”, como em Jó 24,24: “como a cabeça da ESPIGA são cortados”, referindo-se aos “ímpios”.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de junho de 2025

OS "MACHONÁRIOS" E JÔNATAS "DE GATINHAS"

1. O líder dos Machonários abriu sua Bíblia no capítulo 14 do Segundo Livro de Samuel, versão Almeida Revista e Atualizada. O texto, se você não sabe, narra a batalha entre Jônatas, filho de Saul, e os filisteus, que desafiavam com ofensas Jônatas e seu escudeiro. Os Machonários que acompanhavam a leitura ficaram empolgados: “vamos lá, Jônatas, acaba com esses maricas!”. O líder da reunião fez uma pausa, respirou fundo e reproduziu as palavras dos filisteus dirigidas a Jônatas e a seu companheiro: “subi a nós, e nós vos daremos uma lição”.

2. A galera que lotava o galpão foi ao delírio: “parte pra cima, Jônatas, mostre a esses incircuncisos o poder de tua testosterona”. Os brados eram tão altos que faziam tremer as telhas da cobertura de zinco do galpão. Logo depois veio o silêncio. Era grande a expectativa. Qual seria a atitude tomada pelo grande guerreiro machonário? Golpes de faca? Luta corporal? Disparo de flechas certeiras? Movimentos com espada? Leia você mesmo: “Então trepou Jônatas DE GATINHAS, e o seu escudeiro atrás dele” (2Sm 14,13). A decepção foi geral.

3. Um líder famosinho, arqueólogo do YouTube com voz de locutor de rádio que fazia parte da liderança tentou intervir, assumindo o microfone: “pera lá, no hebraico não diz isso não...”. E começou a ler em hebraico: “vayoal yonatan al-yadayv veal-raglayv”. Mas as palavras do arqueólogo do YouTube soavam como “ta-ta-ti, tateté, valoya, me-meme”. Não eram palavras brutas o suficiente. Diziam que parecia um Bebê Reborn falando. O clima ficou tenso e a confusão só aumentava.

4. A reunião acabou e os machonários voltaram pra casa sem conseguir resgatar a tão sonhada macheza perdida.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 30 de maio de 2025

A BÍBLIA HEBRAICA E O BEIJO NO PIEL

1. Uma das coisas que aprendi sobre verbos nas aulas de hebraico e reproduzi para meus alunos é a seguinte: verbos classificados no tronco do QAL têm ação simples (p. ex. “ele beijou”); verbos classificados no tronco do PIEL têm ação enérgica, intensa, repetida ou demorada (p. ex. “ele beijou intensamente”). Parece bem simples, não? O exemplo que dei aqui – com o verbo “beijar” – aparece na gramática escrita por Page H. Kelley, p. 40 e também na gramática produzida por Tereza Akil e Rosemary Vita, p. 50. Guarde isso. Sigamos.

2. Com a ajuda de um software bíblico consigo identificar todas as ocorrências do verbo “beijar” (נשק) na Bíblia Hebraica. Mais do que isso, o software sinaliza pra mim quando esse verbo aparece no QAL (forma simples) ou no PIEL (forma intensiva). Com essas informações na minha tela, só preciso analisar caso a caso, de forma que seja possível verificar se a informação passada pela gramática se confirma no mundo das realidades concretas. Sim, sou uma pessoa muito desconfiada. Que tal analisarmos o uso do verbo na história de José?

3. No capítulo 45, verso 14, do Livro do Gênesis, tomamos contato com o dramático encontro entre José e seu irmão Benjamin. José o abraça, e chora emocionado. No verso seguinte ele faz o mesmo com seus outros irmãos: “Em seguida ele COBRIU DE BEIJOS todos os seus irmãos e, abraçando-os, chorou” (Tradução da Bíblia de Jerusalém). Considerando que o verbo “beijar” aqui está no PIEL, o tradutor enfatizou a intensidade da ação empregando outro verbo: “COBRIU de beijos”. Foi uma boa solução.

