segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O DAVI BÍBLICO: LEAL E CARISMÁTICO


1. O Livro de Samuel, dividido em duas partes, preserva uma história que vai do nascimento de Samuel, profeta responsável pela unção do primeiro rei de Israel, Saul, até o final do reinado de Davi. Embora não oculte os pecados de Davi, o perfil deste rei, traçado no livro, insiste em diversos momentos que Davi era: 1) amado por todos, até mesmo por seus inimigos; 2) fiel a Saul e a seus sucessores legítimos, ou seja, à “Casa de Saul”. Guarde isso. Sigamos.

2. O grande diferencial entre Saul e Davi, destaca o livro, é que o primeiro agia “conforme o coração de Yahweh”, ou seja, era objeto de uma afeição especial por parte de Yahweh (1Sm 13,14). Além de Yahweh, também cultivavam grande afeição por Davi, "Saul" (1Sm 16,21), “todo o povo” (1Sm 18,28), Jônatas e Micol, filhos de Saul (1Sm 19,1; 18,20), um grupo de mulheres cantoras/dançarinas (1Sm 18,7) e até mesmo Aquis, um rei filisteu! (1Sm 29,9)

3. A retórica positiva em relação ao carisma de Davi funciona como instrumento de legitimação de sua unção como rei de Israel. E por que essa retórica era necessária? Ora, porque o sucessor legítimo de Saul era seu filho Ish-Boset. Quando Saul e alguns de seus filhos morrem na batalha de Gilboé, Abner (general de Saul) e Ish-Boset revelam estar cientes do desafio que têm pela frente: manter as tribos do Norte unidas contra Davi, que já reinava em Hebron.

4. O Livro apresenta Davi como alguém que respeita não apenas Saul, o “ungido de Yahweh”, mas também regras de sucessão monárquica. Quando o general de Ish-Boset morre pelas mãos de Joab, o texto diz: “o rei [Davi] nada teve a ver com a morte de Abner” (2Sm 3,37). Davi também aparece reprovando ou até lamentando o assassinato de outros opositores, como Ish-Boset (2Sm 4,8-12) e Absalão (2Sm 18,33). Mefiboset, neto de Saul, não é morto, mas é tratado como bondade (2Sm 9,11).

5. Quando toda a instabilidade política envolvida na sucessão monárquica é superada e Davi reina soberano, duas imagens projetadas sobre Davi permanecem na memória do leitor: 1) Davi era amado por todos: por Yahweh, pelo povo, pelos filhos do rei em exercício e até por Saul e Aquis, seus inimigos; 2) Embora não fosse herdeiro legítimo do trono, Davi jamais se impôs contra Saul ou algum de seus descendentes. Nenhum deles morreu por suas mãos ou por suas ordens. O único sobrevivente da Casa de Saul era aleijado de ambos os pés.




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

O QUE É UM "CORAÇÃO QUEBRANTADO" NA BÍBLIA HEBRAICA?


1. Um dos meus passatempos prediletos é examinar a variedade de sentidos que uma mesma palavra ou expressão hebraica desempenha ao longo do texto bíblico, dependendo do contexto. Hoje quero analisar a expressão “coração quebrantado/despedaçado”, presente nos seguintes textos: Sl 34,18; 51,17; 69,20; 147,3, Is 61,1 e Jr 23,8. Na maioria desses versos, a imagem do coração em pedaços tem sentido negativo: indica uma pessoa que se encontra em uma situação de abalo emocional profundo, miséria, humilhação ou desânimo.

2. No Sl 34,18, por exemplo, lemos que Yahweh está perto dos “corações quebrantados”, ou seja, dos “desanimados”, “abatidos” (a NTLH é uma das poucas que acerta. Não é “contrito” como quer a Bíblia de Jerusalém). No Salmo 69,20 o salmista tem seu “coração quebrantado” porque sofre um insulto e se sente humilhado. Um indivíduo que tem o “coração quebrantado” precisa de cura, como sugere o Sl 147,3: “ele cura os corações despedaçados e cuida dos seus ferimentos”. Is 61,1 tem o mesmo apelo: “O Espírito de Yahweh cura os corações quebrantados” ( = abatidos).

3. O único texto que emprega “coração quebrantado” para indicar contrição, arrependimento, é o Sl 51,17: “Sacrifício a Deus é um espírito quebrantado, coração quebrantado e esmagado”. Resumindo: 1) Ter um coração quebrantado significa, na maioria dos casos, que determinado indivíduo se sente humilhado, abatido, abandonado, por isso declara necessitar do auxílio divino; 2) Em um caso específico (51,17), ter um coração quebrantado indica que uma pessoa humilhou-se diante da divindade, ou seja, que está arrependida.

4. Agora vejamos o caso de Jr 23,8. Note que o profeta emprega a expressão "coração despedaçado" para indicar um estado de espírito terrivelmente abalado diante da revelação que lhe foi dada. Esta palavra, além de despedaçar seu coração, também faz estremecer todos os seus ossos, conduzindo seu corpo ao colapso: "Sou como um bêbado, como um homem que o vinho dominou". Jeremias não está declarando arrependimento. Ele se revela atônito, assombrado com "as santas as palavras" de Yahweh.

5. Para alguns, essa diferenciação pode parecer desnecessária, inútil. Mas para o tradutor é importante distinguir uma coisa da outra, afinal de contas há grande diferença entre sentir-se abalado devido a uma ação externa (abandono, ofensa, perda do patrimônio, derrota em uma batalha ou espanto diante de uma revelação inesperada) e a auto-humilhação provocada pelo reconhecimento de alguma falta.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

É CLARO QUE MOISÉS NÃO É O AUTOR DO PENTATEUCO


1. Os primeiros a notarem que o Pentateuco não pode ter sido escrito por um único autor foram os sábios judeus, convencidos de que a morte de Moisés não poderia ter sido registrada pelo próprio profeta. No final da Idade Média novos trechos foram sendo colocados em dúvida. Um exemplo: de acordo com Gn 14,14 Abraão perseguiu quatro reis que haviam sequestrado Ló e seus bens “até Dã”. Ora, o território da Dã só passou a existir quando os israelitas, liderados por Josué, atravessaram o Jordão e ocuparam a terra, que foi distribuída entre as tribos.

2. Assim, como Moisés poderia ter se referido a um território que sequer existia enquanto estava vivo? A conclusão é óbvia: quem redigiu essa história já estava na terra. E como Moisés, de acordo com texto, não entrou na terra, essa pessoa não pode ter sido Moisés. Outros detalhes que causaram estranheza: o texto se refere a Moisés em terceira pessoa: “e Moisés fez isso, e Moisés fez aquilo”. Não é difícil deduzir que o redator está contanto a história de Moisés, uma pessoa do passado cuja história foi preservada pela tradição.

3. Alguém poderia perguntar: “em que sentido a negação da autoria mosaica do Pentateuco muda o modo como lemos o texto?”. Minha resposta: muita coisa. Em primeiro lugar porque as histórias do Gênesis foram escritas em um período no qual a Lei já funcionava como parâmetro de certo e errado, ao menos para parcela da população. Assim: Gn 2,3 legitima a guarda do sábado; Gn 2,16-17 pretende convencer os israelitas a não violarem o mandamento divino (a Lei); Gn 4 condena “veladamente” os sacrifícios não cruentos oferecidos por Caim.

4. Enfim, os textos tinham como audiência indivíduos que já estavam habituados com a Lei, mesmo quando essas histórias são situadas em um tempo no qual certos costumes e tradições não haviam ainda sido afetadas pela introdução da Lei. O “território de Dã” não existia no tempo de Abraão, nem no tempo de Moisés, mas quem conta a história projeta seu conhecimento geográfico no passado. E isso também acontecia com as crenças, claro.



Jones F. Medonça

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O ÁGAPE COMO AMOR CARNAL EM CÂNTICO DOS CÂNTICOS


1. No Livro de Cântico dos Cânticos, capítulo 7, verso 6, lemos assim: “como és bela, como és formosa, que AMOR delicioso!”. E por que este amor é tão delicioso? Ora, por causa dos cachos, dos seios, do umbigo, do quadril, da boca que se derrama, “molhando-me lábios e dentes” (7,9). O texto fala de um amor “caliente”, claro. Muita gente vive repetindo por aí que na Bíblia esse tipo de amor é indicado pela palavra grega “eros”, que se diferencia de “ágape” (amor incondicional, divino) e de “fileo” (amor entre humanos, entre amigos). Mas isso está errado. Muito errado.

