domingo, 31 de outubro de 2021

JUBILAR UNIGENITUS DEI FILIUS

1. As 95 teses escritas por Lutero, em 31 de outubro de 1517, tiveram como foco principal a venda de indulgências, prática que se desenvolveu a partir da Bula Jubilar Unigenitus Dei Filius, assinada em 1343. Também conhecida como “bula extravagante”, o documento colocava a Igreja como herdeira dos “Tesouros de Cristo”, que poderia ser usado para livrar os fiéis de suas penas temporais, "sequelas de pecados a purificar".

2. Os teólogos entendiam que essas “penas temporais” eram eliminadas no purgatório, uma espécie de varanda sombria do céu. Diante desse remédio amargo, as indulgências se apresentavam como um caminho mais rápido e fácil contra as terríveis penas temporais. As indulgências podiam ser adquiridas de duas formas: 1) oferecimento de práticas penitenciais acompanhadas de orações; 2) doação de importância material à Igreja (“óbolo de São Pedro”).

3. Tais tesouros, também afirmava o documento, tinham o poder de livrar até mesmo as penas temporais devidas pelas almas que já se encontravam no purgatório. Bem, como o negócio estava rendendo uma grana forte à Igreja, a prática se popularizou, convertendo-se em uma grande fonte de arrecadação. Bebendo em Agostinho, apoiando-se nos humanistas, gozando do apoio dos príncipes, subindo nos ombros de John Wycliff e Jan Huss, Lutero mirou na rolinha e acertou um avião.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

BAAL NO TEMPLO DE JUDÁ

Publicado hoje no Haaretz (27/10/21):

Um fragmento de relevo encontrado em um santuário semelhante ao Templo de Salomão lembra uma divindade cananeia, sugerindo que o culto a imagens e a vários deuses estava bem vivo na Judá bíblica.

O objeto – encontrado na antiga comunidade de Motza, a 6 km de Jerusalém – pode ser apenas uma pedra desgastada de uma maneira que lembra um homem de pé. O arqueólogo que dirige a escavação, Shua Kisilevitz, sugere que seja um fragmento de relevo mostrando a representação de uma divindade da tempestade, como Baal.

 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O SOL “ME AVISTOU”, MEUS IRMÃOS “ME QUEIMARAM”

O livro Bíblico dos Cânticos dos Cânticos, no v. 6 do capítulo 1, traduzido literalmente, fica assim:
Não OLHEIS eu estar empretecida, foi o sol que me AVISTOU. Os filhos de minha mãe QUEIMARAM-SE contra mim.
É curioso que o texto não use o verbo “queimar” para indicar a ação do sol sob a pele da personagem, mas “avistar/ver” (שזף). A ideia talvez seja enfatizar a ação dos “filhos de sua mãe”. Estes sim, “queimaram-se” (חרר) contra ela.

A moça, coitada, foi obrigada por seus irmãos a guardar vinhas que não eram suas. Eram de fato uns “filhos da mãe”.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

CÂNTICO DOS CÂNTICOS: UMA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL

Sempre que leciono “poesia e sabedoria hebraica” no STBC, exijo dos meus alunos como tarefa avaliativa uma análise crítica da aula “O desejo e o erotismo em Cântico dos Cânticos: uma leitura histórico-social”, ministrada pelo prof. Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro. Faço isso por três razões: 1) a exposição, verso a verso, é algo fora da curva (não é mera repetição do que aparece nos manuais); 2) O prof. Osvaldo faz muitas provocações necessárias (e julgo que meus alunos precisam ser provocados); 3) Sua leitura histórico-social faz muito sentido.

Caso você tenha interesse em assistir a aula online, faça o seguinte:
  • Clique aqui para acessar a página da Faculdade Unida de Vitória;
  • Depois clique em “quero comprar” na arte que anuncia o curso (é de graça, exceto se você optar pela emissão de certificado);
  • Um quadrinho vai aparecer (acesso – sob demanda). Caso ainda não tenha uma conta, crie uma clicando em “ainda não possui conta, clique aqui” (em cinza, na parte inferior do quadrinho).


Jones F. Mendonça

ALEGORIAS E MAÇÃS DE OURO

1. A interpretação alegórica entrou no universo exegético judaico por influência da cultura grega. Ao que parece a ideia era tornar antigos relatos mitológicos, repletos de eventos absurdos à luz da razão, aceitáveis à racionalidade grega. Heródorus de Heraclea – autor de uma história sobre Hércules, no século IV a.C. – viu nas três maçãs de ouro que o herói obteve após matar o dragão como sendo uma alusão às três virtudes obtidas por meio da filosofia [1].