4. Mais adiante o leitor se depara com outro encontro emocionante, desta vez entre José e seu pai, Jacó: “Então José se lançou sobre o rosto de seu pai, e chorou sobre ele e O BEIJOU” (50,1). Eu esperaria um beijo bem intenso, afinal estamos diante de uma despedida definitiva entre um filho e um pai. Acontece que o verbo “beijar” aqui está no QAL, teoricamente indicando uma ação simples. Assim, fico pensando se o verbo “beijar” no PIEL realmente indica ação intensiva ou repetitiva, como dizem os gramáticos.

5. Muitas vezes um verbo no QAL – teoricamente indicando ação simples – sugere ação intensiva. Muitas vezes o verbo no PIEL – teoricamente indicando uma ação intensiva – sugere ação simples. Talvez seja possível resolver a questão do seguinte modo: Gn 45 e 50 foram redigidos por autores diferentes. O autor de Gn 45 teria optado por enfatizar a ação, usando o verbo no PIEL; o autor de Gn 50 teria empregado o verbo no QAL, pensando que não havia necessidade de usá-lo no PIEL, dadas as circunstâncias. Será? 

6. Além de Gn 45,15, outras ocorrências do verbo “beijar” no PIEL, podem ser encontradas em Gn 31,28 (infinitivo do PIEL); 31,55 (imperfeito do PIEL) e no Sl 2,12 (imperativo do PIEL). Não há qualquer razão aparente para que nestes casos específicos a ação seja necessariamente percebida como “intensiva”, seja na repetição, seja na duração, seja no ardor. Tudo isso parece bastante confuso. Será que comptreendemos suficientemente bem como funcionam os verbos no tronco do PIEL?  



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 1 de maio de 2025

PRECISAMOS FALAR SOBRE O TAMANHO DE GOLIAS


1. Eu poderia citar ao menos duas tretas envolvendo o embate entre Davi e Golias tal como preservado no livro bíblico de I Samuel. A primeira diz respeito ao tamanho do “gigante” filisteu. A versão da história contada em hebraico registra o seguinte: Golias tinha a altura de “seis côvados e um zeret (זרת)” (1Sm 17,4). Bem, ninguém tem certeza sobre o significado de “zeret”, mas sabemos que o termo foi traduzido por “palmo” (σπιθαμης) nas versões gregas do texto hebraico. Se isto for certo, Golias teria “seis côvados e um palmo”. Fazendo as contas: 6 côvados de 45cm + 1 palmo de 23cm = 2,93 metros (*).

2. Acontece que na versão grega do texto hebraico, conhecida como Septuaginta ou LXX, a altura de Golias foi registrada de maneira diferente. Golias teria “quatro” (τεσσαρων) côvados e um palmo e não “seis” côvados e um palmo. Somando os quatro côvados de 45 centímetros + um palmo de 23cm = aproximadamente 2 metros (cerca de 1/3 menor que na versão hebraica). Caso você leia com atenção, vai perceber que em nenhum lugar o texto trata Golias como “gigante”. Apenas enfatiza que ele era forte e extremamente hábil na arte da guerra.

3. Bem, esta é a primeira treta. Quer saber qual é a segunda? Essa eu não conto. Mas se você quiser ler uma obra crítica sobre as narrativas bíblicas relacionadas a Davi, eu sugiro “Davi: a vida real de um herói bíblico” (Zahar, 2016), escrito por Joel Baden, professor de Yale e especialista no Antigo Testamento. Baden adora uma treta. Eu, não... 

(*) Palmo (σπιθαμης) , em textos gregos, indicava a distância entre o polegar e o dedo mínimo da mão quando estendidos, cerca de 23 cm de envergadura. O côvado era a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio, aproximadamente 45 cm.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de março de 2025

O "COLO DO ÚTERO" NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Quando uma mulher caminha para os últimos dias da gravidez, o colo do útero começa a se preparar para a saída do bebê, dilatando-se e tornando-se mais flexível. É óbvio que os antigos israelitas não tinham uma compreensão detalhada a respeito da fisiologia do parto, mas as parteiras sabiam que uma dilatação precisava acontecer e que uma ajuda do bebê era importante.

