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sexta-feira, 6 de junho de 2025

COMO SATANÁS VIROU "LUCIFER" EM 5 PONTOS CURTOS

1. A palavra latina “lucifer” nada tem a ver com “diabo”, “satanás” ou “capiroto”. Ela significa simplesmente “ASTRO BRILHANTE”, como em Jó 11,17 na versão latina: “tua vida ressurgirá como o meio dia, a escuridão será como LUCIFER”, ou seja, como um “astro brilhante”, provável referência a Vênus, planeta que brilha no céu como uma estrela, e que se destaca por sua luz fulgurante no céu da manhã, daí o título “estrela da amanhã”. Vênus é o terceiro astro mais brilhante no céu, atrás da lua e do sol.

2. Na versão latina da Bíblia o termo “lúcifer” reaparece em Is 14,12: “como caíste do céu, ‘lucifer’, filho da manhã, como foste atirado à terra, vencedor das nações”. Neste texto, o rei da Babilônia (cf. 14,1) é comparado a um ASTRO BRILHANTE, que devido à sua arrogância “foi precipitado no Sheol”, o mundo dos mortos (cf. 14,9-11). O texto fala da queda de um rei, não de um anjo ou ser divino. Outro soberano “lançado por terra” é o rei de Edom (cf. Ob 1,2-4).

3. A palavra “lúcifer” reaparece uma última vez em 2 Pe 1,19: “...lucifer oriatur in cordibus vestris”, ou seja, “que o ASTRO BRILHANTE resplandeça em vossos corações”. Veja que “lúcifer”, ou melhor, o “astro brilhante”, neste caso, é uma referência a Jesus, associado à luz, ao brilho, ao resplendor. Deus também é associado à luz em Jo 1,5 (“Deus é luz...”) e em Tg 1,17 (“Pai das luzes”).

4. Mas de onde veio a ideia de que “Lúcifer”, com letra maiúscula, é o nome do “capiroto”, do “zarapelho”? Essa é fácil. Quando o Antigo Testamento foi traduzido para o latim, Jerônimo, o tradutor, escolheu “lucifer” como palavra correspondente a “astro brilhante” em Is 14,12. E como ele interpretou esse “astro brilhante” como sendo Satanás, a coisa pegou.

5. E foi assim que “Satanás” ganhou nome próprio: “Lucifer”. Um nome dado pelos homens, não pelos deuses.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

LUTERO, OS "FILHOS DE DEUS", OS INCUBUS E OS SUCUBUS


1. A narrativa bíblica presente no capítulo seis do Gênesis – a união dos “filhos de Deus” às “filhas dos homens” – recebeu ao longo da história três explicações básicas: 1) os “Filhos de Deus” são os descendentes de Adão pelo tronco de Seth (benditos); as “Filhas dos homens” são descendentes Adão pelo tronco de Caim (malditas); 2) Os “Filhos de Deus” são seres angelicais; as “filhas dos homens” são humanas; 3) Os “Filhos de Deus” são homens poderosos da antiguidade, precursores das uniões poligâmicas com as “filhas dos homens”, mulheres dotadas de grande beleza.

2. A proposta nº 1 aparece nas Preleções sobre o Gênesis, produzidas por Martinho Lutero entre 1535-1545 (Commentary on Genesis, Vol. 2: Luther on Sin and the Flood). O monge agostiniano entende que o texto aponta para duas violações: 1) Os descendentes de Adão gerados por Seth (“Filhos de Deus”) desejaram as descendentes de Adão geradas de Caim, as “cainitas” (“Filhas dos homens”); 2) O texto revela um ímpeto maligno: desejar tantas mulheres quantas pudessem tomar (poligamia). Lutero faz essa interpretação inspirado na opinião de Nicolau de Lyra, teólogo que viveu entre os séculos XIII e XIV (1270-1349).