2. Fílon de Alexandria, inserido no ambiente helenizado, acompanhou os gregos no costume de atribuir aos textos antigos sentidos ocultos, vendo neles elementos simbólicos. O objetivo era o mesmo: tornar aceitáveis relatos repletos de elementos incompatíveis à razão. Ao explicar que os dias da Criação devem ser entendidos como simbólicos, Fílon usa e abusa de concepções platônicas e pitagóricas. Analogias com o número sete são um tanto curiosas. Veja:
Mas a natureza se delicia com o número sete. [...] sete são as secreções [do corpo]: lágrimas, muco do nariz, saliva, líquido seminal, os dois tipos de evacuação [urina e fezes], e o suor que sai de todas as partes do corpo (Interpretação Alegórica I, IV, 8).
3. Cristãos como Orígenes e Clemente de Alexandria embarcaram no mesmo “trem exegético”. As parábolas de Jesus, por exemplo (que não são alegorias, exceto as que foram reinterpretadas por Mateus), foram lidas como se cada elemento tivesse um significado especial, oculto aos “neófitos literalistas”. Aqui vai um exemplo: uma interpretação da parábola do bom samaritano, citada [neste caso, em tom crítico, dado seu exagero] por Orígenes em sua Homilia sobre Lucas, tinha não apenas um, mas vários significados. Os ladrões representam os demônios; o homem caído é a natureza humana, corrompida; o bom samaritano é Cristo; o animal de carga é o corpo de Cristo; a hospedaria é a Igreja; o taverneiro os apóstolos, etc. (Homilia 34).

4. O mais curioso é que o método ainda faz sucesso.

[1] EVANS, Craig A. The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2000, p. 426.


Jones F. Mendonça

domingo, 17 de outubro de 2021

LUTERO E AS ORDENS CELESTES

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero dedica algumas linhas para discutir a natureza dos querubins mencionados pela primeira vez em Gn 3,24. Ele não vê os querubins como sendo uma ordem específica na hierarquia angelical – serafins, querubins, tronos, domínios, poderes, principados, etc. – tal como pensava Pseudo-Dionísio areopagita. Por isso conclui: “ora, quem não vê que todas essas representações são nada mais nada menos do que vãs e fúteis invenções humanas?”.

Recorrendo a etimologias um tanto duvidosas, Lutero sugere que o termo “querubim” indica o aspecto jovial dos anjos, perceptível “nos rapazes e nas moças no desabrochar de suas idades”, dotados de “rostos rechonchudos e cheio de alegria”. É por isso – ele acrescenta – que os anjos “são representados em imagens como crianças”. O mesmo ele pensa em relação aos serafins (Is 6,2.6), que não seriam membros de ordem específica de anjos. O termo indicaria o aspecto “ardente e brilhante” das faces dos anjos ("serafim" vem do verbo hebraico "queimar": שרף).

Nesse sentido, os termos hebraicos “querubim” (כרבים) e “serafim” (שרפים) seriam adjetivos, empregados para destacar algumas qualidades dos anjos, como seu brilho, seu aspecto jovial, reluzente, glorioso, etc. A interpretação que Lutero faz do texto de Gênesis revela que mesmo abandonando a alegoria, sua exegese “literal”, “histórica” e “gramatical” deixa muito a desejar.


Jones F. Mendonça

sábado, 16 de outubro de 2021

LUTERO E O MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL

Em suas Preleções ao Gênesis, Lutero interpreta o “haja luz” de Gn 1,3 insistindo em seu sentido histórico e na necessidade de uma interpretação que leve em conta o aspecto gramatical simples do texto. Veja:
Moisés está aqui registrando fatos históricos [...]. Embora seja difícil descrever que tipo de luz era essa, ainda não estou inclinado a pensar que devemos nos afastar, sem motivo, da gramática simples.
O reformador rejeita as interpretações alegóricas que entendiam essa “luz” como sendo uma referência aos “anjos bons” e as “trevas” como indicação velada aos “anjos maus”. E assim conclui: “isto é brincar com alegorias”.

Apesar de reconhecer que essa “luz” não poderia ser o sol, criado somente no quarto dia, Lutero insiste que “essa luz era móvel” e que “girava em um movimento circular” tal como imaginava ser o trajeto do sol ao redor da terra, marcando um período de 24 horas.