2. Aquilo que hoje chamamos de “colo do útero” era conhecido em hebraico como “mishber” (משבר), algo como “local do rompimento”. Dois exemplos. Em Isaías 37,3 lemos este lamento atribuído ao rei Ezequias: “os filhos chegaram AO PONTO DE NASCER (mishber), mas não há força para dar à luz” (Bíblia de Jerusalém). Uma tradução literal seria: “os filhos se achegam AO LOCAL DO ROMPIMENTO, mas não há força para fazê-los nascer”.

3. O verso aparece no contexto da invasão assíria, cujo exército estava estacionado em Laquis, a poucos quilômetros de Jerusalém. A imagem de mulheres em trabalho de parto, incapazes de dar à luz, fui usada pelo rei Ezequias para enfatizar sua tristeza frente à ameaça imposta pelo exército inimigo, que revelava ser capaz de permitir a vida ou declarar a morte dos filhos do seu povo. A fraqueza da mãe reflete a fraqueza de Jerusalém.

4. No livro do profeta Oséias, o “mishber”, nosso “colo do útero”, reaparece, desta vez enfatizando a apatia do bebê, que não reage frente aos esforços desesperados da parteira: “os cordões do parto vêm sobre ele, mas ele é filho não sábio, porque é tempo [de nascer], mas não toma posição no local dos filhos” (Os 13,13). Os “cordões do parto” são as dores do parto e a não “tomada de posição” indica a falta de cooperação do bebê com a parteira e com a mãe.

5. Mishber só aparece nesses dois textos: Is 37,3 ( = 2Rs 19,3) e Os 13,13. O primeiro funciona como retrato do desespero: “Jerusalém está cercada, o que será de nossos filhos”. O segundo compara um “bebê insensato” – pouco disposto a colaborar com o trabalho da parteira – com Jerusalém, indiferente aos apelos de seu Deus (13,16).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A VOZ DE JEREMIAS

1. Alguns textos que compõem os livros proféticos são realmente difíceis de interpretar. Isso acontece porque nem sempre é possível identificar a voz de quem fala. Um oráculo pode começar com a fala divina e no meio do caminho alternar para outra voz (e outro tempo verbal). Quero tomar como exemplo um trecho do livro do profeta Jeremias (Jr 9,9-11).

2. Veja que em 9,9 a voz que fala é a de Yahweh: “Não deveria eu castigá-los por isso? ...contra uma nação como esta não deveria eu vingar-me?”. No verso seguinte a imagem evocada pelo texto é a de alguém que chora: “sobre as montanhas elevo gemidos e prantos”. Pergunta: quem chora é o próprio Yahweh ou o profeta que anuncia sua mensagem? Isso não fica claro.

3. No v. 11 Yahweh expõe nova sentença contra a capital de Judá: “Eu farei de Jerusalém um monte de pedras”. Temos assim o seguinte quadro: v. 9: Yahweh ameaça punir Jerusalém (futuro); v. 10: Alguém chora por uma cidade que aparentemente já está destruída (presente); v. 11: nova ameaça contra Jerusalém (futuro).

4. É possível que um editor tenha enxertado o v. 10 entre os vv. 9 e 11, visando dar mais dramaticidade ao texto. Neste caso o choro seria o do profeta. Também é possível que os três versos venham da mão de um mesmo autor. O choro do v. 10 seria expressão da tristeza divina por aquilo que a própria divindade fará em breve contra Jerusalém.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

ZADOQUITAS E AARONITAS

1. Lemos em 2Sm 8,18 que “os filhos de Davi eram sacerdotes”. Esta declaração [em tese] é problemática, porque os sacerdotes precisavam pertencer à linhagem de Aarão (Ex 28,1). Alguns tradutores, na maior cara de pau, traduzem assim: “Os filhos de Davi eram Chefes de Estado”. Mas o hebraico registra coheniym (כהנים), sacerdotes. Os filhos de Davi podiam ser sacerdotes? Como?

