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terça-feira, 14 de junho de 2022

JUNG, JÓ E O APOCALIPSE DE JOÃO

1. Tenho na minha estante um livreto escrito por Carl Jung – famoso discípulo de Freud – sobre o livro bíblico de Jó. Ganhei de presente de uma pessoa desconhecida (um tipo de experiência que Jung adorava). O trabalho recebeu o título de “Resposta a Jó” e foi publicado no Brasil pela Editora Vozes. Já nas primeiras páginas Jung explica que não pretende fazer uma exegese fria e pormenorizada do livro de Jó, mas expressar “uma reação subjetiva” ao conteúdo da obra.

2. Embora considere útil a leitura de “Resposta a Jó” para quem lida com a Bíblia de maneira acadêmica, acho que em alguns momentos Jung faz interpretações muito equivocadas. Expus uma crítica ao livro a um grupo de junguianos e recebi um tratamento bastante hostil. Há fanáticos em todo o canto. Bem, mas com um pouco de paciência em meio a tantas divagações, cheguei ao capítulo XIII, parte do livro que trata sobre a representação da “imagem de Deus” no Apocalipse.

3. Esta parte da obra é por demais interessante. Isso porque Jung domina muito bem o contexto religioso do período no qual foi escrito o Apocalipse e também porque é um leitor atento, perspicaz. Ele chama a atenção, por exemplo, para a releitura que o Apocalipse faz do trono divino descrito em Ezequiel, que agora aparece adornado apenas com “matérias que pertencem à natureza inorgânica”. O trono é assustador como em Ezequiel, mas muito mais estranho e frio. Por que?

4. Jung também dá destaque ao contraste tão presente no livro entre o “Cristo manso cordeiro que se deixa levar ao matadouro” e o “Cristo belicoso e iracundo”, “Filho da vingança”, “cujo furor pode agora desencadear-se livremente”. Ele recorre a conceitos como o da “sombra”, do “arquétipo” e do “numinoso” para expor ao leitor uma interpretação psicológica do autor do Apocalipse. Antecipo que não faz um julgamento bom. Fala, por exemplo, em "sentimentos negativos longamente represados, que observamos com frequência naqueles que anseiam por ser perfeitos".


Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

CORTESIA E SUBMISSÃO

Carl Jung, em “psicologia e religião” (Zahar, 1965, p. 22) sobre o real sentido por trás das “formas refinadas de cortesia”: 
“É uma falta de delicadeza conservar a mão esquerda no bolso ou atrás das costas, quando cumprimentamos alguém. Quando se pretende ser particularmente atencioso, cumprimenta-se a pessoa com ambas as mãos. Diante de alguém revestido de grande autoridade inclinamos a cabeça descoberta, ou seja, oferecemos a cabeça desprotegida ao poderoso...”.

Formas de cumprimento no Antigo Egito

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

JUNG VERSUS FREUD EM DOIS PONTOS

No imaginário popular, as diferenças metodológicas entre Freud e Jung geralmente são vistas pelo prisma da religião: Freud – visão negativa; Jung – visão positiva. Mas é muito mais que isso. No que diz respeito aos sonhos, por exemplo, há diferenças significativas. Acompanhe:

1. Embora não conhecesse o alfabeto cirílico, um homem começou a divagar enquanto observava anúncios em estações de trem da Rússia. A experiência trouxe-lhe à mente antigas lembranças, incluindo assuntos bem incômodos há muito tempo sepultados na memória. Após ouvir essa experiência relatada por seu paciente, Jung começou a perceber que os complexos podem ser descobertos não apenas pelos sonhos, mas também, por exemplo, a partir de meditações sobre uma bola de cristal, moinhos de orações, um quadro moderno ou até mesmo de uma conversa ocasional a respeito uma banalidade qualquer. 