2. Veja que na versão grega do texto de Cântico dos Cânticos (chamada de Septuaginta), traduzida por judeus versados no idioma grego, a palavra “ágape” foi a escolhida para traduzir esse amor humano, carnal, entre homem e mulher: “ί ὡραιώθης καὶ τί ἡδύνθης, ἀγάπη, ἐν τρυφαῖς σου” (7,9). Sabe o que isso significa? Significa que uma diferenciação considerável entre “ágape” e “fileo” talvez tenha até existido entre os gregos antigos em alguma época específica, mas na Bíblia ela simplesmente inexiste. Inventaram essa classificação tripartida do amor.

3. Trata-se de uma ideia fixa, cristalizada, protegida por uma casca sólida, polida e preservada na mesma caixa em que se guardam os sonhos. Alguém poderá argumentar que o amor que se desenvolve entre os amantes em Cântico dos Cânticos é “ágape”, incondicional, divino, porque na verdade reflete o amor de Deus por Israel (é o que dizem os alegoristas). Se é assim, como explicar o uso de ágape em 1Rs 11,2, que declara com todas as letras que Salomão se ligou a muitas mulheres estrangeiras por “AMOR” (ágape!!!). Ora, o texto não deveria registrar “eros”?

4. Conclusão: na versão grega do Antigo Testamento a palavra “eros” jamais é usada, mesmo quando claramente indica amor carnal, mesmo quando enfatiza a atração pela derme nua, pelos beijos, pelos afagos ardentes. Por outro lado, “ágape” e “fileo” são empregadas de forma intercambiável, servindo para se referir ao amor da divindade pelos humanos, ao amor dos humanos pela divindade, ao amor dos homens pelas mulheres e até mesmo o amor de homens e mulheres pelas coisas mais vis.


Jones F. Mendonça

SODOMA E BENJAMIN DE GABAÁ


1. Um leitor atento perceberá que a história dos mensageiros divinos cobiçados pela população de Sodoma (Gn 19,1-11) em muito se parece com a história do levita cobiçado pela população de Gabaá de Benjamin (Jz 19,11-30). No caso de Sodoma, Ló oferece suas filhas virgens; no caso de Benjamin de Gabaá, um morador idoso oferece sua filha virgem. Algo chama a atenção nessas duas histórias: por que, cargas d’água, tanto os moradores de Sodoma como os moradores de Gabaá de Benjamin cultivavam tamanha tara por homens hospedados na casa de um morador local? Isso não é estranho?

2. Bem, talvez a história tenha sido interpretada de forma equivocada. Será que esses “tarados” sodomitas/benjamitas cultivavam um desejo incontrolável por relações homoafetivas? Suponho que não. Repare que os objetos do desejo, no caso de Sodoma, eram mensageiros divinos, ou seja, mediadores entre o divino e o humano. No caso de Benjamin, o objeto do desejo era um levita (sacerdote, como o levita de Jz 18?), visto como mediador entre seres divinos e seres terrenos. Ao que parece, a história reflete uma antiga crença muito estranha: relacionar-se sexualmente com sacerdotes e mensageiros divinos transmitia algum tipo de poder.

3. Nas duas histórias o tema principal é a violação de um hóspede, algo considerado repugnante na sociedade do Antigo Israel. O tema secundário é a tentativa de violar sexualmente indivíduos que de alguma maneira atuavam no espaço de transição entre homens e deuses. Ou estou errado?


Jones F. Mendonça

ELAINE PAGELS E AS ORIGENS DE SATANÁS

1. No final da década de 70, Elaine Pagels tornou-se mundialmente famosa com a publicação de “The Gnostic Gospels”. A autora é especialista em gnosticismo, uma corrente religiosa que nasceu no contexto do cristianismo primitivo e foi visto como uma ameaça à ortodoxia cristã primitiva. Neste ano, no ápice de sua fama, Pagels escreveu “Miracles and Wonder” (Doubleday, 2025, 336 p.), ainda sem tradução em português. Desta vez o foco de seu trabalho é a figura de Jesus. Com certeza o livro despertará muitas polêmicas.

2. Quero aproveitar para falar de um livro menos conhecido de Pagels, publicado em 1995: “The Origin of Satan: How Christians Demonized Jews, Pagans, and Heretics”. Tal como sugere o título, o livro procura explicar como a figura de Satanás, relativamente insignificante no Velho Testamento, ganhou proeminência e importância na visão dos primeiros cristãos, que passaram a atribuir influência demoníaca a todos aqueles que eram vistos como opositores de sua fé, como judeus, “pagãos” e “heréticos” (também vale ler: "Quem matou Jesus?", de John Dominic Crossan).

3. Passaram-se dois mil anos, meu caros, e esse tipo de recurso ainda funciona, por isso o livro merece ganhar espaço nas prateleiras de quem está interessado em compreender algumas das raízes do atual contexto religioso evangélico. O dualismo gnóstico e depois maniqueísta fez sucesso no passado e sua força ainda é visível nos discursos inflamados de líderes fundamentalistas que têm transformado seus púlpitos em zona de guerra político-partidária, em prostíbulo metafísico-eleitoral (eita, que agora exagerei!). E nesses discursos o "Zarapelho", o "Satanás", é sempre o outro.


Jones F. Mendonça

ÁGAPE E O TAL DO "AMOR INCONDICIONAL"


1. Há um mito sobre o significado da palavra grega “ágape” que se perpetua e que inclusive é repetido por linguistas e tradutores renomados, cujo nome terei o cuidado de não mencionar aqui. Eles repetem, sem qualquer cuidado, que “ágape”, na Bíblia, sempre indica o amor divino, incondicional, o amor de Jesus, etc. Mas isso não é verdade! No Novo Testamento “ágape” e “fileo” são empregados de forma intercambiável.

2. Um exemplo: “Pois Demas me abandonou por amor (ágape) ao mundo presente” (2Tm 4,10). Veja que “ágape”, aqui, não tem nada a ver com amor divino, incondicional, ou algo semelhante. Outro exemplo, desta vez expondo o emprego de “fileo” como amor divino: “pois o próprio Pai vos ama” (fileo, Jo 16,27). Por que não foi usado “ágape” aqui, se ele preserva – como dizem – o sentido de um “amor incondicional”?

3. Em Jo 5,20 lemos o seguinte: "ὁ γὰρ πατὴρ φιλεῖ τὸν υἱὸν", ou seja, "porque o pai ama [fileo] o filho". Os mitos ganham pernas, patins, turbinas… e correm na velocidade dos cometas.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

ZADOK, UM "SACERDOTE SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS"


1. Já defendi, em post anterior, que “ser alguém segundo o coração de Deus”, como Davi (cf. 1Sm 13,14), é uma maneira de dizer que determinado indivíduo foi fiel cumpridor da lei, ou melhor, da lei tal como aparece registrada no Deuteronômio. Outro rei louvado por sua fidelidade à lei deuteronômica é Josias, por isso o Segundo Livro dos Reis declara: “não houve antes dele [de Josias] rei algum [nem Davi!?] que se tivesse voltado, como ele, para Yahweh, DE TODO O SEU CORAÇÃO...” (2Rs 23,25).

2. Além de reis, também “procede conforme o coração de Deus” um sacerdote. Quando o sacerdote Eli é advertido de que o ofício sacerdotal seria removido de sua casa, a seguinte promessa é anunciada: “farei surgir um SACERDOTE FIEL, que procederá CONFORME O MEU CORAÇÃO e o meu desejo, e lhe concederei uma casa que permaneça, a qual andará sempre na presença do meu ungido”. Mas quem é esse sacerdote? E quem é esse ungido ao lado do qual atuará esse sacerdote?

3. Bem, esse “ungido” é Davi e esse sacerdote é Zadoc, que substituiu a linhagem de Eli (cf. 1Rs 2,27). Embora a genealogia bíblica apresente Zadoc como descendente de Aarão, assim como Eli, especula-se que ele tenha sido originalmente um sacerdote jebuseu incorporado à religião israelita por meio de algum tipo de negociação. Seja como for, veja que Zadoc, ao lado de Davi e Josias, recebe um status especial. E por que todos receberam esse status especial? Ora, porque foram avaliados a partir do que diziam as leis deuteronômicas.