3. O reformador rejeita a interpretação judaica que vê os “Filhos de Deus” (bney ha-elohim) como sendo seres angelicais expulsos da corte celeste e convertidos em “demônios”. Para o reformador, tal interpretação não passa de “balbucios judaicos”. A razão: o reformador acredita – reproduzindo crendices medievais muito populares – que demônios podem sim assumir forma humana e até mesmo seduzir e se relacionar sexualmente com homens e mulheres, mas nega que esse tipo de relação seja capaz de gerar filhos tal como indicado no capítulo seis do Gênesis: “quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos” (Gn 6,4).

4. Seguem trechos das Preleções sobre o Gênesis: “Mas quanto aos demônios lascivos e prostitutas (íncubos e súcubos), eu não nego — não, eu acredito! — que um demônio pode ser um lascivo ou uma prostituta, pois ouvi homens citarem suas próprias experiências. [...] Quando o diabo está na cama, um jovem pode pensar que tem uma garota com ele, e uma garota que tem um jovem com ela; mas que qualquer coisa possa nascer de tal concubinato, eu não acredito. Muitas feiticeiras foram, em um momento ou outro, submetidas à morte na fogueira por conta de suas relações com demônios”.

5. Assim, embora reconheça ser possível a relação sexual entre homens/mulheres e demônios masculinos/femininos (íncubos e súcubos), Lutero rejeita veementemente que o capítulo seis do Gênesis trate desse tipo de relação. Para ele, como já foi dito, o texto condena 1) a união entre os descendentes de Seth e de Caim; 2) as uniões poligâmicas. Problemas: 1) O Antigo Testamento jamais condena as uniões poligâmicas; 2) A expressão “bney ha-elohim”, traduzida por “filhos de Deus” sempre indica membros da corte celeste, como Jó 1,6: “No dia em que os Filhos de Deus (bney ha-elohim) vieram se apresentar a Yahweh…”.



Jones F. Mendonça

domingo, 19 de setembro de 2021

AS MUITAS FACES DA TENTAÇÃO

A cena da tentação de Jesus no deserto foi retratada de diversas formas. Em boa parte delas o capiroto aparece representado com aspecto animalesco. Mas nesta, produzida por Juan de Flandes (1500/1504), ele tem a aparência de um sacerdote franciscano. Repare que sua mão direita segura algumas contas de rosário. As únicas indicações de sua natureza maligna aparecem nos pés (de pato!) e nos chifres (ou talvez seja um disfarce, afinal os chifres também aparecem associados a Moisés).



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 23 de março de 2017

GUIA DE DEMONOLOGIA JUDAICA

Segue breve resumo de artigo publicado no Haaretz de Israel (Edição Premium, 21/03/17):

Tigelas desenterradas no Iraque revelam práticas judaicas criadas com o propósito de aprisionar demônios. Yad Yitzhak Ben Zvi, autor de um estudo sobre o assunto, explica que os judeus registravam na tigela uma imagem do demônio que desejam aprisionar, seu nome e inscrições como: “Você está banido e selado com sete selos e oito cordas”.

A representação feminina mais freqüente é a de Lilith, mostrada despida e com cabelo longo. Os judeus acreditavam que sua especialidade era a sedução e o assassinato de homens jovens e o estrangulamento de bebês no momento do nascimento. No setor masculino destacam-se Samael (Rei dos demônios) e Ashmedai, ambos representados com vestes persas. Muitos dos demônios aparecem atados com correntes, tal como nas representações assírias.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 4 de abril de 2016

EXORCISMO, ORIFÍCIOS E TREPANAÇÃO

Em seus Diálogos, o papa Gregório Magno (século VI) conta a história de uma freira que ficou possuída após comer uma alface em cujas folhas se escondia um demônio (Dial. 1.4.8).

Na Antiguidade (e atualmente entre os melanésios) alguns curandeiros praticavam a trepanação, abrindo orifícios na cabeça do paciente para que os demônios pudessem sair.

Nesta figura, do século XV, você vê São João Boaventura exorcizando uma mulher que expele um demônio pela boca (repare nos olhos “virados” da mulher).



Veja a imagem em seu contexto original na BibliotecaNacional da França (selecione a folha 84r no canto inferior direito).