2. Freud buscava os temas emocionais reprimidos (complexos) nos sonhos tal como na experiência descrita acima. Ele não via o sonho como tendo uma mensagem específica, mas apenas como uma espécie de “alfabeto cirílico” capaz de despertar memórias reprimidas. Jung passou a discordar desse ponto. Ele achava que os sonhos têm uma linguagem própria e que a livre associação de Freud por vezes é ineficiente para tingir os complexos. Preferiu concentrar-se nas associações com o próprio sonho, convencido de que ele expressa o que de específico o inconsciente está tentando dizer. A partir dessa descoberta Jung foi abandonando a livre associação de Freud até concluir: “só o material que é parte clara e visível de um sonho pode ser utilizado para a sua in­terpretação”.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 12 de maio de 2014

PSICOLOGIA DE BOTECO

O sujeito é comunista: tem inveja dos ricos. O sujeito é capitalista: tem ódio dos pobres. O sujeito vive sorrindo: esconde uma tristeza profunda. O sujeito vive triste: tem medo de ser feliz. O sujeito rejeita o sistema de cotas: é racista. O sujeito apoia o sistema de cotas: é petralha. O sujeito faz academia: compensa sua baixa auto-estima fortalecendo o corpo. O sujeito troca a malhação pelos livros: compensa sua baixa auto-estima fortalecendo a mente. O sujeito gosta de carro grande: tem pênis pequeno. O sujeito gosta de carro pequeno: esconde um ego grande. O sujeito é religioso: é neurótico. O sujeito é ateu: alimenta um desejo de negação. O sujeito é homossexual: foi violentado na infância. O sujeito é heterossexual: no fundo é gay.

A psicologia barata transforma todos em loucos, como no famoso conto de Machado de Assis...


Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de setembro de 2013

OS ÓCULOS DE ZILDA

Zilda passou por um trauma na infância. Não suporta multidão. Mecanismos internos de sua psique encontraram uma saída: fazem com que Zilda acredite não haver muitas pessoas em determinados ambientes quando na verdade há. Tais mecanismos são como óculos especiais. Seus olhos lhe dizem: “há um monte de pessoas aqui!”. Suas lentes mágicas fazem a “correção”: “ambiente limpo, está tudo bem”.

Óculos mentirosos. 

O nome disso? Medo do real.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O PASTOR, A SERPENTE E O PSIQUIATRA

BALDUNG GRIEN, Hans
Eva, a serpente e a morte
1510-12
Em 1948 o psiquiatra Willian Sargant foi convidado a passar um ano como professor visitante de psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade Duke, na Carolina do Norte, localizada no conhecido “Cinturão Bíblico”. Muitíssimo interessado nos chamados “cultos de possessão”, Sargant ficou bastante entusiasmado ao ler nos jornais locais relatos de pessoas manipulando cobras venenosas em cultos revivalistas. Após fazer contato com um pastor da região, o psiquiatra partiu para a igreja com sua esposa, sua máquina fotográfica e seu gravador. Suas experiências e impressões foram registradas no capítulo 20, “Revivals nos EUA”, do livro “A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé” (Imago, 243 páginas.). Eis um pequeno trecho (p. 224):
O tabernáculo Zion em Durham era um salão pequeno. O pregador ocupava um espaço quadrado diante de uma plataforma para onde os participantes exaltados afluíam no decorrer da reunião. Entre eles e a plataforma permanecia um coro, cantando e batendo palmas ritmicamente. O pastor Bunn e seus crentes temiam manusear essas cobras venenosas antes de notarem certos sinais que constituíam a prova de que o Espírito Santo descera na reunião e possuíra a congregação, e assim protegendo-os do mal. Os sinais eram dados por algumas das pessoas presentes apresentando os assim chamados “exercícios do Espírito”. Na realidade esses exercícios eram agitações e tremores histéricos do corpo e dos membros,ocorrendo habitualmente pouco depois do início da música do harmônico e do acordeão, e só então é que não havia perigo em abrir a caixa, tirar dali as cobras e passá-las de mão em mão. Assim que as cobras surgiam a excitação do grupo aumentava enormemente, e de maneira óbvia o pastor conseguia controlar a excitação reduzindo ou acelerando o compasso das palmas. Se desejava pregar, fazia então com que a congregação passasse temporariamente por um silêncio respeitoso.
Nas demais páginas, Sargant estabelece ligação entre o manuseio de serpentes, sexo, paralelos do fenômeno com cultos africanos, conversão religiosa, suicídio, loucura, hipnose, transe, êxtase e possessão. Apesar do seu ceticismo, o psiquiatra confessa: “minha esposa observou-me que eu parecia estar tão hipnotizado e em transe quanto os manuseadores de cobras que eu fotografava”. 