4. Então não tem nada a ver com o fato de Davi ser alguém que constantemente se arrependia? Não. Saul também é apresentado como alguém arrependido após ter poupado Agag, rei amalequita, do anátema (cf. 1Sm 15,3): “Pequei e transgredi a ordem de Yahweh e os teus mandamentos, porque temi o povo e lhe obedeci" (1Sm 15,24). É importante perceber que o critério de avaliação dos reis, sacerdotes e profetas bíblicos não era baseado em valores modernos, mas em valores considerados preciosos pelo redator.


Jones F. Mendonça

SAUL EM ÊXTASE


1. Os tradutores da Bíblia divergem bastante em relação à tradução de 1Sm 18,10. Assim que é tomado pelo “espírito maligno da parte de Yahweh”, Saul busca tirar a vida de Davi porque: 1) “tem uma crise de raiva” (ARA), 2) “começa a agir como louco” (NTLH), 3) “entra em transe profético” (NVI), 4) “começa a profetizar” (ACF) ou 5) "a delirar" (BJ)?

2. Eu diria que a tradução mais literal é “começa a profetizar”. O verbo aí é “naba’” (נבא), termo de mesma raiz de “nabiy” (profeta). Mas o que significa "profetizar"? Explico. “Profetizar” significa “agir sob a influência do espírito”. E há muitas evidências de que essa “ação do espírito” ("maligno" ou "benigno") muitas vezes vinha acompanhada de uma espécie de delírio ou êxtase.

3. O capítulo 19 do Primeiro Livro de Samuel preserva um bom exemplo. Ao se juntar a um grupo de profetas, que “profetizavam” ao som de música (10,5), Saul também começa a "profetizar", caminhando com eles até as celas de Ramá. Ao fim de tudo ele se despe de suas vestes (fica nu), cai do chão e permanece nessa situação por toda a noite (19,24).

4. Há muitas evidências no Antigo Testamento capazes de indicar que a atividade profética envolvia música, transe, transmissão de mensagens (orais ou encenadas) e, quem sabe, até mesmo o balbuciar de palavras incompreensíveis (glossolalia). Com o perdão do anacronismo, eu diria que Saul e os profetas de seu tempo tinham um viés bem "pentecostal".

5. Aos interessados no fenômeno da possessão, eu indico "A possessão da mente", escrito pelo psiquiatra britânico William Sargant. Caso seu interesse seja sobre o êxtase no antigo profetismo israelita, eu sugiro "The Prophets", escrito pelo rabino Abraham Joshua Heschel, que aborda o tema nos capítulos VIII e IX: “Prophecy and Ecstasy” (p. 414-427) e “The Theory of Ecstasy” (428-447).

* Arte: Hana Choi


Jones F. Mendonça

DOIS PAPAS


1. Sei que estou bastante atrasado, mas só agora parei para assistir "Dois Papas", dirigido por Fernando Meirelles e estrelado por Jonathan Pryce e Anthony Hopkins. Três impressões negativas: 1) "Conclave", também sobre o papado, é muuuuito melhor; 2) Ratzinger é retratado no filme quase como um evangélico fundamentalista ao estilo Augustus Nicodemus ou Franklin Ferreira; 3) O diálogo teológico travado entre os dois sacerdotes no jardim de inverno do Vaticano é decepcionante, inverossímel em todos os sentidos.

2. Sobre o ponto 2: Bento XVI era um ferrenho crítico de John Harwood Hick, teólogo presbiteriano muito conhecido por sua interpretação relativista da realidade religiosa, fortemente influenciada pela distinção kantiana entre "fenômeno" ( = a realidade percebida pelos sentidos) e "número" ( = a realidade em si, incogniscível). Assim, critica Hick por supor que o ser humano está impossibilitado de obter qualquer conhecimento metafísico. Nesse sentido, Ratzinger, de fato, aparece alinhado às ideias cultivadas por setores evangélicos fundamentalistas.

3. Acontece que a produção teológica de Ratzinger é muito mais sólida e profunda. Nos diálogos travados com Francisco no jardim, Ratzinger expõe argumentos pobres, ingênuos, até infantis, para justificar sua postura conservadora, sua crítica à modernização da Igreja. Quem estiver interessado no pensamento de Ratzinger a respeito do tema, eu sugiro "Relativismo teológico: um novo desafio para a fé", texto dirigido aos Presidentes das Comissões Episcopais Latino-Americanas para a Doutrina da Fé, em conferência realizada em Guadalajara, em 1996.

4. Acredito que Ratzinger está errado em muitos pontos. Mas o filme expôs uma caricatura do teólogo. Foi injusto. Decepcionante.



Jones F. Mendonça

DEUS, PÁTRIA E "FAMIGLIA"


1. Embora seja inegável que o lema "Deus, pátria e família", abraçado pelos integralistas e pelo bolsonarismo, tenha sido utilizado pelo movimento fascista italiano, sua origem remonta, ao menos, ao século XIX. Na cornija do mausoléu de Bela Rosin, construído entre 1886 e 1888, ainda podemos ler: "Dio, patria e famiglia".

2. O lema parece defender valores que a maior parte da população brasileira consideraria elevados. A questão que se coloca diante de nós é a seguinte: que "Deus", que "pátria", que "família" se está exaltando? Há no mundo muitos deuses, mesmo quando invocados sob o mesmo nome. O "Deus" de Luther King - todos sabemos - não é mesmo "deus" dos cristãos da Ku Klux Klan.

3. Há também muitas "pátrias" e muitas "famiglias"...



Jones F. Mendonça

sábado, 9 de agosto de 2025

O QUE SIGNIFICA SER "UM HOMEM SEGUNDO O CORAÇÃO DE DEUS"?

1. Já defendi, em post anterior, que “ser alguém segundo o coração de Deus”, como Davi (cf. 1Sm 13,14), é uma maneira de dizer que determinado indivíduo foi fiel cumpridor da lei, ou melhor, da lei tal como aparece registrada no Deuteronômio. Outro rei louvado por sua fidelidade à lei deuteronômica é Josias, por isso o Segundo Livro dos Reis declara: “não houve antes dele [de Josias] rei algum [nem Davi!?] que se tivesse voltado, como ele, para Yahweh, DE TODO O SEU CORAÇÃO...” (2Rs 23,25).

2. Além de reis, também “procede conforme o coração de Deus” um sacerdote. Quando o sacerdote Eli é advertido de que o ofício sacerdotal seria removido de sua casa, a seguinte promessa é anunciada: “farei surgir um SACERDOTE FIEL, que procederá CONFORME O MEU CORAÇÃO e o meu desejo, e lhe concederei uma casa que permaneça, a qual andará sempre na presença do meu ungido”. Mas quem é esse sacerdote? E quem é esse ungido ao lado do qual atuará esse sacerdote?

3. Bem, esse “ungido” é Davi e esse sacerdote é Zadoc, que substituiu a linhagem de Eli (cf. 1Rs 2,27). Embora a genealogia bíblica apresente Zadoc como descendente de Aarão, assim como Eli, especula-se que ele tenha sido originalmente um sacerdote jebuseu incorporado à religião israelita por meio de algum tipo de negociação. Seja como for, veja que Zadoc, ao lado de Davi e Josias, recebe um status especial. E por que todos receberam esse status especial? Ora, porque foram avaliados a partir do que diziam as leis deuteronômicas.

4. Então não tem nada a ver com o fato de Davi ser alguém que constantemente se arrependia? Não. Saul também é apresentado como alguém arrependido após ter poupado Agag, rei amalequita, do anátema (cf. 1Sm 15,3): “Pequei e transgredi a ordem de Yahweh e os teus mandamentos, porque temi o povo e lhe obedeci" (1Sm 15,24). É importante perceber que o critério de avaliação dos reis, sacerdotes e profetas bíblicos não era baseado em valores modernos, mas em valores considerados preciosos pelo redator.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 5 de agosto de 2025

O CORAÇÃO NA BÍBLIA HEBRAICA

1. Três expressões na Bíblia Hebraica empregam o elemento “coração” como expressão da vontade. O primeiro exemplo vem de uma característica atribuída a Davi, a Zadoc e aos “pastores”, que agiam “segundo o CORAÇÃO DE DEUS” (cf. 1Sm 13,14; 1Sm 2,35; Jr 3,15). Assim, a expressão “segundo o CORAÇÃO de Deus” deve ser lida como “segundo A VONTADE de Deus”. “Coração”, aqui, não possui qualquer apelo sentimental.

