1. Um leitor atento percebe com facilidade que muitos dos livros que compõem a Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) não são obra de um único autor, mas o resultado de um longo e complexo processo redacional. Vejamos o caso do Deuteronômio. No capítulo 34, último do livro, lemos assim: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés” (34,10). É óbvio que quem escreveu esse verso não foi o próprio Moisés. O texto fala de alguém do passado e foi redigido em terceira pessoa.
2. Logo no início do livro de Eclesiastes o leitor é informado a respeito do autor do texto: “palavras de Qohélet (Pregador ou Sábio, em algumas versões), filho de Davi, rei em Jerusalém” (1,1). Não é difícil notar que este verso veio da mão de um editor, interessado em retransmitir aos leitores as tais “palavras de Qohélet”. No final do livro (12,90), este mesmo editor ainda diz: “Além de ter sido sábio, Qohélet também ensinou o conhecimento...”.
3. Agora vejamos o Livro do Profeta Jeremias. Logo no primeiro verso do capítulo 1 um editor deixa claro que pretende expor as “palavras de Jeremias, filho de Helcias”. No v. 2 ele situa essas palavras no tempo: “nos dias de Josias...”. E acrescenta, no v. 3: “além disso, nos dias de Joaquim...”. Apenas no v. 4 o texto é redigido em primeira pessoa: “a palavra de Yahweh me foi dirigida nos seguintes termos”.
4. E o que dizer a respeito da autoria do livro de Provérbios "de Salomão". Veja que os capítulos 30 e 31 são atribuídos a indivíduos estrangeiros, como "Agur, filho de Jaces" (30,1) e "Lamuel, rei de Massá"(31,1). O mesmo ocorre com os Salmos, que recebem títulos relacionados a pessoas diferentes: Davi, Salomão, Asaf, Moisés, Hemã, os filhos de Coré. Mas a tradição gosta de repetir "Salmos de Davi". Somos sempre tentados a atribuir tradições que consideramos valiosas a figuras especiais.
5. Quando o texto é analisado mais de perto, com as ferramentas do método histórico-crítico, percebemos que ele é formado por muito mais camadas. Isso acontece porque na tradição literária dos antigos israelitas era comum reler e reinterpretar o texto à luz de novas situações. Os responsáveis pela produção do texto não eram historiadores, interessados em reproduzir friamente os fatos. Pretendiam, ao contrário, exercer o ofício de intérpretes da realidade, que era exercido não com as lentes da razão, mas com os olhos da fé sobre o chão da tradição.
Jones F. Mendonça
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