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 13 de junho de 2011

ISAÍAS 14 E O MITO DE HEYLEL BEN SHAHAR

O livro de Isaías é um clássico da literatura profética. A partir de 14,4b lemos um belíssimo lamento contra o rei da Babilônia. Por culpa de Orígenes (185-254 d.C.)  o texto acabou se tornando uma descrição da queda de Satanás. Com Jerônimo (347-420 d.C.) o adversário ganhou um nome próprio: Lúcifer. 

Aqueles que se interessam pelo tema certamente vão gostar de baixar gratuitamente no site da Society of Biblical Literatute o seguinte livro (em inglês):

Shipp, R. Mark, Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b–21. Academia Biblica 11. Atlanta: Society of Biblical Literature: 2002, 105 pages, 60MB.

Uma breve descrição conteúdo do livro de acordo com o site da SBL (tradução do Numinosum):
Isaías 14:04 b-21 tem atormentado estudiosos durante muitos anos. Nem a sua forma nem seu conteúdo mitológico foram devidamente explorados ou explicados. Este estudo argumenta que a estrutura dessa passagem é a de um canto fúnebre real, conhecida a partir de textos de Ugarit e da Mesopotâmia, e que o poema inteiro deve ser entendido como "mitológico". A “estrela da manhã, filha da aurora” (Heylel ben Shahar), é uma estrela associada à realeza na Mesopotâmia, a estrela de Ishtar nos céus. Outras imagens mitológicas abundam na passagem, como os Rafaim, provavelmente reis mortos, e os motivos de subida e descida. Nesta paródia de uma triste canção, Isaías 14 usa a mitologia e ideologia do lamento real para zombar do rei da Babilônia.
Para baixar o livro gratuitamente (disponível só para alguns países), clique aqui

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ENCANTAMENTOS E EXORCISMOS JUDAICOS

Divulguei aqui no Numinosum a exposição “anjos e demônios: a magia judaica através dos séculos”, feita pelo Museu das Terras Bíblicas, em Jerusalém.  Interessei-me pelo assunto e fiz algumas pesquisas.

O Sefer Ha-Razim, o livro dos mistérios da magia judaica, explica como impedir que um espírito maligno mate os filhos que serão gerados no futuro:
“Se você quer afastar um espírito maléfico para que ele não mate seu filho, antes da gravidez escreva o nome destes anjos em uma lâmina de ouro e a coloque num tubo de prata para que ela o use. Na época do parto, pegue quatro lâminas, escreva os nomes dos anjos nelas e disponha-as nos quatro cantos da casa, e nenhum espírito entrará”[1].
O historiador judeu do primeiro século, Flávio Josefo, conta como um exorcista chamado Eleazar expulsa na frete do imperador Vespasiano os demônios que possuíam um homem:
“meteu no nariz do possesso um anel que levava dentro uma das raízes prescritas por Salomão. Logo que o homem respirou o perfume, expulsou o demônio pelo nariz. O homem, então, desmoronou e o exorcista adjurou o demônio para nunca mais voltar. Invocava para isso o nome de Salomão e recitava os encantamentos que ele prescrevera [2].”
Um exorcismo pré-cristão famoso aparece no livro deuterocanônico de Tobias.

Quer ler mais sobre exorcismos, demônios e judaísmo? Clique aqui e aqui.

Notas:
[1] CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, cristianismo e helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, p. 133.
[2] QUEVEDO, Oscar G. Antes que os demônios voltem. São Paulo: Loyola, 2005, p. 467.

ANJOS E DEMÔNIOS: A MAGIA JUDAICA ATRAVÉS DOS SÉCULOS


Tigela de encantamento adjurando o anjo Sarfiel para que dois demônios sejam exorcizados da casa de Kafnay filho de Imma e sua esposa, filha Immay de Anay.
O Museu de Terras da Bíblia, em Jerusalém, está fazendo uma exposição de amuletos mágicos utilizados pelo judaísmo ao longo dos séculos. A exposição, iniciada em 05-05-2010, examina as origens e o desenvolvimento da magia no judaísmo desde a época do Primeiro Templo até os dias atuais, centrando-se em crenças, costumes e, sobretudo, na utilização prática de objetos mágicos na vida judaica diária.