2. Em alguns casos, o “coração” é o do próprio personagem. Josias, por exemplo, é louvado por se voltar para Deus “de todo o seu coração” (2Rs 23,25). O que isso significa? Significa que este rei está sendo elogiado por obedecer a Deus com toda A SUA VONTADE, com todo o seu entendimento e com toda a sua força. E quem pode agir dessa maneira? De acordo com o Deuteronômio, todo aquele que circuncidou o “prepúcio do seu coração” (Dt 10,16).

3. Por vezes a referência ao coração expressa algum tipo de motivação reprovável. Isso acontece quando é dito que determinada pessoa age de acordo “com o seu próprio coração”. Este tipo de apelo negativo ao coração pode ser encontrado em Ezequiel: “dize aos que profetizam SEGUNDO O SEU PRÓPRIO CORAÇÃO” (Ez 13,2) e “volta-te contra as filhas do teu povo que profetizam SEGUNDO O SEU PRÓPRIO CORAÇÃO” (Ez 13,17).

4. Neste último exemplo o “coração” desempenha a mesma função, atuando como sinônimo de “vontade”. Assim, quem profetiza “segundo o seu próprio coração”, faz isso de acordo com suas próprias vontades e não “de acordo com o coração/vontade de Deus”. O “coração” também pode aparecer de alguma maneira relacionado ao intelecto (Ecl 1,13), aos desejos (Pv 20,5), às paixões (Gn 34,3) e ao medo (1Sm 28,5).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de julho de 2025

HIPÓTESE DOCUMENTAL, REDAÇÃO CONTINUADA E CÍRCULOS NARRATIVOS


1. No capítulo 10 do Gênesis o leitor é informado a respeito dos “clãs” e das “LÍNGUAS” faladas pelos descendentes de Noé: Jafé, Cam e Sem (Gn 10,5.20.31). Mas já no capítulo seguinte esse mesmo leitor se depara com esta surpreendente declaração: “Havia em todo o mundo UMA ÚNICA LÍNGUA e um único idioma”. Afinal, havia "muitas línguas" ou "uma única língua"? Sigamos.

2. Quando comparamos o relato da criação de Gn 1 com o relato de Gn 2 também somos surpreendidos por desconexões dessa natureza. Repare que em Gn 1 o homem é criado no sexto dia (1,26), DEPOIS da vegetação (1,11). Em Gn 2 a ordem aparece invertida: o homem é criado ANTES da vegetação: homem – Gn 2,7; vegetação – Gn 2,8-9. Como explicar isso?

3. Todas essas questões foram amplamente discutidas por estudiosos da Bíblia no século XIX. Julius Wellhausen desenvolveu uma hipótese que se tornou dominante no âmbito acadêmico até a década de 70: o Pentateuco seria o resultado da junção de quatro fontes escritas, nascidas em lugares e tempos diferentes, mais tarde unidas para compor uma obra unificada. Nesse sentido, Gn 1 e Gn 2 seriam relatos independentes.

4. A hipótese de Wellhausen, conhecida como “hipótese documental”, foi capaz de explicar não apenas os conflitos, rupturas e repetições narrativas, mas também as diferenças entre códigos legais do Pentateuco relacionados ao mesmo tema. Mas, como já foi dito, na década de 70 a hipótese documental foi alvo de uma série de críticas.

5. Apesar de reconhecerem que o Pentateuco não foi escrito por uma só pessoa, mas o resultado de um longo processo redacional, esses estudiosos perceberam que a formação desse bloco de cinco livros foi muito mais complexa do que supunha Wellhausen. Duas teorias novas surgiram: 1) Hipótese da redação continuada, 2) Hipótese dos círculos narrativos.

6. A hipótese da REDAÇÃO CONTINUADA propõe o seguinte: havia, originalmente, uma narrativa completa, que ia da Criação à morte de Moisés. Mais tarde essa história teria sofrido interferências redacionais atualizadoras e interpretadoras. A hipótese dos CÍRCULOS NARRATIVOS, por outro lado, supõe os diversos blocos narrativos do Pentateuco tiveram sua própria história de crescimento, sendo unidas mais tarde.

7. Atualmente há quem busque outras soluções. W. H. Schmidt, por exemplo, tentou combinar o modelo dos círculos narrativos com o modelo de fontes. Seja como for, uma coisa é certa: o Pentateuco tal como o conhecemos é uma obra compósita, produzida por muitas mãos que liam e reliam narrativas mais antigas, as atualizavam, as ressignificavam.




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 24 de julho de 2025

NIETZSCHE, LUTERO E OS CAMPONESES


1. Quando a Reforma estourou, os camponeses começaram a alimentar esperanças pelo fim da servidão. Diziam: “Cristo libertou todos os homens!”. Lutero considerou a declaração problemática sob a perspectiva teológica, social, política e econômica. Então disse assim:
Abraão e os outros patriarcas não tinham escravos? [...] Um reino terreno não pode sobreviver se nele não houver uma desigualdade de pessoas, de modo que algumas sejam livres e outras presas, algumas soberanas outras súdita" (Lutero, Works, IV, p. 240).
2. Em Gaia Ciência (aforismo 358), Nietzsche resume bem a dupla natureza da Reforma: “Lutero fez no interior da ordem eclesiástica, portanto, precisamente o que combateu de forma intransigente na ordem civil – uma rebelião camponesa”.

3. Trocando em miúdos: Lutero combateu a hierarquia eclesiástica, mas sacralizou a hierarquia social.



Jones F. Mendonça

LUTERO E OS CAMPONESES DA SUÁBIA

1. No impulso do impacto que as ideias de Lutero tiveram na Alemanha, um grupo de camponeses da Suábia fez a seguinte exigência: “Toda a comunidade terá o poder de escolher e depor um pastor" (Artigo 1). Não queriam ser conduzidos por pastores indicados pelos príncipes. Desejavam uma igreja democrática.

2. Lutero examinou o pedido dos camponeses e escreveu assim: “Se os bens da paróquia provêm dos governantes, e não da comunidade, então a comunidade não pode aplicar esses bens ao uso daquele que escolher, pois isso seria roubo e furto” (Admoestação à paz, 1525).

3. Trocando em miúdos: se a terra na qual vivem os camponeses pertence ao príncipe, o templo no qual se reúnem os camponeses também pertence a ele. Assim, caso queiram eleger (e depor) seu próprio pastor, que adquiram sua própria propriedade e construam seu próprio templo.

4. Problema: boa parte dos camponeses não tinha propriedades. Aliás, os camponeses denunciam o roubo dos campos comuns pela nobreza (art. 10). Quanto à esta queixa Lutero responde: “deixo esta questão para os advogados, pois não é apropriado que eu, um evangelista, delibere sobre este assunto”.



Jones F. Mendonça

O PECADO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Todas as vezes que um leitor da Bíblia se depara com a palavra “pecado”, no Antigo Testamento, está lendo a tradução da palavra hebraica “hata’” (חטא) ou algumas de suas variantes. Mas qual o seu significado? Bem, seu sentido mais básico é “errar”, “falhar”, “cometer um equívoco”. Quer um exemplo? Assim que percebe que sua rebelião contra Senaqueribe deu errado, o rei Ezequias diz assim: “COMETI UM ERRO... aceitarei as condições que me impuseres...” (2Rs 20,16).

2. No exemplo acima, não faz sentido dizer que Ezequias “pecou”, porque seu erro não foi contra um mandamento divino e sim contra um rei estrangeiro. Apenas quando esse “erro” aparece relacionado ao descumprimento de alguma ordem divina, os tradutores optam pela palavra “pecado”, do latim “peccare”, que significa “tropeçar”. A escolha não foi ruim, afinal, a alusão visual a um “tropeço” funciona muito bem para indicar um erro, esteja ele relacionado a um preceito religioso ou não.