O reformador foi influenciado pelos exegetas de Antioquia, por comentaristas judeus (ambos rejeitavam a alegoria), por Nicolau de Lira e pelos pensadores humanistas. Em relação a Lira, ele comenta:
É por esse motivo que sou tão favorável a Lira e, de bom grado, classifico-o entre os melhores comentaristas. Ele sempre obedece e segue cuidadosamente a história.
A centralidade do comentário de Lira para os pensadores da Reforma foi homenageada em ditados latinos como, ‘‘Si Lyra non lyrasset, Luther non saltasset ’’ (Se Lira não tivesse tocado, Lutero não teria dançado). Lutero certamente não foi o inventor do método que hoje chamamos de histórico-gramatical, mas em seus textos há clara ênfase nos aspectos históricos e gramaticais do texto.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

A VIOLAÇÃO DO SÁBADO EM NM 15


A imagem acima ilustra o episódio narrado em Nm 15,32-36: 1) um homem (camisa verde, ao fundo), segue em direção a uma árvore; 2) Violando o sábado, ele a derruba para coletar lenha; 3) Como consequência é apedrejado pela comunidade.

Um detalhe curioso: a disposição da cena feita pelo artista parece ter se inspirado nas representações cristãs da cena da flagelação de Cristo, que exibem o Nazareno sendo açoitado com as mãos atadas a um tronco/coluna.

A imagem aparece impressa na Bíblia Hebraica Poliglota, publicada em 1665. O projeto British Library Labs está disponibilizando o manuscrito gratuitamente para download aqui:



Jones F. Mendonça

terça-feira, 12 de outubro de 2021

ASSUR, JAVÉ, CHUVA DE FOGO E GRANIZO

A Bíblia Hebraica apresenta Javé punindo seus inimigos com fogo, granizo e enxofre em diversas ocasiões. Sodoma e Gomorra, por exemplo, são destruídas após uma chuva de “enxofre e fogo” (Gn 19,24). Em Ez 38,22 a terra de Gog é ameaçada pela ira divina com uma “chuva torrencial de pedras de granizo, fogo e enxofre”. Usando um querubim como montaria, Javé dispersa seus inimigos com “granizo e brasas de fogo” em 2Sm 22,13. As “chamas de fogo” e o “granizo” reaparecem no Sl 105,32 e em Is 30,30. Um oráculo de salvação neo-assírio também incorpora alguns desses elementos:
Eu [Assur] ouvi seu clamor [de Esarhaddon].
Saí como um brilho ardente do portão do céu,
para lançar fogo e devorá-los.
Estavas no meio deles,
por isso retirei-os da tua presença.
Eu os levei montanha acima
e choveu pedras (granizo) e fogo do céu sobre eles.
Matei seus inimigos
e enchi o rio com o sangue deles.
Que eles vejam (isso) e me louvem,
(sabendo) que sou Assur, Senhor dos deuses (SAA, 24).
O texto aparece na obra identificada pela sigla SAA, cuja descrição completa é: PARPOLA, Simo. Assyrian Prophecies: State Archives of Assyria, vol. 9. Helsinki, Finland: Helsinki University Press, 1997. O autor é um respeitado assiriólogo finlandês. 

Jones F. Mendonça

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A BÍBLIA HEBRAICA E A LITERATURA DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

Tenho reservado o pouco tempo disponível para ler e analisar a produção literária dos povos vizinhos de Israel, como Egito, Assíria, Babilônia e Ugarit, na Síria. Tais textos foram traduzidos e podem ser encontrados em muitas obras – a maioria em inglês e alemão. Quem estiver interessado em conhecer este material e algumas de suas relações com a cultura preservada pelo Antigo Israel na Bíblia Hebraica (BH), encontrará uma boa antologia de textos aqui:
PRITCHARD, James B. (edit.). Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Princeton: Princeton University Press, 1969.
A obra aparece na literatura especializada pela sigla ANET e consiste em uma coleção de mitos, contos, crônicas reais, orientações ritualísticas, encantamentos, textos mortuários, cartas reais, preceitos legais, oráculos proféticos e textos de natureza sapiencial, como provérbios e lamentos de um justo que sofre (semelhantes ao de e aos Salmos 22 e 38).



Jones F. Mendonça

O QUE É O “CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL” EM GN 3,5?

Em Gn 3,5 a serpente diz à mulher que o fruto da “árvore do conhecimento do bem e do mal” dará a ela (e ao homem) o poder de “ser como os deuses, versados no bem e no mal” (ou "no certo e do errado"). A serpente dizia a verdade, pois no v. 22 Javé declara: “o homem já é como um de nós, versado no bem e no mal”. Mas o que significa “ser versado no bem e no mal”?