O site explica que apesar da magia negra ser proibida no judaísmo (cf. Ex 22,17; Dt 18,10-11), a magia branca, utilizada para combater os “poderes das trevas”, era amplamente utilizada entre os judeus, como mostram os escritos rabínicos preservados. Mas quem observar a exposição vai notar objetos cujo uso estava associado à magia negra, como, por exemplo, uma espécie de boneca de vodu utilizada em práticas de magia erótica.

Para visitar a exposição on-line e conhecer alguns dos curiosos amuletos mágicos utilizados pelos judeus, clique aqui (em inglês) ou aqui (em português traduzido pelo Google).

Para fazer um tour virtual no museu, clique aqui.

Um vídeo apresentando a exposição foi divulgado pelo programa Bom dia Brasil em 29-07-10. 

quinta-feira, 27 de maio de 2010

UMA BREVE HISTÓRIA DO EXORCISMO: DO MEDIEVAL AO NEOPENTECOSTAL

Por Jones Mendonça

Quem observa as igrejas neopentecostais com sua ênfase no exorcismo muitas vezes não percebe que no passado eram os católicos que tinham a mania de ver demônio em tudo. Em 1603, Samuel Harsnett, bispo de Londres (e mais tarde bispo de York), publicou um ataque aos excessos dos exorcistas católicos, intitulado, A declaration of egregious popish impostures (Uma declaração de notórias imposturas papistas)[1]. O Vaticano parece ter ouvido as críticas de Harsnett. Em 1614, visando regular e inibir os excessos, o Papa Paulo V mandou publicar o Ritual romano. Vejamos o que ele diz a respeito da postura dos sacerdotes quando diante de um suposto caso de possessão:
O Sacerdote não deve acreditar facilmente que uma pessoa esteja possuída pelo demônio. Ele deve conhecer os sinais pelos quais uma pessoa possuída pode ser diagnosticada, diferentemente daqueles que sofrem de melancolia ou alguma doença [2].
 Dentre esses sinais estão o falar em idiomas desconhecidos,  revelar coisas ocultas e demonstrar força acima do normal. Ainda que tais “sintomas” ainda pareçam bastante inocentes, já representaram um grande avanço se comparados aos métodos descritos no Malleus Maleficarum, um manual medieval que ensinava como identificar uma bruxa. Com a entrada em circulação do Ritual Romano a descrença no diabo foi crescendo cada vez mais.

A partir da Reforma o diabo passou a ter pouco espaço no imaginário cristão.  Calvino, nas suas Institutas, declara crer na existência pessoal de anjos e demônios, mas se refere ao assunto como “coisas supérfluas” e de “frívolo saber”[3]. No século XVIII o ceticismo em relação à crença no diabo chegou ao seu auge no pensamento do teólogo reformista Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Em seu livro “A fé cristã apresentada de forma sistemática segundo as doutrinas fundamentais da Igreja Evangélica” ele duvida abertamente da existência do diabo:
 “A idéia do diabo tal como se desenvolveu entre nós é tão instável que não podemos esperar que alguém se convença de sua verdade. Além disso, nossa Igreja nunca fez uso doutrinário da idéia”[4].
Mas a crença no "chifrudo" parece jamais ter sido um consenso até mesmo entre os protestantes. Ficou famoso o caso das “bruxas de Salém” (Massachussetts, 1692). Após uma escrava negra ter confessado induzir moças da cidade a participar de uma dança noturna com práticas de magia, teve início uma verdadeira histeria coletiva que levou à morte várias de pessoas. É preciso perguntar se quem servia ao diabo era a negra “pagã” ou os “piedosos” puritanos.

Os movimentos avivalistas e mais tarde o chamado pentecostalismo também valorizaram a atuação do diabo. Atualmente há uma verdadeira cruzada contra Satã nas igrejas neopentecostais. Dia desses alguém me dizia que a Igreja Católica estava copiando os “cultos de libertação” dos neopentecostais.  Voltemos ao início do texto...