3. Ao longo dos séculos, no entanto, a palavra “pecado” passou a ser empregada de forma restrita, como se fosse possível fazer uma lista daquilo que é “certo” ou “errado” a partir do texto bíblico. No caso do Antigo Testamento, por exemplo, “matar” é considerado “pecado” apenas em certas circunstâncias. Há casos em que “NÃO matar” é tratado como um “pecado”, como no caso de Saul, que poupou a vida de Agogue, rei amalequita, e o melhor do seu rebanho (1Sm 15,9).
 
4. Além disso, a palavra “pecado”, na cabeça de boa parte das pessoas, tem servido para indicar “tropeços” muito específicos, geralmente de ordem sexual ou relacionados a práticas condenáveis de forma quase que universal, tais como a mentira, o roubo e o assassinato. No Antigo Testamento, no entanto, a percepção de que alguém cometeu um “pecado” diante de Deus está diretamente relacionada a alguma ordem divina que foi desobedecida, seja ela moralmente aceitável ou não sob uma perspectiva moderna.
 
5. Foi pensando em todas essas questões que Martin Ehrensv, um dos tradutores da Bibelen 2020 – versão da Bíblia escrita em dinamarquês –, resolveu traduzir “hata’” por expressões mais neutras, tais como “algo que Deus não quer” ou “algo que se opõe à vontade / lei de Deus”. Com este artifício, Ehrensv evita perpetuar noções equivocadas atribuídas a determinadas palavras hebraicas, cujo sentido original foi contaminado por noções que não fazem parte do seu universo linguístico.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 18 de julho de 2025

SEXO E GÊNERO NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Uma das atividades mais elementares do ser humano consiste na classificação do mundo percebido pelos sentidos. Essas classificações aparecem relacionadas, por exemplo, ao espaço: 1) coisas situadas acima do plano (no céu), 2) coisas situadas no plano (a terra), e 3) coisas situadas abaixo do plano (no subsolo). Os antigos chegavam a projetar esses três planos no imaginário religioso: nos céus, os deuses; na terra, os seres vivos; no submundo, os mortos/deuses da morte ou os demônios.

2. Além da relação com o espaço, a classificação também aparece envolvida com o tempo. Classificamos aquilo só existe no âmbito da memória como passado, aquilo que está sendo vivido como presente, e inserimos nossos planos e expectativas no tempo reservado ao futuro. Além de tempo e espaço, classificamos também as cores, os tipos de solo, os gêneros musicais, as ideologias, os sabores, as placas de trânsito e até mesmo o tipo de hambúrguer vendido na lanchonete. É impossível viver sem classificar.

3. Os seres humanos também não escaparam à classificação. Distinções são feitas a partir da cor da pele, do status social, do local de nascimento, do sexo, da religião e também do papel social de gênero. Quando alguém pergunta: “o que faz de um macho um macho de verdade?”, estamos nos perguntando a respeito do papel de gênero, ou seja, do papel desempenhado pelo macho tal como esperado em determinada sociedade. Não é preciso viajar pelo mundo para saber que esse papel não cai do céu, mas é socialmente construído.

4. Lutero, por exemplo, achava que machos não tinham um dom natural para acalentar bebês, habilidade que ele considerava inata às mulheres (Preleções sobre o Gênesis, 3,16). Um macho que porventura revelasse aptidão com recém-nascidos seria classificado como “maricas”, ou seja, como um macho que não está cumprindo bem o papel que lhe foi reservado pelo grupo no qual está inserido. Nas sociedades patriarcais esperava-se que o homem dominasse as mulheres. Veja o caso de alguns personagens bíblicos.

5. Um leitor atento percebe, por exemplo, que Faraó é ridicularizado na narrativa bíblica por não ter controle sobre sua filha, que adota um bebê hebreu. Do mesmo modo, a incapacidade de Acabe em governar Jezabel cumpre o propósito do narrador, que tem a clara intenção de retratá-lo como um rei fraco e “pouco masculino”. Das mulheres era esperado, acima de tudo, que gerassem filhos. Elas mesmas assumiam esse papel, o que explica a profunda angústia de Ana (1Sm 1,11) e Raquel (Gn 30,1). Nas sociedades urbanas modernas esse papel vem perdendo força.

6. Bem, eu venho há algum tempo catalogando livros que se dedicam ao tema “sexo e gênero na Bíblia”. Aqui estão algumas das obras que consegui encontrar sobre o assunto:

ANDERSON, Cheryl.  Women, ideology and violence: the construction of gender in the Book of the Covenant and Deuteronomic Law. London: Bloomsbury Publishing PLC, 2005.

STÖKL, Jonathan; CARVALHO, Corrine L. (edit.). Prophets male and female: gender and prophecy in the Hebrew Bible, the Eastern Mediterranean, and the ancient Near East. Atlanta: SBL Press, 2013.

MATTHEWS, Victor H., LEVINSON, Bernard M. FRYMER-KENSKY, Tikva. Gender and Law in the Hebrew Bible and the Ancient Near East. Shefield: Sheffield Academic Press, 1998.

BAKER, Cynthia M. Rebuilding the House of Israel: architectures of gender in jewish antiquity. Stanford: Stanford University Press, 2002.

CARR, David M. The Erotic Word: sexuality, spirituality, and the Bible. Oxford:  Oxford University Press, 2OO3.

ROOKE, Deborah W. Embroidered garments priests and gender in Biblical Israel. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2009. 




Jones F. Mendonça




quarta-feira, 16 de julho de 2025

LUTERO, ARISTÓTELES E OS COMETAS


1. No final do segundo volume de suas “Preleções ao Gênesis” (1535-1545), Lutero discorre sobre o arco-íris, fenômeno visual apresentado nas linhas da Bíblia como sinal da aliança entre Deus e os seres vivos, cuja finalidade é funcionar com memorial-garantia, assegurando que a terra jamais seria destruída novamente pelas águas (Gn 9,8-17).

2. Lutero entende que o arco-íris não pode ser explicado pela razão, como supunha, por exemplo, Aristóteles em seu tratado “Meteorológica”(metéoros + lógos),” escrito há aproximadamente 2000 anos antes do nascimento do reformador. No tratado, Aristóteles defende que o arco-íris é o resultado do reflexo da luz solar projetada nas gotículas das nuvens (estava certo).

3. Mais adiante, após debochar dos filósofos por acreditarem que os fenômenos naturais podem ser explicados à luz da razão, Lutero diz o seguinte: “todos esses fenômenos são obras de Deus ou de espíritos malignos”. Ele cita como exemplo as “cabras dançantes”, as “serpentes voadoras”, e as “lanças ardentes” (!?), interpretadas como “travessuras dos espíritos no ar”.

4. Lutero terminou de escrever o comentário um ano antes de sua morte, tornando este trabalho uma fonte importante para compreender o pensamento do reformador em sua fase madura. É possível adquirir “Preleções sobre o Gênesis” gratuitamente no site do Project Gutemberg, no formato PDF, em inglês.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 15 de julho de 2025

POR QUE HÁ TANTAS TRADUÇÕES DIFERENTES DA BÍBLIA?

1. É possível apresentar ao menos três razões para explicar as diferenças – por vezes gritantes – entre as versões da Bíblia disponíveis no mercado. A primeira delas aparece relacionada ao manuscrito utilizado como base para a tradução. Ao contrário do que muita gente imagina, as cópias do texto bíblico do AT e do NT, produzidas manualmente durante séculos, possuem muitas diferenças entre si, ocasionadas por diversas razões, tanto intencionais como não intencionais. É tarefa da Crítica Textual comparar essas cópias na tentativa de reconstruir aquele que seria o texto mais antigo. Este trabalho envolve uma série de complexidades que não cabem em um post do Facebook.

2. A segunda razão toca em uma questão que afeta qualquer tipo de tradução. As palavras de um determinado idioma não equivalem exatamente às palavras de outro idioma, exigindo do tradutor um exercício nem sempre fácil: escolher palavras do idioma de destino que melhor correspondam às palavras do idioma original. Esse exercício se torna ainda mais complexo quando o texto que está sendo traduzido foi redigido de forma poética (como os Salmos), ou estruturado em pequenas sentenças (como o Livro de Provérbios). Nem todos compreendem do mesmo modo as metáforas, os jogos de palavras, as sutilezas do idioma original. E é preciso acrescentar: sequer sabemos o significado de algumas palavras.