A notícia, veiculada pela mídia, da morte do pastor pentecostal Mark Wolford, no dia 27/05/12, após manusear uma cascavel durante um culto (inspirando-se em Mc 16,18), é apenas um dentre muitos casos.  E pensar que tudo começou com Eva, a primeira que ousou desafiar o bicho mais astuto da terra!


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A QUATERNIDADE EM PAUL TILLICH E CARL JUNG

O despir-se de Cristo (detalhe) - 1501
Francesco di Giorgio Martini
Dia desses numa conversa com um aluno, o Eduardo, surgiu o tema da ampliação da trindade pela incorporação de Maria. O fenômeno, vivenciado na prática por inúmeros católicos ao redor do mundo, tem recebido apoio de muitos padres (sem falar do apoio popular) para que ganhe o estatus de dogma. Eduardo estava escandalizado. Expliquei-lhe que a quaternidade é um tema caro a Carl Jung. O psicólogo suíço percebeu que a tetractys surge espontaneamente nos sonhos de seus pacientes como expressão do divino (entenda-se por "divino", uma imagem arquetípica). 

Jung chega a defender que a quaternidade como símbolo da divindade remonta à era pré-histórica, como as "rodas solares paleolíticas (?) da Rodésia". Resumindo: o dogma diz "três". O inconsciente insiste: "quatro". Resíduos arcaicos dos nossos ancestrais. 

Outro que discute a quaternidade é Paul Tillich. Pedi para que o Eduardo desse um pulinho na biblioteca e consultasse a teologia sistemática do teólogo alemão. Na letra "C" do capítulo 4 da parte IV vem o título: "reabrindo o problema trinitário". Eis o que ele diz:
Referências ao poder mágico do número três não são suficientes, pois outros números, por exemplo, o número quatro, ultrapassam o três na escala mágica [...]. O poder simbólico da imagem da virgem Maria desde o século 5 até os nossos dias impõe uma pergunta ao protestantismo, que afastou radicalmente este símbolo [a quaternidade] na luta da Reforma contra todos os mediadores humanos entre Deus e o ser humano. Neste expurgo, praticamente eliminou-se o elemento feminino na expressão simbólica de nossa preocupação última. O espírito do judaísmo, com seu simbolismo exclusivamente masculino, prevaleceu na Reforma. Sem dúvida, este foi um dos motivos para o grande sucesso da Contra-Reforma frente à originalmente vitoriosa Reforma. No próprio protestantismo, isto fez com que surgissem, no pietismo, imagens de Jesus bastante efeminadas; este fato também motivou muitas conversões às igreja grega e romana, e igualmente explica a atração do misticismo oriental sobre muitos humanistas protestantes. 
A trindade, a quaternidade e tantos outros símbolos emergem do inconsciente de forma involuntária. Muitos deles se tornam dogma não pela arbitrariedade de uma autoridade eclesiástica, mas pelo clamor dos fiéis. Nas palavras de Jung: "essa insistência, no fundo, é a ânsia do arquétipo em se tornar concreto". Como no catolicismo dogmas são irrevogáveis (cf. DS 2145), Maria permanecerá como co-redentora, num trono que apenas tangencia o círculo da trindade. Entre os protestantes a quaternidade buscará novas expressões. Será uma aparição velada, travestida, mas ela há de ressurgir. 