Referências bibliográficas:
MARQUES, Renato; KELLY, Henry Ansgar. Satã, uma biografia. Tradução de Renato Rezende. São Paulo: Globo, 2008, pp. 342, 343.
VV. AA. O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
CALVINO, João. Institutas – Edição clássica (latim), Livro I, cap. XIV, 2007.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Jacobus. Malleus Maleficarum: El martillo de los brujos. Barcelona: Círculo Latino, 2005.

Notas:
[1] MARQUES, Renato; KELLY, Henry Ansgar. Satã, uma biografia, p.342.
[2] Id. ibid., pp. 342, 343.
[3] CALVINO, João. Institutas – Edição clássica (latim), Livro I, cap. XIV, 2007, pp. 168 e 177.
[4] MACINTOSH, H. R.; STEWART, J. S. Der christliche Glaube nach den Grundsätzen der evangelischen Kirche im Zusammenhange dargestellt Edimburgo: Clark, 1928, p. 161 apud MARQUES, Renato; KELLY, Henry Ansgar. Satã, uma biografia. 2008, p. 347.

Imagem:
Raffaello Sanzio
São Miguel e o Diabo
1518
Óleo
transferido a partir de madeira para tela, 268 X 160 cm
Museu do Louvre, Paris

domingo, 1 de novembro de 2009

A POSSESSÃO DA MENTE - LIVRO

Assim o psiquiatra Willian Sargant inicia o seu livro "A possessão da mente": "Fui criado em uma numerosa família metodista da classe média...". O metodismo deixou marcas profundas no autor. Logo no início da obra, Wesley, fundador do metodismo, passa pelo crivo do olhar cético do psiquiatra inglês. Sargant parece um tanto quanto racionalista demais em relação aos fenômenos religiosos, mas suas observações a respeito dos casos de possessão não podem ser ignoradas.

Com uma linguagem simples, ele explica os resultados de experimentos ligados ao comportamento humano e conta suas aventuras pelo mundo enquanto observava e fotografava cultos dos mais diversos tipos. 

A primeira parte do livro o autor aborda temas como comportamento condicionado, técnicas para o aumento da sugestionabilidade, estados de possessão psicológica, possessão mística, possessão e sexo e finalmente sobre o uso de drogas em rituais de possessão.

A segunda parte, a mais interessante (e arrepiante), é composta por relatos de suas experiências ao lado de sua esposa com os mais diversos cultos, desde reuniões avivalistas nos Estados Unidos até os terreiros de candomblé na Bahia. Veja abaixo uma lista completa:

1. Experiências na África;
2. Tribos do Sudão;
3. Exorcizando espíritos;
4. Experiências na Zâmbia;
5. Possessão Zar;
6. Exorcizando demônios;
7. Nigéria e Daomé;
8. Macumba no Brasil;
9. Experiências em Trinidad;
10. Experiências na Jamaica e em Barbados;
11. Vodu no haiti;
12. Revivals nos Estados Unidos.

Como se vê, o cara rodou o mundo em busca de fenômenos de possessão. Um dos relatos mais curiosos de Sargant ocorreu em uma igreja revivalista na Carolina do Norte, quando visitou um culto onde serpentes venenosas eram manipuladas pelos fiéis. Sons de tambores, gente gritando, serpentes passando de mão em mão, enfim, o psiquiatra confessa:
"temi ser envolvido repentinamente pelo ritmo e entusiasmo, terminando por entrar em estado de transe e êxtase". Ele continua: "Minha esposa observou-me que eu parecia estar tão hipnotizado e em transe quanto os manuseadores de cobras que eu fotografava"[1]. 
Se você já caiu após ser atingido por um peletó "ungido", não se abata, até os céticos acabam sendo sugestionados pelo ambiente. Aliás, Sargant faz uma advertência aos mais céticos: quanto maior a resistência, maior a intensidade da "possessão".

Vá de retro!

Nota:
[1] SARGANT, Willian. A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé. Rio de Janeiro: Imago, 1973, pp. 228, 229.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ESPÍRITOS MALIGNOS, ANJOS CAÍDOS, LARVAS E ESPÍRITOS IMUNDOS: UMA BREVE HISTÓRIA DO DEMÔNIO.