3. A terceira razão diz respeito ao método de tradução: equivalência formal ou equivalência dinâmica? Os tradutores que optam pelo método de equivalência formal se esforçam para manter a estrutura original do texto. Um exemplo: “vaidade das vaidades, diz o pregador...”. Neste caso, o tradutor buscou seguir exatamente a estrutura do texto hebraico: “havel havalim ‘amar qohélet”. As versões que adotam o método de equivalência dinâmica, entendendo que a repetição de uma mesma palavra, no singular e no plural (“havel havalim” = “vaidade das vaidades”), funciona como superlativo, optam por sintetizar a ideia de maneira mais simples. Isso explica a opção feita pela NVI: “Que grande inutilidade!”.

4. É interessante notar que o exemplo acima, tomado de Eclesiastes 1,2, exigiu do tradutor duas habilidades: 1) Escolher uma palavra em nosso idioma que melhor corresponde ao hebraico “havel”, que significa “névoa” (daí “vaidade”, do latim “vanus” = “vazio”, ou, como preferiu a NVI, “inutilidade”); 2) Escolher se mantém a estrutura original do texto (equivalência formal) ou se tenta capturar a ideia que o texto quer comunicar (equivalência dinâmica). Caso o texto de Eclesiastes em questão tivesse sido registrado de maneiras diferentes nos manuscritos disponíveis, ainda seria necessário decidir qual deles reproduz melhor o texto mais antigo. Veja como não é fácil o trabalho do tradutor.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de julho de 2025

AS OVELHAS GORDAS DE EZEQUIEL


1. O capítulo 34 do Livro do Profeta Ezequiel faz uma dura crítica aos “pastores” ( = a liderança de Judá), acusados de abandonar as “ovelhas” ( = o povo), dispersadas “por toda a terra” (34,6). Distantes da sua terra natal, essas “ovelhas” são retratadas como “abandonadas, feridas e fraturadas”, carentes do cuidado divino. Diante de tal abandono, Yahweh declara no v. 11: “certamente eu mesmo cuidarei do meu rebanho e o procurarei”.

2. O texto se torna confuso no v. 16, ao incluir um segundo grupo de ovelhas na profecia. Elas não são descritas como “abandonadas, feridas ou fraturadas”, mas como fortes e saudáveis. Um detalhe que causa dúvida nos tradutores é o seguinte: Essas ovelhas são objeto de juízo ou de salvação? Elas estão sendo “guardadas” ou “destruídas” por Yahweh? Compare você mesmo a tradução do mesmo verso na Bíblia de Jerusalém e na NVI:

“(A) Quanto à GORDA e VIGOROSA, (B) GUARDÁ-LA-EI” (BJ).
“(A’) a REBELDE e FORTE, eu a (B’) DESTRUIREI” (NVI).

3. Há dois contrastes visíveis entre essas duas traduções. Na BJ a ovelha é “gorda”; na NVI é “rebelde. Na BJ ela será “guardada”; na VNI ela será “destruída”. Quanta diferença! Pessoalmente não tenho dúvidas de que a tradução de “shamen” (שמן) por “gorda” é a mais acertada. Ponto para a BJ. Mas não acho que essas ovelhas serão “guardadas” como sugere a BJ. A NVI está correta, elas serão “destruídas”. Qual a razão disso?

4. Inicialmente é preciso dizer que tradução grega registra “guardar” (φυλασσω) e a versão hebraica “destruir” (שמד), daí a diferença*. Os tradutores da BJ tomaram como certa a versão grega, conhecida como Septuaginta. Guarde isso. Prossigamos. Note o leitor que os vv. 17 a 22 falam a respeito do julgamento das ovelhas, que serão punidas juntamente com os pastores. Mas por que as ovelhas “gordas e vigorosas” seriam punidas?

5. Isso ainda não está muito claro para mim. Talvez indique um grupo de pessoas ricas que permaneceu na terra após a destruição de Jerusalém em 587 a.C. Assim, eles apareceriam em oposição às ovelhas “abandonadas, feridas e fraturadas” do exílio. Esta oposição também aparece registrada no Livro do Profeta Jeremias, que opõe os “figos bons” (judeus do exílio) aos figos “podres” (judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito).

* As palavras hebraicas "destruir" e "guardar" são parecidas no hebraico: shamar (שמר) = guardar; shamad (שמד) = destruir. Os tradutores da BJ supõem que a versão grega preservou o sentido correto do texto: "guardar".


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 10 de julho de 2025

SOBRE O MESSIAS SACERDOTAL

Pode ser uma imagem de 4 pessoas e texto

1. A palavra hebraica “messias” (משיח) ganha ao longo do Antigo Testamento sentidos diferentes, que variam de acordo com a situação história do momento. Inicialmente o “messias” ( = o ungido) era o rei. Quando a monarquia foi extinta após a conquista de Jerusalém por Nabucodonosor, em 587 a.C., o título pôde ser aplicado a um governante estrangeiro como Ciro, o persa, chamado de Messias em Is 45,1: “Assim diz Yahweh ao seu messias, a Ciro que tomei pela destra”. A religião sempre saberá atualizar e ressignificar suas crenças.

2. Assim que o povo de Judá retornou do exílio, o título voltou a ser aplicado a um indivíduo local: Zorobabel. E como Zorobabel era neto de Zeconias, penúltimo rei de Jerusalém, sobre ele foram depositadas as esperanças messiânicas. Acontece que o livro do profeta Zacarias menciona dois messias: Zorobabel, filho de Salatiel, e Josué, o sumo sacerdote (as “duas oliveiras”, cf. 4,14). Josué inclusive recebe uma coroa: “Pegue a prata e o ouro, faça uma coroa, e coloque-a na cabeça do sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque” (Zc 6,11).

3. A imagem do messias-sacerdote foi se consolidando no período pós-exílico, uma vez que o papel dos sacerdotes como líderes da comunidade judaica foi se fortalecendo cada vez mais. Entre os judeus da comunidade de Qumran, por exemplo, a figura do sacerdote passou a ocupar um papel mais importante que o do descendente de Davi como encarnação do messias. Na Regra da Comunidade (1QS), documento também conhecido como Manual da Disciplina, o “messias sacerdotal” recebe prioridade sobre o “messias davídico”.

4. A Epístola aos Hebreus, no Novo Testamento, resgata esta tradição ao tratar Jesus como “sumo sacerdote”, como mediador imaculado “que atravessou os céus” (Hb 4,14). Todas as religiões – não importa onde, não importa quando – são afetadas pelo sopro inexorável da ressignificação.




Jones F. Mendonça

domingo, 6 de julho de 2025

URIAS NÃO "LAVOU OS PÉS", POR ISSO FOI MORTO


1. Assim que recebeu a notícia de que Bat-Sheba, mulher de um dos seus generais, havia engravidado, Davi pôs em curso um plano para ocultar sua perigosa aventura sexual. Ele mandou chamar Urias, o marido traído, e disse assim: “desce à tua casa e lava os teus pés” (2Sm 11,8). Mas o que Davi queria dizer com isso?

2. Considerando que “pé” em hebraico (רגל) tem sentido amplo, podendo servir para indicar a perna (Is 47,2) ou até mesmo o órgão sexual masculino (Is 7,20), fica a pergunta: “lavar os pés” seria um eufemismo para “ter relações sexuais”? Vamos com calma. A resposta é sim e não. E vou explicar por quê.

3. A expressão “lavar os pés” reaparece na Bíblia Hebraica muitas vezes, por isso é preciso analisá-la em diversos contextos. Ela ocorre nos livros de Gênesis, Juízes, Samuel e Cântico dos Cânticos, sempre indicando a ação de banhar-se como preparativo para o repouso (cf. Gn 18,4; 19,2; 24,32; Jz 19,21; 1Sm 25,41; Ct 5,3).

4. Assim, ao dizer a Urias: “desce à tua casa e lava os teus pés”, Davi sugeriu o seguinte: “Urias, vai pra casa, toma um banho e tenha um merecido descanso da guerra”. Urias entendeu que esse banho seria acompanhado de outras atividades prazerosas, por isso diz: “irei eu à minha casa para COMER e BEBER e DEITAR-ME com minha mulher?” (11,11).

