Quando colocados lado a lado, textos de Provérbios e
Eclesiastes - ambos classificados como textos sapienciais - revelam contrastes visivelmente
desconcertantes. Se por um lado Pv 14,11 diz convicto que “a casa dos ímpios será
destruída, a tenda dos homens retos prosperará” (Pv 14,11), Jó 21,7 lança
uma declaração pra lá de inquietante: “Por que os ímpios continuam
a viver, e ao envelhecer se tornam ainda
mais ricos?” (Jó 21,7). A comparação entre outros textos sapienciais revela
mais contrastes. Os sábios mais antigos, inclinados a perceber a
sabedoria como qualidade quase secular (Pv 30 e 31,1-9 tem autoria
estrangeira!) dão lugar a escritores que passam a vê-la como qualidade especificamente
religiosa e israelita (como em Eclo e Sab, livros deuterocanônicos do século II
a.C).
Buscando explicar a evolução da sabedoria israelita, José
Luis Sicre propôs quatro estágios:
1. Humanismo
internacional: caracterizado pela escrita voltada para a boa educação e
governo, é encontrada na Síria, na Mesopotâmia e no Egito, representada em
forma de provérbios, fábulas e poemas. Testemunhos da sabedoria estrangeira
aparecem, por exemplo, nas “Palavras
de Agur, filho de Jaces, o massaíta” (Pv 30) e nas “palavras de Lemuel, rei de Massá”
(Pv 31,1-9).
2. Sabedoria
israelita desde as origens até o século VI: Textos genuinamente israelitas.
O prólogo de Jotão (Jz
9,8-15), considerado como a crítica mais feroz ao sistema monárquico é um
exemplo de texto de sabedoria israelita mais antiga. Outros enfoques desse período, particularmente ligados à
corte, são: a) a sabedoria como dom que se pede a Deus (1Rs 3,1-14), b) o
governo do povo e a administração da justiça (1Rs 3,5-12.16-28), c) a
capacidade de tomar decisões adequadas como a construção do templo (1Rs 5,21),
d) o conhecimento enciclopédico (1Rs 5,9-14; 10,-19). São também desse período narrativas com conteúdo sapiencial, como
a história de José (Gn 37-) e trechos
do livro de Provérbios, principalmente os capítulos 10-29 (textos
marcados pelo otimismo/teologia da retribuição/exaltação de virtudes como a
modéstia e crítica a faltas como o orgulho).
3. Crise dos séculos V-III: Inserem-se
nesse período os livros de Jó
e Eclesiastes (Qohelet).
Estes livros põem em dúvida a validez dos resultados conseguidos por seus
antecessores e se distanciam de seu otimismo, daí a expressão “crise da
sabedoria”. Dessa crise brotam duas
formas de crítica: a) Crítica que
nasce da dor: Jó rejeita a teologia da retribuição de Elifaz (Jó 21,7
contra Elifaz em Jó 15,20-24) e faz questionamentos perturbadores em 21,34 e
9,22-24; b) Crítica que nasce da
falta de sentido da vida: O livro chega até mesmo a criticar a
sabedoria, declarando que “muita
sabedoria, muito desgosto; quanto mais conhecimento, mais sofrimento” (1,18).
Ver ainda Ecl 2,24;
3,12.22; 5,17; 8,15; 9,7-10. É
possível que esta crise tenha antecedentes remotos, como em Jeremias “Por que prosperam os
ímpios e vivem em paz os traidores?” (12,1) contrastando com textos do período anterior: “A casa dos ímpios será destruída, a tenda
dos homens retos prosperará” (Pv 14,11); “Na casa do justo há abundância, mas o
rendimento do ímpio é fonte de inquietação” (Pv 15,6). A experiência, grande
mestre da sabedoria, demonstra que possuir determinadas virtudes não garante o
sucesso.
4. Etapa final
(século II-): Nesta última etapa são incluídas duas obras: Eclesiástico (ou Sirácida) e Sabedoria de Salomão (apócrifos/deuterocanônicos).
A elas deve ser acrescentada uma parte de Provérbios (Pv 1-9). Três pontos se
destacam como especialmente interessantes neste período: a) Atitude ante a cultura grega (Sab 2,1-3); b) Importância crescente da história (Eclo 44-50); c) Personificação da sabedoria em três
fases: objeto de extremo valor (Jó 28); Mulher que fala em público (Pv
1-9); Personificação/metáfora/hipostase (Eclo 24; Sb 7,22-30). Nos livros
anteriores, a sabedoria é uma qualidade quase secular que não conhece
fronteiras nacionais; nestes últimos, toma-se uma qualidade especificamente
religiosa e israelita (ou judaica, considerando que essas obras são do século
II a.C.).
Jones F. Mendonça
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