2Sm 14,17.20 pode lançar uma luz sobre o problema. Uma mulher sábia de Técua diz o seguinte a Davi: “meu rei é como o anjo de elohim (כמלאך האלהים) para discernir o bem e o mal”, afinal ele tem “a sabedoria de um anjo de elohim”. Ao que parece a capacidade dada pelo fruto proibido foi a de avaliarperceberdecidir com justiça.

Repare que no relato de Gênesis homem e mulher recebem a sabedoria para julgar, mas não a vida eterna: “que agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!” (3,22). No mito de Adapa – o primeiro homem criado – algo semelhante acontece. Adapa recebe de Ea a sabedoria, mas não a vida eterna:

Para ele [Adapa], ele [Ea] deu sabedoria,
a vida eterna que ele não lhe deu (ANET, 102).

No segundo relato bíblico da criação (não sacerdotal) essa sabedoria, esse conhecimento, é visto de forma negativa, como uma espécie de busca por autonomia em relação a Javé.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

A SABEDORIA E A INSENSATEZ EM PROVÉRBIOS

1. O capítulo 9 do livro bíblico de Provérbios apresenta a “Sabedoria” e a “Insensatez” de forma personificada. A primeira constrói uma casa, prepara uma mesa farta e convida os ingênuos e os sem juízo a se alimentarem de seu banquete. No v. 6 deixa um conselho: “Deixai a ingenuidade e vivereis; segui o caminho da inteligência”.

2. A partir do v. 13 a “Senhora insensatez” também faz seu discurso. Ela se assenta à porta da casa e chama os que seguem pelo caminho reto: “venham cá, tolinhos, quero falar com vocês, seus desmiolados” (v. 16). Quando se aproximam ela diz assim: “a água roubada é mais doce e o pão escondido é mais saboroso” (v. 17).

3. Esses que passam pela rua e que caem em sua conversa são os ingênuos, pessoas de “cabeça fraca”. No v. 18 a Sabedoria faz um alerta aos que seguem os conselhos da Senhora insensatez: “não sabem que em sua casa estão os rephaim e seus convidados no fundo do Sheol”. A imagem evocada no final do capítulo é pra lá de sinistra (ela reaparece em 2,18).

4. O termo hebraico “rephaim” (plural de rapha’) era usado para indicar o aspecto sombrio, fantasmagórico, dos habitantes do mundo dos mortos, o Sheol. A mensagem final basicamente é esta: “não caia na conversa mole da Senhora Insensatez: sua casa está apinhada de mortos e suas paredes ocultam o alçapão dos infernos”.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

SOB A SOMBRA DE SHADDAY

Na linguagem do Antigo Oriente Próximo, estar sob a sombra de uma divindade equivalia a estar sob sua guarda. O rei assírio Esarhaddon (680-669), certo da proteção recebida dos deuses, declara o seguinte:
[Os deuses] puseram-me em um esconderijo diante dessas maquinações malignas, espalhando sua doce sombra protetora sobre mim, preservando-me para a realeza (ANET, 289).
Na Bíblia Hebraica a sombra tem o mesmo sentido: “Não tenhais medo do povo daquela terra, [...] pois foi removida a sua sombra (צל)” (Nm 14,9). A metáfora reaparece no Sl 121,5, desta vez em relação ao deus de Israel: “Javé é teu guarda, Javé é tua sombra (צל)”. O texto mais famoso, no entanto, surge no Sl 91,1:
Aquele que se assenta no esconderijo de Elyon,
pernoita à sombra (צל) de Shadday.
No caso do Sl 91 esse “esconderijo”, essa “sombra” evocam a imagem de uma ave protegendo seus filhotes sob suas asas, como fica claro no v.4:
Ele te esconde com suas penas,
sob suas asas encontras um abrigo.
A mesma imagem aparece em Dt 32,11, texto que apresenta Javé como uma águia velando por seu ninho. Há quem sugira, como Alonso Schökel (Comentário aos Salmos II), que o as “asas” mencionadas no v. 4 fazem alusão aos querubins com suas asas estendidas sobre a arca da aliança. Ocorre que os querubins não protegiam os fiéis, mas a santidade de Javé. Assim, parece que faz mais sentido pensar em alusões mais evidentes, já presentes em outros textos, como estar sob a sombra (Nm 14,9; Sl 121,5; 91,1) ou, de maneira mais visual, sob as asas de uma ave (Dt 32,11; Sl 91,4).