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TRANSE E POSSESSÃO

 "O exorcista", 1973.
Um tema que desperta anos meu interesse há alguns anos é o fenômeno da possessão. Entenda-se por possessão um estado em que a individualidade de uma pessoa é temporariamente substituída por outra. Se essa nova individualidade é assumida por um demônio, anjo, espírito desencarnado, zars, pepos ou o que quer que seja, pouco importa. O fato é que não podemos classificar todos os casos de possessão como fingimento. Certa vez tive o desprazer de me deparar com um rapaz em "estado de possessão" enquanto participava de uma ação social numa rodoviária. O rapaz, com os olhos fixos nos meus, bebia sucessivamente os inúmeros copos de refrigerante que eu lhe servia. Ao final de cada golada ele dizia: mais! O refrigerante acabou e ele começou a dizer coisas sem sentido. Em meio a essas frases aparentemente desconexas iam saindo revelações sobre a minha vida pessoal. Um experiência perturbadora. 

A busca por uma explicação para os fenômenos de possessão foi empreendida por estudiosos proeminentes tais como Freud, Carl Jung (psicanalistas), Pierre Verger (antropólogo), William James (filósofo) e Aldous Huxley (escritor).   Um livro particularmente interessante sobre o assunto foi escrito pelo psiquiatra inglês William Sargant. Ele viajou pelo mundo ao lado de sua esposa registrando experiências de possessão com sua câmera e seu gravador. O livro contém algumas fotos e muitos relatos impressionantes. O foco do seu trabalho é o ambiente altamente sugestionável produzidos por alguns cultos religiosos (vodu, avivalistas cristãos, umbanda, etc.). 

Em diversas ocasiões Sargant confessa o quão envolvente pode ser um culto religioso:
"Pessoalmente sempre me mantive vigilante contra isso [ser subitamente dominado pelo estado de possessão], mantendo a mente ocupada ao filmar, fotografar e gravar o que se sucedia ao meu redor. Manter a mente vazia, aumentando a emotividade pessoal, ficando com raiva ou com medo, é tornar-se altamente vulnerável a essa experiência..." (SARGANT, William. A possessão da mente, p. 220). 

"Minha esposa observou-me que eu parecia estar tão hipnotizado e em transe quanto os manuseadores de cobras que eu fotografava [em revivals nos Estados Unidos] (Id. ibid, p. 228)" .

"Temi ser envolvido repentinamente pelo ritmo e entusiasmo, terminando por entrar em estado de transe e êxtase" (Id. ibid. p. 229). 
Um outro livro de Sargant sobre o assunto (Battle for the mind, 1957) provocou tanto impacto na época em que foi publicado que o famoso pastor da capela de Westminster, D. Lloyd-Jones (forte opositor da teologia liberal), se viu obrigado a proferir uma palestra (conversões: psicológicas e espirituais) para ministros cristãos no final da década de 50 com o intuito combater seu ceticismo. A palestra do pastor Lloyd-Jones, ao lado de inúmeras outras, foi publicada no Brasil pela editora PES (Discernindo os tempos: palestras proferidas entre 1942 e 1977). 


Jones F. Mendonça

terça-feira, 2 de agosto de 2011

SEU PEDROSA, DONA ZICA, O CÂNCER E O EXÚ

Albrecht Dürer - A descida do Espírito
Santo (1511), British Museum
Seu Pedrosa padece de um câncer. Ele está definhando. Sente dores terríveis. Mas o médico insiste: “é doença é da tua cabeça, não há o que fazer”. O paciente pensa: “se é psicológico, por que dói, porque meu corpo incha, por que a morte me convida à cova?”. O quadro do Seu Pedrosa se agrava, mesmo não tendo doença alguma.

Dona Zica freqüenta um terreiro de Umbanda. O cheiro, a luz tênue, os atabaques rufando, o canto das curimbas, e eis que de repente esta senhora de cinquenta e tantos anos incorpora um Exú. O cenário é surreal. Quem está ali, Dona Zica ou Exú?