Por Jones Mendonça

I - Introdução
A figura do demônio despertou ao longo da história ora um sentimento de medo, ora de fascinação. Na idade média causou pânico na população, que via em fenômenos triviais a atuação desses seres[1]. Magos modernos tais como Aleister Crowley e Dion Fortune ensinavam ser possível controlar os demônios caso se conseguisse o conhecimento e a conversação do anjo guardião, “a capa mais profunda do subconsciente, o ego definitivo, o mais autêntico ‘eu’”[2]. Para os ocultistas, anjos e demônios não têm existência objetiva, mas são realidades psíquicas.

A figura do demônio surge em várias culturas, podendo ser chamados, dentre outros nomes, de galla, na religião sumeriana; gênios, na mitologia árabe; larvas, na crença popular latina e demônios na tradição cristã. No Antigo testamento surgem inicialmente como serviçais de Yahweh (p. ex. 1Sm 16,14 e 1Sm 19,9). Mais tarde, após o exílio babilônico, os judeus interpretaram o demônio como sendo um opositor de Yahweh (compare 2Sm 24,1 com 1Cr 21,1). No Novo Testamento são inúmeras as passagens onde encontramos Jesus exorcizando demônios. Eles podiam causar doenças físicas (Mc 9,25) e oprimir mentalmente as pessoas (Mt 17,15), pondo-as à margem da sociedade. Na tradição cristã os demônios foram interpretados como sendo anjos que se rebelaram contra Deus juntamente com Satã, o príncipe dos anjos rebeldes (Mt 12,24).

II. O demônio no Antigo Testamento
Na literatura vétero-testamentária a expressão mais comum para designar o demônio é “espírito maligno” (ruah rah). O livro de Samuel enfatiza que esse espírito era da parte de Yahweh (1Sm 16,14), ou Elohim, (16,15). Foi após ser possuído por este mesmo espírito que Saul começou a profetizar (18,10). Fica evidente nesses textos que tal espírito obedecia às ordens de Yahweh e não uma entidade que se opunha a Ele. O primeiro livro dos Reis nos dá um outro exemplo. Para induzir Acabe a partir para uma batalha em Ramote-Gileade, Yahweh aceitou os serviços de um espírito mentiroso (ruah sheqer) que se apresentou diante dEle na corte celeste (1Rs 22,21-22).

III. O demônio na literatura apócrifa judaica
Na literatura apócrifa judaica são freqüentes as citações aos chamados “espíritos malignos”. O Livro de Tobias menciona a existência de um demônio chamado Asmodeu (Tb 3,8), responsável pela morte de sete homens que haviam sido dados em casamento a uma mulher chamada Sara. O Livro de Enoch fala de duzentos anjos que se rebelaram contra Deus, relacionando-se sexualmente com as mulheres humanas:
“A Miguel, igualmente disse o Senhor: Vai e põe a ferros Samyaza, e os seus sequazes, que se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas”[3].
Tal relacionamento teria produzido gigantes com 3000 côvados (cerca de 1.500m!) insaciáveis por comida, que após acabarem com todas as provisões dos homens, passaram a buscar nos seres humanos sua fonte de alimento[4]. Além de responsáveis pelo surgimento dos gigantes, os anjos rebeldes teriam ensinado os homens a produzir armas de guerra, a consultar os astros e todo o tipo de transgressão.

IV. O demônio na mentalidade greco-romana
No mundo grego-romano a idéia que se tinha dos demônios era bem diferente. Eles eram as “almas humanas divinizadas pela morte[5], nos diz Fustel de Coulanges. Os latinos davam outros nomes às almas humanas desencarnadas, chamavam-nas manes, lares, larvas ou gênios. Se o mane era bom chamavam-no lar ou gênio; se era mau, era chamado de larva. Cícero afirmava que o termo latino lares correspondia ao termo grego demônio: “Àqueles que os gregos chamam demônios, damos-lhes o nome de lares[6]. Concluímos assim que na mentalidade greco-romana os demônios eram almas de pessoas mortas que vagavam pela terra, podendo ser até mesmo benéficas ao ser humano.