 

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

PREPÚCIOS, ARTE E DEVOÇÃO


A ideia do artista que pintou esta tela era retratar o texto bíblico de 1Sm 18,27, mas por alguma razão trocou os “indecentes” prepúcios por cabeças. Eis a fonte da imagem: “A Bíblia dos cruzados, c. 1240, MS. M. 638, f. 30 R”.

Embora ocultado na representação medieval acima, o prepúcio aparece de forma bem evidente nos escritos de Catarina de Siena, que comenta em uma de suas cartas seu noivado com Jesus, selado não “não com um anel de prata, mas com uma aliança feita com sua própria carne sagrada” [1].

Nota:

[1]GLICK, Leonard B. Marked in your flesh: circuncision from Ancient Judea to modern America. Oxford: Oxford university Press, 2005, p. 97.

 

Jones F. Mendonça

domingo, 26 de setembro de 2021

DEUS EM TRABALHO DE PARTO

Um caso raro, presente em Is 42,14, descreve Javé como uma mulher ofegante em trabalho de parto (fiz minha própria tradução):
Calei-me por muito tempo,
Fiz silêncio, contive-me;
Como a parturiente gritei ofegante,
suspirei longamente.
Quando isolado, o texto parece sugerir passividade. Mas esse silêncio, essa dor e essa agonia contida explodem no verso seguinte:
“Assolarei colinas e montes,
e toda a vossa erva farei secar;
Converterei torrentes em ilhas (*)
e lagos em sequidão".
(*) A imagem que o texto parece evocar é a de um rio que após ter seu volume d'água reduzido exibe partes de seu leito em forma de ilhas. 



Jones F. Mendonça

sábado, 25 de setembro de 2021

AVRAM, AVRAHAM, AV-HAMON


Muita gente repete por aí que o nome “Abraão” (Avraham) significa “pai de muitas nações”. Mas isto não é certo. Na verdade, o texto destaca a semelhança fonética entre o nome Avraham (que significa “pai de raham”) e a expressão “pai de muitos”. Veja:

“Não mais serás chamado Avram (אַבְרָם), mas Avraham (אַבְרָהָם) será o teu nome; pois por av-hamon (אַב־הֲמוֹן = “pai de muitos”) povos te hei posto” (Gn 17,5).

Assim, se alguém perguntasse: “por que o patriarca Avram teve seu nome mudado para Avraham’”? A resposta seria: “porque ele é ‘av-hamon’, ou seja, ‘pai de muitos’”. Sei que isso parece não ter muito sentido para uma mente moderna, mas as etimologias populares faziam muito sucesso entre os hebreus.

  

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

SOBRE OS NOMES BÍBLICOS

A origem dos nomes de todos os filhos de Jacó foram explicados tardiamente a partir de etimologias populares. No caso de José duas explicações foram colocadas na boca de Raquel: 1) Ele se chamou José (Yossef) porque “Deus removeu (assaf → אסף) minha vergonha” (Gn 30,23) e 2) Ele se chama José porque deu-me (yassaf → יסף) o Senhor outro filho” (Gn 30,24).

O mesmo acontece com Jacó (Yaakov → יעקב), que tem seu nome associado ao “calcanhar” (‘aqev → עקב) de Esaú e ao fato de tê-lo “enganado” (‘aqav → עקב). Tais histórias (Gn 25,26; 27,36) obviamente não possuem qualquer fundamento histórico. Não receberam esses nomes no momento do nascimento por mera associação a eventos inusitados, mas porque a criatividade popular assim quis.  Muitos desses nomes já existiam em outras regiões. Não foram inventados pelos hebreus. 

 

Jones F. Mendonça

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O APÓLOGO DE JOATÃO E A HISTÓRIA DE DEBORAH: SOBRE ÁRVORES QUE FALAM

Jz 9,8-15 registra uma fábula na qual um grupo de árvores discute a respeito de quem deverá reinar sobre elas. A oliveira demonstra-se pouco interessada, uma vez que teria que abandonar a produção de seu azeite, alimento “que tanto honra os deuses e os homens” (v. 9). A figueira usa um argumento semelhante: “Iria eu abandonar minha doçura e o meu saboroso fruto, a fim de balançar-me por sobre as árvores?” (v. 11). O convite também é estendido à videira, que recusa a oferta em nome da alegria produzida por seu vinho (v. 13).

Na ausência de uma árvore nobre, finalmente fazem o convite ao espinheiro, que prontamente aceita reinar sobre todas as árvores, acolhendo-as sobre sua sombra (v. 15). Mas faz um alerta às árvores que não se sujeitarem a seu governo: “sairá fogo dos espinheiros e devorará os cedros do Líbano”. Um exemplo de fábula com árvores falantes aparece em um antigo texto acadiano intitulado: “A disputa entre a tamargueira e a tamareira”. Na fábula, de caráter didático-sapiencial, as duas árvores apresentam suas virtudes na tentativa de provar quem é a mais valiosa.