Carl Jung sempre foi acusado de ser um pseudocientista. Talvez por ter insistido em dizer que o “irreal”, o “psicológico” é real. Se existe efeito a coisa existe, seja qual for o nome que se dê a ela.

Mas ao dizer que coisas “imaginárias” existem, ele levantou dois problemas: 1) demônios, deuses, anjos, fadas, duendes e elefantes voadores passariam a, digamos, “existir”. 2) Seria preciso admitir que nosso inconsciente é autônomo, que ele é capaz de nos pregar peças e de nos induzir a fazer coisas que não queremos. Perturbador!

Seu Pedrosa cansou de ouvir o médico dizer que o seu câncer é psicológico. Ele acabou morrendo. Seu corpo expirou por causa de uma doença que simplesmente nunca existiu.

Dona Zica deixou de ir aos terreiros. No momento está frequentando uma igreja evangélica carismática. Não incorpora mais o Exu. Agora é o Espírito Santo. 

A pergunta que fica é: somos mesmo seres autônomos?


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 2 de março de 2011

CARL JUNG, O CATOLICISMO E A ALQUIMIA

Apesar de protestante, Carl Jung atribuía extremo valor a alguns elementos do culto católico. Não por uma questão doutrinária, mas pela importância vital que tais elementos tinham para a psiquê humana. Certa vez ele chegou a dizer que os católicos precisavam menos de seus serviços que os protestantes, devido ao caráter terapêutico da confissão feita ao padre.  

Sobre a missa como repetição do sacrifício pascal, tão criticada por protestantes, Jung declara:
Na missa, Cristo é sacrificado como um ato atemporal do mundo exterior e ressurge sob a forma de substâncias transmutadas. O ritual de sacrifício de morte não é uma repetição do sacrifício histórico, mas o primeiro e único acontecimento eterno. A experiência da missa é, por esse motivo, a participação num momento de transcendência da vida, que resiste a todos os limites de espaço e tempo (GW 9/1, §209).
É preciso que algo fique claro. Jung não estava preocupado se tais práticas eram corretas do ponto de vista doutrinário ou se correspondiam a um fato histórico ocorrido no passado. Para ele, os ritos religiosos muitas vezes descrevem processos do inconsciente.  

Além das religiões cristãs, Jung também se interessou por religiões orientais e pela alquimia, vista por ele como um modelo ou imagem da individualização (processo de amadurecimento e transformação da psiquê). Ele demonstrou que o simbolismo dos processos alquímicos se ritualiza em sonhos de pessoas que sequer sabem o que é a alquimia. Num caminho paralelo ao de Jung seguiu Mircea Eliade, famoso mitólogo e historiador das religiões. Na sua obra “Ferreiros e alquimistas” Eliade apresenta um conjunto de mitos, ritos e símbolos associados aos ofícios de mineiro, metalúrgico e forjador, cujos segredos se transmitem de geração em geração através dos ritos iniciáticos.  

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ESPÍRITOS MALIGNOS, ANJOS CAÍDOS, LARVAS E ESPÍRITOS IMUNDOS: UMA BREVE HISTÓRIA DO DEMÔNIO.

Por Jones Mendonça

I - Introdução
A figura do demônio despertou ao longo da história ora um sentimento de medo, ora de fascinação. Na idade média causou pânico na população, que via em fenômenos triviais a atuação desses seres[1]. Magos modernos tais como Aleister Crowley e Dion Fortune ensinavam ser possível controlar os demônios caso se conseguisse o conhecimento e a conversação do anjo guardião, “a capa mais profunda do subconsciente, o ego definitivo, o mais autêntico ‘eu’”[2]. Para os ocultistas, anjos e demônios não têm existência objetiva, mas são realidades psíquicas.