5. Urias parecia ser bom general, mas era bobinho que só. Ao recusar o pedido de Davi, o general morreu sem banho, sem banquete, sem boa noite de sono e sem a mulher. Repare que neste bela tela, produzida por James Tissot, o rei é retratado aflito ao ver a jovem Bat-Sheba banhando-se como veio ao mundo.


Jones F. Mendonça

sábado, 28 de junho de 2025

AGOSTINHO E O DISPENSACIONALISMO


1. Por séculos prevaleceu entre os cristãos a percepção de que os judeus eram perseguidos porque carregavam uma espécie de culpa por terem assassinado Jesus Cristo. Essa culpa explicaria as perseguições na Europa Medieval, no período da Reforma, na Alemanha nazista, etc. Mas, no século XVIII nasceu o “restauracionismo”, a crença no cumprimento literal das profecias do Antigo Testamento, que incluía o retorno dos judeus à Eretz Israel, à Terra Prometida. Aqui estão as raízes do sionismo cristão.

2. No século XIX essa crença ganhou um modelo sofisticado, conhecido como dispensacionalismo. Para os dispensacionalistas, a história da humanidade, desde Adão, deve ser dividida em sete estágios ou eras, sendo a primeira a “era da inocência” (Adão e Eva) e a última a “era do milênio” (o reinado de Cristo na terra). O mundo atual estaria vivenciando a sexta era, o “tempo da graça”, com início na morte e ressureição de Cristo. A batalha escatológica entre Israel e seus inimigos já estaria acontecendo (O Irã seria "Magog").

3. Mas de onde teria vindo essa ideia de dividir a história do mundo em sete eras? Bem, nesta semana comecei a ler o "Comentário ao Gênesis", escrito por Agostinho de Hipona, famoso teólogo cristão do século IV/V. Para minha surpresa Agostinho já associava os sete dias da criação a “sete idades do mundo”, também começando com Adão e Eva e terminando com o retorno triunfal de Cristo nos céus. Fico pensando se os dispensacionalistas não se inspiraram nas interpretações alegóricas de Agostinho.

4. Você encontra a exposição agostiniana a respeito das sete eras do mundo em “Sobre o Gênesis, Contra os maniqueus”, Livro I, cap XXIII.



Jones F. Mendonça

RELIGIÃO E RESSIGNIFICAÇÃO


1. Encravado entre o Vale de Cedron e o Vale de Josafá, em Jerusalém, ergue-se um monumento de pedra em telhado cônico conhecido ora como Túmulo de Absalão (pelos judeus), ora como Túmulo de Zacarias (pelos cristãos). Construído no primeiro século, o local tem sido um dos centros de peregrinação mais populares de Jerusalém desde o período romano tardio. Mas, afinal, a construção foi edificada por quem e com qual finalidade? Quer saber a verdade? Ninguém sabe ao certo.

2. Os judeus identificaram o local como sendo o túmulo de Absalão levando em conta o que diz 2Sm 18,18: “Absalão tinha resolvido erigir para si a estela que está no vale do Rei, porquanto dizia: não tenho filhos que conservem a memória de meu nome...”. O atual monumento seria uma ampliação construída ao redor dessa estela. Duas fontes diferentes, o Pergaminho de Cobre e o testemunho de Josefo, mencionam a existência do monumento em Jerusalém. Mas ambos estão apenas reproduzindo uma antiga tradição.

3. Desde o início do segundo século, após a expulsão dos judeus de Jerusalém, a região passou ser controlada pelos cristãos, que logo trataram de “cristianizar” a construção de pedra, identificada como sendo o túmulo de Zacarias, pai de João Batista. Uma inscrição, datada para o século IV, registra o seguinte: “Túmulo de Zacarias, piedoso mártir e pai de João”. A inscrição foi apagada e apedrejada por judeus durante séculos, que se sentiam afrontados com a mudança. Mas os sinais da inscrição foram preservados em ranhuras e mais tarde decifrados.

4. O fenômeno da ressignificação é um elemento muito presente nas religiões. A páscoa judaica, por exemplo, aparece relacionada à saída do Egito; para os cristãos passou a significar a ressurreição de Cristo. O Pentecostes era originalmente uma festa que celebrava a colheita; para os cristãos foi ressignificada e relacionada à inauguração do derramamento do espírito. Mesmo entre os judeus, as festas, os rituais, os locais sagrados e os códigos legais foram afetados pelo fenômeno da ressignificação.

5. De modo geral fingimos que nossa religião é imutável, que atravessa os séculos sem ser afetada pelas mudanças, pelas inovações, pelos novos costumes, pelo sincretismo. Mas não existe religião que não seja sincrética em algum nível, afinal, a religião é um produto da cultura. O grande desafio para o homem e para a mulher de fé consiste em articular suas crenças e suas tradições na eterna e contínua tensão entre o velho e o novo, entre o desejo de conservar e o desejo de mudar.




Jones F. Mendonça

sábado, 21 de junho de 2025

OS CABELOS PRETOS SÃO NÉVOA


1. Em Eclesiastes 11,10 lemos o seguinte conselho: “Afasta do teu coração o desgosto, e remove o sofrimento da tua carne, pois juventude e negritude são VAIDADE”. A “negritude” da qual o texto fala é certamente uma referência aos cabelos, por isso a Bíblia de Jerusalém optou por inserir a palavra “cabelo” no texto: “juventude e CABELOS negros são vaidade”. Mas por que cargas d’água os “cabelos negros e a juventude” seriam “vaidade”?

2. Do jeito que ficou traduzido, o texto parece sugerir que os cabelos negros funcionam como uma espécie de troféu da juventude, como símbolo do apego exagerado à própria imagem. Mas não se trata disso. O que ele está dizendo é: “afasta do teu coração o desgosto, o sofrimento, porque os cabelos negros, ou seja, tua juventude, é como a 'havel'” (הבל), como névoa. Os cabelos negros são temporários, sendo mais tarde substituídos pelos cabelos brancos, pela velhice.

3. Sendo mais claro: aproveita a vida, porque a juventude é breve como a névoa.


Jones F. Mendonça

JEREMIAS E A COMUNIDADE DA GOLAH

1. Tem sido uma prática comum, desde o início do século XX, dividir o Livro do Profeta Jeremias em quatro partes. A primeira parte, caps 1-25, consiste em uma coleção de oráculos poéticos cuja finalidade principal é expor com imagens aterradoras o juízo que será derramado sobre Judá e Jerusalém, sua capital. Repare que em 1,10 a “palavra de Yahweh dirigida a Jeremias” anuncia “destruição”, mas também “reconstrução”. Para bom entendedor: “destruição” para o povo de Judá; “reconstrução” para aqueles que foram levados para o exílio.

2. O tratamento diferenciado para o “povo da terra” e o “povo da golah” é reafirmado no finalzinho da primeira seção do livro (cap. 24), por meio da “parábola dos figos”. Os “figos bons”, representam a comunidade judaica da golah, do exílio, que será tratada “com bondade” e “retornará à terra” (24,5-6). Os figos ruins representam os judeus que permaneceram na terra ou fugiram para o Egito (24,8). Seu destino: “uma maldição em todos os lugares” (cf. 24,9), incluindo golpes com “a espada e a peste” até que “desapareçam do solo” (24,10).

3. A mensagem anunciada no começo e no final do livro do profeta Jeremias revela o projeto elaborado pela comunidade exílica do período persa: apresentar a comunidade da golah como única proprietária legítima da terra. Única com as credenciais para reconstruir Jerusalém e seu templo. A figura de Jeremias atua, portanto, como voz dos exilados, fornecendo, como nos diz Nathan Mastnjak, “um locus de autoridade cooptado pelos redatores persas para suas próprias inovações e agendas” [1].

[1] MASTNJAK, Nathan. Before the Scrolls: a material approach to Israel’s prophetic library. Oxford: Oxford University Press, p. 160.