 Dois trechos chamaram a minha atenção:

“O rei em seu palácio planta tamareiras,
além disso, da mesma forma, tantas tamargueiras.
À sombra da tamargueira foi organizado um banquete.
À sombra da tamareira a decisão sobre um crime...”
“Plantou ao seu lado a tamareira [dizendo],
“Se [você estiver] no portão da cidade, acalme a contenda;
se estiver no deserto, acalme o calor” (ANET, p. 411).
Aqui, como em Jz 4,5, era à sombra de uma palmeira que as disputas judiciais eram resolvidas: “Ela tinha a sua sede à sombra da palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim, e os filhos de Israel vinham a ela para obter justiça”. Mas há algo estranho nesse texto: a presença do pronome “ela” (הִיא) no início da frase é desnecessário. Ao que parece a camada mais antiga do texto falava de uma mulher anônima (ela) que julgava as causas do povo ou anunciava oráculos “na palmeira de Deborah”.

Um segundo problema: as árvores também funcionavam com local sagrado para a adivinhação (Jz 9,37), como locais de aparição (Gn 18,1), de sepultamento (Gn 35,8) e de culto (Js 24,26) e, talvez, de consulta aos mortos. Ao mesmo tempo em que é apresentada como alguém que “julgava” (שֹׁפְטָה), para que por meio dela fosse obtida a “justiça” (לַמִּשְׁפָט), a personagem também atua como “profetiza” (נְבִיאָה). Ela estaria ali “julgando” ou anunciando um oráculo divino? Seu nome era mesmo “Deborah” ou ele possui relação com o local do sepultamento da ama de leite de Rebeca, enterrada aos pés de uma árvore em Betel, o "carvalho dos prantos" (cf. Gn 35,8)?

Talvez o relato presente em Gn 35,8 tenha a função de explicar a razão do "carvalho dos prantos" – o "carvalho de Deborah" – ainda frequentado, na época do redator, por pessoas que lamentam a perda de um ente querido ou, mais especificamente, de ocultar sua verdadeira função como local de consulta aos mortos. Neste caso seria necessário explicar como o "carvalho dos prantos" de Gn 35,8 se converteu em "palmeira de Deborah" em Jz 4,5. Essa questão suscita outra pergunta: será que a tradução de "tomer" (תֹּמֶר) por "palmeira" está correta? 

 

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

GERSOM, O PEREGRINO

Após se retirar para Midiã fugindo de Faraó, Moisés parou junto a um poço. Lá defendeu sete moças, filhas de Raguel (ou Jetro), que estavam sendo importunadas por alguns pastores. Quando retornaram para casa contaram ao pai o acontecido. Raguel não perdeu tempo: “vocês deixaram esse homão partir?!”. Obedientes, as moças trouxeram Moisés, que se casou com Zípora. Depois ela engravidou. O nome do filho: “Gersam” (Ex 2,22). A razão de ter recebido este nome aparece logo adiante: “porque era um “ger” (“peregrino”, em hebraico) em terra estrangeira”. Não entendeu? Ele se chamou Gersom porque Moisés era um “ger” em terra estrangeira. Simples assim. 



Jones F. Mendonça

SODOMA E O IMPACTO DO COMETA

Acabei sabendo, via Paleojudaica, que um artigo publicado na Nature aponta como razão para a destruição de uma cidade ao sul do Mar Morto (Tall el-Hammam), em 1650 a.C., a explosão, no ar, de um meteoroide ou fragmento de cometa, tal como aconteceu na cidade de Tunguska, Rússia, em 1908. Em fenômenos dessa natureza não há formação de cratera no solo. Embora não tenha como foco eventos citados na Bíblia, o artigo levanta o seguinte questionamento: “consideramos se as tradições orais sobre a destruição desta cidade urbana por um objeto cósmico podem ser a fonte da versão escrita sobre Sodoma no Gênesis”. Leia o artigo completo aqui. Leia também no JPost

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A TERRA É PLANA... E QUADRADA

Zé Bobinho é dessas pessoas tontas que paga para assistir aula de filosofia no YouTube ministrada por professor sem diploma e sem juízo. Certo dia, absorto em suas reflexões sobre a planicidade da terra, lembrou-se de que o profeta Ezequiel menciona “os quatro cantos da terra” (Ez 7,2). Pensou com seus dois neurônios: “a terra, além de plana, é quadrada”. Um amigo, depois de acurada investigação, disse ter descoberto que o céu também é plano e quadrado. A revelação teria vindo de Jr 49,36: “Trarei sobre Elam quatro ventos, dos quatro cantos do céu” (Jr 49,36). Agora quer descobrir em que canto fica o trono divino 😉