A figura do demônio surge em várias culturas, podendo ser chamados, dentre outros nomes, de galla, na religião sumeriana; gênios, na mitologia árabe; larvas, na crença popular latina e demônios na tradição cristã. No Antigo testamento surgem inicialmente como serviçais de Yahweh (p. ex. 1Sm 16,14 e 1Sm 19,9). Mais tarde, após o exílio babilônico, os judeus interpretaram o demônio como sendo um opositor de Yahweh (compare 2Sm 24,1 com 1Cr 21,1). No Novo Testamento são inúmeras as passagens onde encontramos Jesus exorcizando demônios. Eles podiam causar doenças físicas (Mc 9,25) e oprimir mentalmente as pessoas (Mt 17,15), pondo-as à margem da sociedade. Na tradição cristã os demônios foram interpretados como sendo anjos que se rebelaram contra Deus juntamente com Satã, o príncipe dos anjos rebeldes (Mt 12,24).

II. O demônio no Antigo Testamento
Na literatura vétero-testamentária a expressão mais comum para designar o demônio é “espírito maligno” (ruah rah). O livro de Samuel enfatiza que esse espírito era da parte de Yahweh (1Sm 16,14), ou Elohim, (16,15). Foi após ser possuído por este mesmo espírito que Saul começou a profetizar (18,10). Fica evidente nesses textos que tal espírito obedecia às ordens de Yahweh e não uma entidade que se opunha a Ele. O primeiro livro dos Reis nos dá um outro exemplo. Para induzir Acabe a partir para uma batalha em Ramote-Gileade, Yahweh aceitou os serviços de um espírito mentiroso (ruah sheqer) que se apresentou diante dEle na corte celeste (1Rs 22,21-22).

III. O demônio na literatura apócrifa judaica
Na literatura apócrifa judaica são freqüentes as citações aos chamados “espíritos malignos”. O Livro de Tobias menciona a existência de um demônio chamado Asmodeu (Tb 3,8), responsável pela morte de sete homens que haviam sido dados em casamento a uma mulher chamada Sara. O Livro de Enoch fala de duzentos anjos que se rebelaram contra Deus, relacionando-se sexualmente com as mulheres humanas:
“A Miguel, igualmente disse o Senhor: Vai e põe a ferros Samyaza, e os seus sequazes, que se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas”[3].
Tal relacionamento teria produzido gigantes com 3000 côvados (cerca de 1.500m!) insaciáveis por comida, que após acabarem com todas as provisões dos homens, passaram a buscar nos seres humanos sua fonte de alimento[4]. Além de responsáveis pelo surgimento dos gigantes, os anjos rebeldes teriam ensinado os homens a produzir armas de guerra, a consultar os astros e todo o tipo de transgressão.

IV. O demônio na mentalidade greco-romana
No mundo grego-romano a idéia que se tinha dos demônios era bem diferente. Eles eram as “almas humanas divinizadas pela morte[5], nos diz Fustel de Coulanges. Os latinos davam outros nomes às almas humanas desencarnadas, chamavam-nas manes, lares, larvas ou gênios. Se o mane era bom chamavam-no lar ou gênio; se era mau, era chamado de larva. Cícero afirmava que o termo latino lares correspondia ao termo grego demônio: “Àqueles que os gregos chamam demônios, damos-lhes o nome de lares[6]. Concluímos assim que na mentalidade greco-romana os demônios eram almas de pessoas mortas que vagavam pela terra, podendo ser até mesmo benéficas ao ser humano.