2. Ezequiel 48,11 traz à tona outra questão. De acordo como profeta Ezequiel, os sacerdotes precisavam ser “filhos de Zadoc” e não “filhos de Aarão”: “Darás aos sacerdotes levitas, aos da família de Zadoc, que se aproximam de mim para me servirem” (Ez 43,19). Trocando em miúdos, precisavam ser zadoquitas, não aaronitas. Zadoc, para quem não sabe, foi sacerdote sob o governo de Davi (2Sm 8,17).

3. O Deuteronômio deixa as coisas um pouco mais complicadas, uma vez que usa a expressão “sacerdotes levitas” (Dt 17,9). O texto parece sugerir que todos os levitas podiam ser sacerdotes e não apenas os “Filhos de Aarão”, um ramo restrito dos levitas. Eita, que a coisa está ficando complicada. Candidatos até aqui: [1]“filhos de Davi”, [2]“Filhos de Aarão”, [3]“filhos de Zadoc” e [4]“Filhos de Levi”.

4. Outras figuras que aparecem exercendo o papel de sacerdotes são Moisés (Sl 99,6), Jetro (Ex 18,12) e Melquisedec (Gn 14,18-20). Nestes casos é preciso dar um desconto, porque é possível argumentar (em perspectiva sincrônica) que todos exerceram a atividade antes da instituição do sacerdócio. Mas o que dizer do personagem misterioso mencionado no Sl 110,4: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”?

5. Quem é esse “tu”? Alguns acham que é Davi e que o texto procura dar legitimidade às atividades sacerdotais exercitas por Davi e seus “filhos”. Neste caso Davi seria sacerdote de uma linhagem especial, como Melquisedec. Outros acham que a ideia é dar legitimidade ao sacerdócio zadoquita, que também não era levita (alguns até sugerem que ele era um sacerdote jebuseu). Segura essa, varão!

6. A verdade é que o livro de Hebreus viu no Sl 110,4 uma abertura possível, capaz de legitimar a classificação de Jesus como sacerdote, mesmo sendo da tribo de Judá, portanto, não levita: “Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote para a eternidade, segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 6,20). O autor de Hebreus parece estar dando uma resposta a opositores que não viam sentido em tratar Jesus como sacerdote.

7. No ponto 4 ficou faltando outro personagem não levita que exerceu atividades como sacerdote: Samuel. Acontece, minha agente, que o moço era da tribo de Efraim, era efraimita... (cf. 1Sm 1,1). 


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O LIVRO DO LEVÍTICO E O NARIZ PROIBIDO



1. De acordo com algumas traduções do livro bíblico de Levítico, o texto de Lv 21,18 diz que nenhum homem que possua "nariz chato" (haram) poderá oferecer ofertas queimadas a Deus. Acontece que "haram" não significa "nariz chato" nem aqui nem na China. Vale destacar que a palavra "nariz" sequer existe no texto. "Haram" reaparece, por exemplo, em Js 11,21: "Josué os destruiu (haram), juntamente com suas cidades".

2. Tudo o que podemos saber é que o texto proíbe o acesso de pessoas "destruídas" (mutiladas?) a alguns locais considerados sagrados. Quando o texto hebraico foi traduzido para o grego, a palavra escolhida como equivalente a "haram" foi κολοβορριν, termo que significa, de acordo com alguns léxicos "nariz destruído/desfigurado".

3. É possível que um tradutor mal intencionado (sendo claro: racista) tenha buscado o significado de "haram" na versão grega do texto: "nariz desfigurado" e como tinha certa aversão por narizes que não se enquadravam no seu modelo ideal de nariz, achou por bem traduzir "haram" por "nariz chato". Traduzir textos antigos não é tarefa fácil, mas tem gente que força a barra. 