 

 Jones F. Mendonça

domingo, 19 de setembro de 2021

AS MUITAS FACES DA TENTAÇÃO

A cena da tentação de Jesus no deserto foi retratada de diversas formas. Em boa parte delas o capiroto aparece representado com aspecto animalesco. Mas nesta, produzida por Juan de Flandes (1500/1504), ele tem a aparência de um sacerdote franciscano. Repare que sua mão direita segura algumas contas de rosário. As únicas indicações de sua natureza maligna aparecem nos pés (de pato!) e nos chifres (ou talvez seja um disfarce, afinal os chifres também aparecem associados a Moisés).



Jones F. Mendonça

A TENTAÇÃO DE JESUS: PEDRAS OU POMBOS?

Esta gravura, pintada num manuscrito do século XV (The Mirror of Human Salvation) mostra Cristo sendo tentado em três cenários distintos: 1) No deserto (Mt 4,3); 2) No pináculo do Templo (4,5); 3) Num monte (4,8). Algo que chamou a minha atenção: as pedras nas mãos do capiroto não lembram dois pombinhos? Isso sem falar na postura de Jesus, que parece ensaiar um golpe de artes marciais.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

A BÍBLIA PELAS JANELAS


No Gênesis, Noé abriu a janela, soltou um pássaro, alimentou a esperança por dias melhores (Gn 8,6). Abimeleque, rei de Gerar, viu da janela Isaque amando Rebeca (26,8). Raabe livrou na janela dois espias da morte (Js 2,15). A mãe de Síssera, pela janela, pressentiu o fim de seu filho em combate (Jz 5,28). Mical desprezou da janela o Davi seminu dançando em êxtase (2Sm 6,16). Jezabel, com olhos pintados e cabeça enfeitada, olhou da janela o chão sobre o qual expirou (2Rs 9,30). Jeremias viu a morte escalando janelas para devorar os filhos de seu povo (Jr 9,21).

Na Bíblia Hebraica, as janelas anunciam esperança, paixão, tristeza, desprezo, arrogância, morte.


Jones F. Mendonça

 

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

SOBRE POESIAS CONCRETAS

Uma tradução bem literal de Lamentações 2,1, com toda a concretude da poesia hebraica, fica assim:

    Esgotam-se as lágrimas dos meus olhos
    meu intestino ferve,
    derrama-se pela terra o meu fígado.

Na Bíblia Versão Transformadora os “olhos” desaparecem, o “intestino” dá lugar ao “coração” e o “fígado” ao “espírito”. Veja:

    Chorei até que não tivesse mais lágrimas;
    meu coração está aflito.
    Meu espírito se derrama de angústia.

O tradutor troca as palavras para que o texto se torne mais claro ao leitor. Não implico com essa adequação. Mas que fica feio, ah, fica.



Jones F. Mendonça

QUANDO A FALA ATINGE AS ENTRANHAS

“Falar ao coração” (וידבר על לב), no hebraico do Antigo Testamento, é falar às entranhas, ou seja, ao íntimo. A expressão indica uma fala que convence, que agrada, que seduz. Siquém “fala ao coração” de Diná, mulher por quem se afeiçoou, em Gn 34,3. José “fala ao coração” de seus irmãos, convencendo-os de que não lhes fará mal, em Gn 50,21. Em Jz 19,3 um homem “fala ao coração” de sua concubina a fim de convencê-la a retornar aos seus braços. Isaías “fala ao coração” de Jerusalém, anunciando o fim do exílio, em Is 40,2. Em Oseias o “falar ao coração” se relaciona ao encontro divino com Israel no deserto:

“Por isso, eis que vou, eu mesmo, seduzi-la,
conduzi-la ao deserto,e falar-lhe ao coração” (Os 2,14).



Jones F. Mendonça

DELACROIX E OS ANJOS DO GETSÊMANI


Eugène Delacroix, um dos gigantes da pintura francesa, exibe nesta tela Jesus no Monte das Oliveiras. Embora tenha por título “A agonia do jardim” (1824-26), uma vez que os evangelhos situam no Getsêmani os últimos momentos do Nazareno  antes de ser preso e crucificado, seus gestos expressam coragem. Jesus parece dizer aos anjos: “deixem-me, preciso fazer isso sozinho”. 