Jones F. Mendonça

AGOSTINHO E A MULHER ÚTERO-SERVIL


1. Em seu Comentário ao Gênesis, Agostinho de Hipona oferece respostas a muitas perguntas que provavelmente inquietavam os teólogos de seu tempo. Por exemplo: “por que Adão nomeou aves e animais terrestres, mas não nomeou os peixes?” (Livro IX, capítulo XI). Como se vê, trata-se de uma pergunta ex-tre-ma-men-te, relevante. Bem, Agostinho foi fruto do seu tempo. Coisa da época. Deixemos o teólogo africano em paz. Mas o que preocupava Agostinho de verdade era o papel da mulher na criação. Por que Deus não optou por criar outro homem? Não teria sido (segundo ele, não eu) muito mais útil, muito mais sensato e racional? Não. Ele explica.

2. Agostinho apresenta duas boas razões para Deus ter criado uma mulher, e não um homem, para lhe fazer companhia. Vamos lá. Resposta número 1: a mulher foi criada para gerar filhos, ou, como ele diz, “para ajudá-lo a semear o gênero humano”. Para ajudar o primeiro homem a cultivar o jardim o melhor teria sido um homem, mas para “espalhar sementes”, uma mulher seria mais apropriada. Resposta número 2: Caso Deus tivesse criado outro homem, em igual nível de autoridade, estaria promovendo a discórdia. Era preciso criar uma mulher, submissa ao homem, de forma que pudesse cumprir suas ordens com obediência exemplar.

3. A mulher, para Agostinho, é um "útero-servil".



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O CRISTIANISMO NA CHINA COM FELIPE DURANTE


1. Um dos meus passatempos diários, enquanto sigo na van para o trabalho, é assistir vídeos e ler textos sobre a China. Procuro diversificar as fontes para evitar tomar como certas informações tendenciosas, generalizantes, distorcidas e enviesadas sobre o país. É preciso fugir de conteúdos nitidamente ideológicos, estejam eles alinhados à direita ou à esquerda. Além dos livros, um bom caminho é ouvir a opinião de brasileiros que trabalharam no país, como Sérgio Habib, empresário que morou muitos anos na China e atualmente é representante da JAC Motors no Brasil. Habib não demoniza nem idealiza a China, e esta é uma boa notícia.

2. Mas dá para confiar em tudo o que ele diz? Bem, é claro que não. Por isso é importante ouvir outros depoimentos. Nesta semana conheci o canal do Felipe Durante, engenheiro brasileiro que mora na China há cinco anos. Ele também já morou em Hong Kong e vez por outra conta algumas de suas aventuras na ilha. Voltemos à China continental. Felipe caminha pelo país com uma câmera, mostrando shoppings, hospitais, bairros pobres ou ricos e templos religiosos. Em um dos vídeos, ele entra em uma igreja cristã repleta de turistas que disponibiliza em seus bancos uma série de Bíblias escritas em mandarim. Ué, mas a Bíblia não é proibida na China?

3. Vamos com calma. Tanto na China como no Irã as religiões são controladas pelo Estado. No caso do Irã, por exemplo, há inúmeras igrejas cristãs em funcionamento, mas apenas aquelas cuja corrente foi devidamente registrada e autorizada, tais como a Igreja Católica Romana, Católica Armênia e até a Igreja Evangélica Presbiteriana, maior denominação protestante em funcionamento no país. Na China o registro das religiões organizadas também é obrigatório. Tanto as igrejas de orientação católica como protestantes são controladas por órgãos estatais: Catolicismo: Igreja Católica Patriótica Chinesa (CPC); Protestantismo: Movimento Patriótico das Três Autonomias (TSPM).

4. A CPC foi fundada em 1957, é formada por indivíduos que sequer são católicos e não reconhece a autoridade do Papa. Assim, bispos e padres são nomeados pela CPC, colocando os sacerdotes que não se submetem ao órgão estatal na clandestinidade. O Vaticano e o governo chinês vêm tentando chegar a um acordo, mas as negociações ainda estão em andamento. No âmbito protestante as preocupações aparecem relacionadas ao receio de que as igrejas de matriz protestante utilizem seus espaços religiosos para propagar ideologias contrárias às do Partido Comunista Chinês (PCC). O PCC sempre esteve ciente das fortes relações políticas, econômicas e ideológicas entre os missionários estrangeiros e os EUA e as potências da Europa.

5. Um site da internet bastante confiável sobre o protestantismo na China é o Chinasource.org. Embora seja um canal mantido por cristãos para a difusão do protestantismo na China, os artigos disponibilizados no site expressam equilíbrio e estão livres de clichês e lugares comuns.


Jones F. Mendonça

SHIBOLET, GALAAD E OS GALILEUS


1. De acordo com uma história contada no livro bíblico de Juízes, indivíduos da tribo de Efraim (Oeste) se distinguiam dos israelitas que viviam em Galaad (Leste) pelo sotaque, uma vez que não conseguiam diferenciar o som da consoante “shim” (שׂ) – som de “SH” – da consoante “samekh” (ס) – som de “SS”. Assim, para saber se uma pessoa era benjamita bastava pedir para que pronunciasse uma palavra como “shibolet” (שׂבלת). Se ela dissesse “sibolet” (סבלת) sua identidade era imediatamente revelada. Usando este artifício, o gaaladita Jafté teria descoberto e matado 42 mil homens de Efraim (Jz 12,1-7).

2. O Novo Testamento registra diferenças de sotaque entre nortistas, como Pedro, e sulistas, como os sacerdotes de Jerusalém. Os evangelhos nos informam que Pedro foi denunciado por seu sotaque ao tentar negar que conhecia Jesus, o “Nazareu”: “De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia” (Mt 26,73; Mc 14,70; Lc 22,59). Mas será que a diferença também tinha a ver com a pronúncia do “SH”? Não neste caso. Sabemos, graças a uma antiga anedota, que os galileus não conseguiam articular muito bem as chamadas “consoantes guturais” no dialeto aramaico falado na Palestina do I século.

3. Essa falta de habilidade impedia que os galileus conseguissem distinguir entre “hamâr” (burro), “hamar” (vinho), “‘amah” (lã) e “immar” (cordeiro), por isso se tornaram alvo de chacota entre os comerciantes de Jerusalém: "Ô galileu, tolo, o que tu precisas é de uma coisa para montar (hamâr, um burro), de algo para beber (hamar, vinho), algo para fazer uma roupa ('amar, lã), ou algo para um sacrifício no Templo (immar, cordeiro)?”. Esta curiosa zombaria aparece registrada na Mishah (bEribin, 53b) e é comentada por Geza Vermes em “As várias faces de Jesus” (Record, 2006, p. 326).

*“Shibolet” significa “espiga”, como em Jó 24,24: “como a cabeça da ESPIGA são cortados”, referindo-se aos “ímpios”.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de junho de 2025

OS LEGENDÁRIOS E A ROTA DO CAÇADOR

1. Nas últimas décadas, diversos movimentos cristãos, como o G12, Impacto radical e Veredas Antigas, prometeram experiências transformadoras lançando mão de reuniões ou eventos voltados para o crescimento espiritual ou fortalecimento das famílias. Com os Legionários não é diferente. O objetivo central do movimento, de acordo com seu fundador, Chepe Putzu, é fazer com que os homens assumam seu papel como “sacerdotes do lar” e “retornem à sua configuração original”, espalhando pelo mundo um modelo de homem baseado na “masculinidade de Jesus”.

2. Para buscar essa “masculinidade perdida” são organizadas caminhadas, acampamentos e desafios físicos e psicológicos em regiões montanhosas, conduzidas de um modo muito parecido com os acampamentos militares: escaladas, pernoite em barracas, gritos de guerra, ritos de passagem, uso de insígnias, uniformes, etc. Caso você queira saber um pouco mais sobre os Legendários, o melhor caminho é ir na raiz, buscando informações a respeito de como o movimento nasceu e qual o seu projeto original.

3. Um bom começo é ler “A rota do caçador”, escrito por Chepe Putzu, guatemaleco conhecido como “Legendário número 3” (Jesus seria o Legendário n° 1). Você também pode conhecer algumas ideias do fundador assistindo entrevistas disponíveis no YouTube, de forma que possa tirar suas próprias conclusões. Muitas das críticas feitas aos Legendários são falsas ou distorcidas, focadas em boatos que raramente podem ser verificados. É nas ideias de Chepe Putzu que eu encontrei os maiores problemas.



Jones F. Mendonça