Jones F. Mendonça

domingo, 29 de setembro de 2024

SEXO E TROCADILHOS


1. De acordo com o capítulo 30 do Gênesis, Raquel e Lia deram filhos a Jacó por meio de duas concubinas, Bilhah e Zilpah. Quem lê a Bíblia em idioma diferente do hebraico não percebe que os nomes das crianças aparecem relacionados a experiências pessoais vivenciadas por Raquel e Lia. Preste bastante atenção.

2. Quando Bilhah (בלהה) concebe, diz-nos o texto (cf 30,6), Raquel celebra com alegria dizendo assim: “ele se chamará DAN porque Deus me fez DANaniy (justiça). No verso seguinte Bilhah concebe de novo e Raquel dá à criança um nome cuja grafia se assemelha à palavra “luta”. veja: “ele se chamará NAFTALI, pois as NAFTULey (lutas) de Deus lutei contra minha irmã”.

3. O texto passa em seguida a apresentar os nascimentos dos filhos de Zilpah, concubina de Lia. O mesmo padrão se repete. A mãe do menino dá à luz e Lia faz festa: “entrou GAD (sorte), por isso o chamou GAD” (Não escrevi errado, o texto diz “entrou” e não “estou”). Bem, Zilpah tem então um segundo filho e Lia mais uma vez nomeia a criança: “ele se chamará ASHER, pois ISHRuniy (feliz)...”.

4. Asher e Ishruniy podem parecer palavras bem diferentes, mas o hebraico não possui vogais. Ambas as palavras são grafadas com as consoantes alef (א) + shin (שׂ) + resh (ר). Assim, ao que parece a ideia era associar o nome da criança a uma palavra grafada com consoantes de mesma raiz e não necessariamente à uma palavra com mesma sonoridade fonética.

5. Em tempo: "entrou sorte" pode ter conotação sexual, porque o verbo "entrar" (בוא) aparece muitas vezes relacionado à entrada dos noivos na tenda para fazerem aquilo que os noivos fazem na noite de núpcias. Será que a ideia é dizer que a "entrada" foi afortunada? Não tenho certeza, mas é questão para se investigar.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 27 de agosto de 2024

RUAH, NESHAMAH, NÉFESH: CONSIDERAÇÕES SOBRE O AR EM MOVIMENTO


1. Há três palavras principais no hebraico relacionadas ao ar em movimento: ruah, neshamah e néfesh. Tais palavras não são sinônimas, mas podem ser utilizadas de forma intercambiável em alguns casos. Ruah, por exemplo, serve para indicar um vento forte, como aquele que abre o Mar dos Juncos: “E Yahweh, por um forte vento oriental que soprou toda aquela noite” (Ex 14,21). Mas ruah também serve para designar vento brando, como o “vento” que sai dos nossos narizes, o “vento de vida”, o fôlego (Gn 7,22). Em boa parte dos casos ruah é traduzida por “espírito” (cf. Jz 11,29), potência invisível que como o vento anima aquilo que toca.

2. Neshamah tem sentido mais restrito, substantivo feminino utilizado principalmente para indicar o ar que sai das narinas, o fôlego. Em Gn 2,7 Yahweh modela o homem do solo e sopra em suas narinas a “neshamah” de vida, ou seja, o “vento”, o “fôlego” de vida. Para indicar a morte de toda a população de uma cidade, exterminada pala espada, fazia-se alusão a abolição de todo o fôlego: “não restou nenhum fôlego” (Js 11,14), ou seja, nenhum ser com vida. Em Jó 4,9 – expostos em paralelismo semântico – ruah e nehamah aparecem como sinônimos: “com a neshamah de Deus perecem, com a ruah de sua ira se consomem”.