Mas como uma alma se tornava má na mentalidade greco-romana? Fustel de Coulanges nos responde mais uma vez:
“A alma que não possuísse sua sepultura, não tinha morada, e permanecia errante. Em vão aspiraria ao repouso que amava, depois das agitações e do trabalho desta vida; permanecia condenada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem jamais se deter, sem jamais receber as oferendas e os alimentos de que tanto necessitava” [7].
A crença em aparições de almas errantes era tão presente na mentalidade do povo que até mesmo os discípulos de Jesus pensaram ser ele um fantasma (φαντασμα) enquanto caminhava sobre as águas do Mar da Galiléia (Mt 14,26). Não havia na mentalidade primitiva a idéia de um outro mundo, onde as almas descansariam ou pagariam pelos seus pecados. O homem “uma vez sepultado, nada tinha a esperar, nem recompensas, nem suplícios[8]. A pessoa morta continuava sua existência junto aos seus parentes, no túmulo, sendo alimentada em rituais que visavam lhe proporcionar descanso e paz. A crença no Tártaro (lugar de condenação) e nos Campos Elíseos (lugar de descanso e paz) só foi incutida mais tarde[9]. No filme “O gladiador” (direção de Ridley Scott, 2000) o personagem principal esperava reencontrar sua família nos Campos Elíseos após sua morte.

V. O demônio na literatura neo-testamentária
O termo daimónion (δαιμόνιον), traduzido por demônio ou simplesmente por divindade (At 17,18), aparece quarenta e seis vezes no Novo Testamento. Apenas seis ocorrências encontram-se fora dos evangelhos. A variante daimon (δαίμων), também traduzida por demônio, surge cinco vezes, duas no Apocalipse e uma em cada um dos sinóticos. Outras duas variantes também ocorrem: daimoniódes (δαιμονιώδης), que a Bíblia de Jerusalém traduz por demoníaco (única ocorrência em Tg 3,15) e daimonízomai (δαιμονίζομαι), referindo-se a uma pessoa influenciada ou atormentada por um demônio (p. ex. Mt 4,24). Apesar do termo demônio ser identificado com o “espírito imundo” (πνευμα ακαθαρτον) em Mc 7,25-26, isso não pode ser feito tão facilmente em relação aos anjos caídos (Ap 12,7-9). As epístolas de Judas e Pedro falam a respeito de anjos que que “deixaram sua própria habitação” (Jd 1,6) e que foram lançados no inferno (2 Pe 2,4), não há uma ligação clara entre eles e os espíritos imundos que possuiam pessoas.

VI. Conclusão
Mas afinal, tais seres maléficos eram reais ou mero produto da mente humana? O psiquiatra metodista Willian Sargant, após viajar por todo o mundo estudando casos de possessão conclui:
“Penso que devo terminar talvez estes longos anos de pesquisa com a conclusão de que não existem deuses, mas apenas impressões de deuses criadas na mente do homem, tão variados são os deuses e as crenças que passaram a existir com a ação da emotividade, da sugestionabilidade aumentada e das fases anormais da atividade cerebral”[10].
Teólogos mais conservadores como Wayne Grudem entendiam que “em algum momento entre Gênesis 1:31 e Gênesis 3:1, houve uma rebelião no mundo angélico que levou muitos anjos a ficarem contra Deus e converterem-se em malignos[11].

Rudolf Bultmann propôs a desmitificação (ou desmitologização ou desmitização) do Novo Testamento. Com isso ele queria dizer que apenas a essência da mensagem cristã deveria ser preservada, descartando-se tudo aquilo que fosse considerado inaceitável diante das descobertas científicas modernas. Aplicando o método de Bultmann, deveríamos abrir mão de crenças primitivas em anjos ou demônios:
Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo [...] a idéia de que os homens podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus espíritos”[12].
Carl Jung foi um dos que criticou essa forma de encarar o sobrenatural presente na religião: “A tentativa de desmitificação de Bultmann representa uma conseqüência do racionalismo protestante e leva a um contínuo empobrecimento da simbologia[13]. Numa linha semelhante parece seguir Paul Tillich. Apesar de descartar a visão tradicional que considera os demônios anjos caídos, ele reconhece o poder desagregador do demoníaco: “a psicologia secular do inconsciente redescobriu a realidade do demoníaco em cada pessoa[14].