Mas como uma alma se tornava má na mentalidade greco-romana? Fustel de Coulanges nos responde mais uma vez:
“A alma que não possuísse sua sepultura, não tinha morada, e permanecia errante. Em vão aspiraria ao repouso que amava, depois das agitações e do trabalho desta vida; permanecia condenada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem jamais se deter, sem jamais receber as oferendas e os alimentos de que tanto necessitava” [7].
A crença em aparições de almas errantes era tão presente na mentalidade do povo que até mesmo os discípulos de Jesus pensaram ser ele um fantasma (φαντασμα) enquanto caminhava sobre as águas do Mar da Galiléia (Mt 14,26). Não havia na mentalidade primitiva a idéia de um outro mundo, onde as almas descansariam ou pagariam pelos seus pecados. O homem “uma vez sepultado, nada tinha a esperar, nem recompensas, nem suplícios[8]. A pessoa morta continuava sua existência junto aos seus parentes, no túmulo, sendo alimentada em rituais que visavam lhe proporcionar descanso e paz. A crença no Tártaro (lugar de condenação) e nos Campos Elíseos (lugar de descanso e paz) só foi incutida mais tarde[9]. No filme “O gladiador” (direção de Ridley Scott, 2000) o personagem principal esperava reencontrar sua família nos Campos Elíseos após sua morte.

V. O demônio na literatura neo-testamentária
O termo daimónion (δαιμόνιον), traduzido por demônio ou simplesmente por divindade (At 17,18), aparece quarenta e seis vezes no Novo Testamento. Apenas seis ocorrências encontram-se fora dos evangelhos. A variante daimon (δαίμων), também traduzida por demônio, surge cinco vezes, duas no Apocalipse e uma em cada um dos sinóticos. Outras duas variantes também ocorrem: daimoniódes (δαιμονιώδης), que a Bíblia de Jerusalém traduz por demoníaco (única ocorrência em Tg 3,15) e daimonízomai (δαιμονίζομαι), referindo-se a uma pessoa influenciada ou atormentada por um demônio (p. ex. Mt 4,24). Apesar do termo demônio ser identificado com o “espírito imundo” (πνευμα ακαθαρτον) em Mc 7,25-26, isso não pode ser feito tão facilmente em relação aos anjos caídos (Ap 12,7-9). As epístolas de Judas e Pedro falam a respeito de anjos que que “deixaram sua própria habitação” (Jd 1,6) e que foram lançados no inferno (2 Pe 2,4), não há uma ligação clara entre eles e os espíritos imundos que possuiam pessoas.

VI. Conclusão
Mas afinal, tais seres maléficos eram reais ou mero produto da mente humana? O psiquiatra metodista Willian Sargant, após viajar por todo o mundo estudando casos de possessão conclui:
“Penso que devo terminar talvez estes longos anos de pesquisa com a conclusão de que não existem deuses, mas apenas impressões de deuses criadas na mente do homem, tão variados são os deuses e as crenças que passaram a existir com a ação da emotividade, da sugestionabilidade aumentada e das fases anormais da atividade cerebral”[10].
Teólogos mais conservadores como Wayne Grudem entendiam que “em algum momento entre Gênesis 1:31 e Gênesis 3:1, houve uma rebelião no mundo angélico que levou muitos anjos a ficarem contra Deus e converterem-se em malignos[11].

Rudolf Bultmann propôs a desmitificação (ou desmitologização ou desmitização) do Novo Testamento. Com isso ele queria dizer que apenas a essência da mensagem cristã deveria ser preservada, descartando-se tudo aquilo que fosse considerado inaceitável diante das descobertas científicas modernas. Aplicando o método de Bultmann, deveríamos abrir mão de crenças primitivas em anjos ou demônios:
Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo [...] a idéia de que os homens podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus espíritos”[12].
Carl Jung foi um dos que criticou essa forma de encarar o sobrenatural presente na religião: “A tentativa de desmitificação de Bultmann representa uma conseqüência do racionalismo protestante e leva a um contínuo empobrecimento da simbologia[13]. Numa linha semelhante parece seguir Paul Tillich. Apesar de descartar a visão tradicional que considera os demônios anjos caídos, ele reconhece o poder desagregador do demoníaco: “a psicologia secular do inconsciente redescobriu a realidade do demoníaco em cada pessoa[14].