3. Néfesh indica, em sentido primário, a garganta. Assim, quando Yahweh sopra nas narinas do primeiro homem a “neshamah” de vida, o “fôlego” de vida, ele se torna uma “garganta” viva (Gn 2,7), ou seja, um ser que respira, que lamenta, que grita, que sente sede e fome e, claro, que também desobedece. Em muitas Bíblias néfesh é traduzido por “alma”. A tradução não está errada se considerarmos que “alma” indica aquilo que anima o corpo, que lhe dá vida. Néfesh não tem qualquer relação com a ideia grega de uma “alma imortal”, como antítese ao corpo finito, percebido como uma espécie de casulo ou prisão da alma (percepção adotada por Calvino).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

LUTERO, OS "FILHOS DE DEUS", OS INCUBUS E OS SUCUBUS


1. A narrativa bíblica presente no capítulo seis do Gênesis – a união dos “filhos de Deus” às “filhas dos homens” – recebeu ao longo da história três explicações básicas: 1) os “Filhos de Deus” são os descendentes de Adão pelo tronco de Seth (benditos); as “Filhas dos homens” são descendentes Adão pelo tronco de Caim (malditas); 2) Os “Filhos de Deus” são seres angelicais; as “filhas dos homens” são humanas; 3) Os “Filhos de Deus” são homens poderosos da antiguidade, precursores das uniões poligâmicas com as “filhas dos homens”, mulheres dotadas de grande beleza.

2. A proposta nº 1 aparece nas Preleções sobre o Gênesis, produzidas por Martinho Lutero entre 1535-1545 (Commentary on Genesis, Vol. 2: Luther on Sin and the Flood). O monge agostiniano entende que o texto aponta para duas violações: 1) Os descendentes de Adão gerados por Seth (“Filhos de Deus”) desejaram as descendentes de Adão geradas de Caim, as “cainitas” (“Filhas dos homens”); 2) O texto revela um ímpeto maligno: desejar tantas mulheres quantas pudessem tomar (poligamia). Lutero faz essa interpretação inspirado na opinião de Nicolau de Lyra, teólogo que viveu entre os séculos XIII e XIV (1270-1349).

3. O reformador rejeita a interpretação judaica que vê os “Filhos de Deus” (bney ha-elohim) como sendo seres angelicais expulsos da corte celeste e convertidos em “demônios”. Para o reformador, tal interpretação não passa de “balbucios judaicos”. A razão: o reformador acredita – reproduzindo crendices medievais muito populares – que demônios podem sim assumir forma humana e até mesmo seduzir e se relacionar sexualmente com homens e mulheres, mas nega que esse tipo de relação seja capaz de gerar filhos tal como indicado no capítulo seis do Gênesis: “quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos” (Gn 6,4).

4. Seguem trechos das Preleções sobre o Gênesis: “Mas quanto aos demônios lascivos e prostitutas (íncubos e súcubos), eu não nego — não, eu acredito! — que um demônio pode ser um lascivo ou uma prostituta, pois ouvi homens citarem suas próprias experiências. [...] Quando o diabo está na cama, um jovem pode pensar que tem uma garota com ele, e uma garota que tem um jovem com ela; mas que qualquer coisa possa nascer de tal concubinato, eu não acredito. Muitas feiticeiras foram, em um momento ou outro, submetidas à morte na fogueira por conta de suas relações com demônios”.

5. Assim, embora reconheça ser possível a relação sexual entre homens/mulheres e demônios masculinos/femininos (íncubos e súcubos), Lutero rejeita veementemente que o capítulo seis do Gênesis trate desse tipo de relação. Para ele, como já foi dito, o texto condena 1) a união entre os descendentes de Seth e de Caim; 2) as uniões poligâmicas. Problemas: 1) O Antigo Testamento jamais condena as uniões poligâmicas; 2) A expressão “bney ha-elohim”, traduzida por “filhos de Deus” sempre indica membros da corte celeste, como Jó 1,6: “No dia em que os Filhos de Deus (bney ha-elohim) vieram se apresentar a Yahweh…”.



Jones F. Mendonça