Fruto de uma alteração da atividade cerebral, anjos caídos, meros seres mitológicos ou realidades psíquicas autônomas capazes de provocar sérios males ao homem? Seja qual for sua origem, os demônios atravessam os séculos causando distúrbios individuais ou coletivos[15]. Se o nosso inconsciente é realmente autônomo, como sustentava Jung[16], poderíamos dizer que os demônios são mais reais do que imagina uma mente aprisionada nos esteios da racionalidade. A linha que separa o real do imaginário é tênue. Negar a existência do demônio (ou demoníaco, como gostava Paul Tillich) seria como negar os efeitos de um câncer “imaginário” que mata aos poucos um pobre moribundo.

Bibliografia:
BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003.
BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia. São Paulo. Novo Século, 2003.
COULANGES, Fustel. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Jonas Camargo Leite. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich; BIETENHARD, Hans. Diccionario teologico del Nuevo Testamento - Vol II. Salamanca: Sígueme, 1990.
GRUDEM, Wayne. Teología Sistemática. Traduccíon de Miguel Mesías, José Luis Martinez, Omar Diaz de Arce. Miami, FL: Editorial Vida, 2007.
HARK, Helmut. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais. Tradução de Maurício Cardoso. São Paulo: Loyola, 2000.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Tradução de Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
KING, Francis. Magia. Madrid: Ediciones del Prado, 1996, p.12 (Coleção Mitos, Deuses e Mistérios).
KIRST, N.; KILPP, N.; SCHWANTES, M.; RAYMANN, A.; ZIMMER, R. Dicionário hebraico-português e aramaico-português. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 2007.
KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia, o berço da civilização. Tradução de Genolino Amado. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão.Bauru, SP: Edusc, 2002.
PROENÇA, Eduardo de (org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial, 2005.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave lingüística do Novo Testamento Grego. Tradução de Gordon Chown e Júlio Paulo T. Zabatiero. São Paulo: Vida Nova, 1995.
SARGANT, Willian. A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1973.
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

Notas:



[1] Um belo exemplo do quão imaginativa foi a mente medieval em relação à atuação dos demônios pode ser encontrado na obra Malleus Maleficarum, escrita por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, publicada pela primeira vez em 1487. O documento é uma espécie de manual para identificar bruxas. O livro foi publicado em língua portuguesa pela editora Rosa dos Tempos.

[2] KING, Francis. Magia, 1996, p.12.
[3] Enoch 10,6
[4] Enoch 7,2
[5] COULANGES, Fustel. A cidade Antiga, 1996, p. 17
[6] Cícero, Timeu, II, in COULANGES, Fustel. A cidade Antiga, 1996, p. 17
[7] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, 1996, p.12.
[8] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, p. 13.
[9] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, p. 13.
[10] SARGANT, Willian. A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé, 1973, p.241.
[11] Tradução livre do autor. No original “en algún momento entre los sucesos de Genesis 1:31 y Genesis 3:1, tuvo que haber una rebelion en el mundo angelical que llevo a muchos angeles a ponerse en contra de Dios y convertirse en malignos”. GRUDEM, Wayne. Teología Sistemática, 2007, p. 430.
[12] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia, 2003, pp. 13, 14.
[13] Briefe II, p. 211 in HARK, Helmut. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais, 2000, p. 100.
[14] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, 2004.
[15] Ficou famoso o caso da possessão coletiva das freiras ursulinas de Loudun (1632), que faziam caretas e balbuciavam palavras ininteligíveis às vistas de turistas curiosos. Inspirado por este caso, o escritor e intelectual inglês Aldous Huxley escreveu sua obra: “Os demônios de Loudun”.
[16] JUNG, Carl G. Psicologia e religião. 1965, pp. 10-41.


Crédito das imagens:
Figura 1:
Aleister Crowley (1875-1947), com suas vestimentas de mago, antes de 1914.

Figura 2:
MEMLING, Hans
Inferno
c. 1485
Óleo sobre madeira, 22 x 14 cm
Musée des Beaux-Arts, em Estrasburgo