Fruto de uma alteração da atividade cerebral, anjos caídos, meros seres mitológicos ou realidades psíquicas autônomas capazes de provocar sérios males ao homem? Seja qual for sua origem, os demônios atravessam os séculos causando distúrbios individuais ou coletivos[15]. Se o nosso inconsciente é realmente autônomo, como sustentava Jung[16], poderíamos dizer que os demônios são mais reais do que imagina uma mente aprisionada nos esteios da racionalidade. A linha que separa o real do imaginário é tênue. Negar a existência do demônio (ou demoníaco, como gostava Paul Tillich) seria como negar os efeitos de um câncer “imaginário” que mata aos poucos um pobre moribundo.

Bibliografia:
BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003.
BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia. São Paulo. Novo Século, 2003.
COULANGES, Fustel. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Jonas Camargo Leite. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich; BIETENHARD, Hans. Diccionario teologico del Nuevo Testamento - Vol II. Salamanca: Sígueme, 1990.
GRUDEM, Wayne. Teología Sistemática. Traduccíon de Miguel Mesías, José Luis Martinez, Omar Diaz de Arce. Miami, FL: Editorial Vida, 2007.
HARK, Helmut. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais. Tradução de Maurício Cardoso. São Paulo: Loyola, 2000.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Tradução de Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
KING, Francis. Magia. Madrid: Ediciones del Prado, 1996, p.12 (Coleção Mitos, Deuses e Mistérios).
KIRST, N.; KILPP, N.; SCHWANTES, M.; RAYMANN, A.; ZIMMER, R. Dicionário hebraico-português e aramaico-português. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 2007.
KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia, o berço da civilização. Tradução de Genolino Amado. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972.
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TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

Notas:



[1] Um belo exemplo do quão imaginativa foi a mente medieval em relação à atuação dos demônios pode ser encontrado na obra Malleus Maleficarum, escrita por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, publicada pela primeira vez em 1487. O documento é uma espécie de manual para identificar bruxas. O livro foi publicado em língua portuguesa pela editora Rosa dos Tempos.

[2] KING, Francis. Magia, 1996, p.12.
[3] Enoch 10,6
[4] Enoch 7,2
[5] COULANGES, Fustel. A cidade Antiga, 1996, p. 17
[6] Cícero, Timeu, II, in COULANGES, Fustel. A cidade Antiga, 1996, p. 17
[7] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, 1996, p.12.
[8] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, p. 13.
[9] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, p. 13.
[10] SARGANT, Willian. A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé, 1973, p.241.
[11] Tradução livre do autor. No original “en algún momento entre los sucesos de Genesis 1:31 y Genesis 3:1, tuvo que haber una rebelion en el mundo angelical que llevo a muchos angeles a ponerse en contra de Dios y convertirse en malignos”. GRUDEM, Wayne. Teología Sistemática, 2007, p. 430.
[12] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia, 2003, pp. 13, 14.
[13] Briefe II, p. 211 in HARK, Helmut. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais, 2000, p. 100.
[14] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, 2004.
[15] Ficou famoso o caso da possessão coletiva das freiras ursulinas de Loudun (1632), que faziam caretas e balbuciavam palavras ininteligíveis às vistas de turistas curiosos. Inspirado por este caso, o escritor e intelectual inglês Aldous Huxley escreveu sua obra: “Os demônios de Loudun”.
[16] JUNG, Carl G. Psicologia e religião. 1965, pp. 10-41.


Crédito das imagens:
Figura 1:
Aleister Crowley (1875-1947), com suas vestimentas de mago, antes de 1914.

Figura 2:
MEMLING, Hans
Inferno
c. 1485
Óleo sobre madeira, 22 x 14 cm
Musée des Beaux-Arts, em Estrasburgo