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

TINTORETTO E A ÚLTIMA CEIA


Esta tela de Tintoretto (A última ceia: 1592-94) possui características únicas. O jogo de sombras é feito a partir de dois pontos de luz: a auréola de Jesus e a luminária à esquerda. Observe que ele representa a cena numa perspectiva diagonal totalmente inédita, que é enriquecida com personagens complementares em primeiro plano. É mais ou menos como se um fotógrafo retratasse um casamento e desse destaque aos garçons. O artista – também conhecido como Il furioso – é um dos grandes nomes do maneirismo, movimento artístico que expressa novos valores estéticos, distanciando-se dos cânones do período renascentista.

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 24 de agosto de 2021

OS BATISTAS

1. Assim que tomou conhecimento da ruptura de Lutero com a Igreja, um diabo sentado na orelha de Henrique VIII, rei da Inglaterra, começou a cochichar tentações. Como não tinha vocação para asceta, deixou-se levar pelos conselhos: rompeu com o Papa, apropriou-se das terras da igreja e inventou sua própria versão do cristianismo, a igreja anglicana. Sua decisão foi aprovada pelo parlamento, que pelo Ato de Supremacia elevou o rei ao status de chefe da Igreja da Inglaterra. De quebra casou-se com Ana Bolena.

2. Mas o protestantismo carregava em seu DNA o germe da dissidência. Não demorou e um grupo separatista cismou de não aceitar essa coisa de ter um rei humano como líder supremo da Igreja. Destacam-se nesse movimento os puritanos. O pensador político e historiador francês Alexis de Tocqueville chegou a dizer que “o puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa, mas correspondia em muitos pontos às mais absolutas teorias democráticas e republicanas”. Acha um exagero? Tudo bem, vamos chamá-los de “protodemocratas”, como preferia J. Miller.

3. Os batistas, membros da denominação protestante surgida no século XVII, acolheram com força essas ideias democráticas puritanas. Levavam a sério essa coisa de “liberdade de consciência”. Thomas Helwys, um dos fundadores da denominação, rejeitava veementemente que o rei interferisse nos assuntos da igreja. Seu espírito de tolerância certamente deixaria muitos batistas modernos no chinelo. Palavras dele: “que haja, pois, heréticos, turcos ou judeus, ou outros mais; não cabe ao poder terreno puni-los de maneira nenhuma”. Isso no século XVII!

4. Bem, o tempo passou. Muitos batistas foram podando seus galhos mais viçosos em um processo lento e contínuo. Assim, é com imenso desprazer (mas não com espanto) que vejo batistas participando desse movimento que está aí: espírito antidemocrático, intolerante, intoxicado com uma boa dose do rigorismo puritano, raiz podre do movimento. 


Jones F. Mendonça

O AFEGANISTÃO EM 5 PONTOS CURTOS

1. O elemento chave para se compreender a origem do radicalismo islâmico NO AFEGANISTÃO (*) deve ser buscado em 1979, ano em que os estadunidenses foram enxotados da sua embaixada em Teerã, após o sucesso da revolução islâmica.

2. O Afeganistão era governado por comunistas aliados da União Soviética, que assumiram o poder em 78, após um golpe de Estado. Mas a imposição do comunismo goela abaixo acabou suscitando uma rebelião maciça, apoiada pela religião, o islamismo.

3. Redes islâmicas com características heterogêneas, mas unidas por laços muito fortes e inspiradas na revolução iraniana, apelaram à jihad islâmica com o objetivo de expulsar os invasores infiéis. A luta era percebida como uma reafirmação de identidade perante a descaracterização cultural imposta pelos comunistas.

4. Em 79 o exército vermelho invadiu o país precipitando uma resistência maciça dos afegãos. É neste momento que nascem os famosos mujahidins, grupos militantes armados. Os mujahidins, tal como conhecemos, surgem como reação à intervenção soviética.

5. Os EUA entram depois, armando esses grupos contra seus rivais soviéticos. Assim, podemos dizer que a União Soviética criou o monstro e os EUA lhe forneceu os dentes. É, portanto, filhote de duas bestas...

* O fundamentalismo islâmico nasceu no Egito, pela iniciativa dos Irmãos Muçulmanos, após a Primeira Guerra Mundial e o colapso do império turco-otomano.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

SOBRE A “TEOLOGIA NEGRA”


1. Caso você dê uma pesquisada rápida no Google, vai encontrar livros produzidos pela teologia ortodoxa protestante com os mais diversos títulos: teologia da glória, teologia da cruz, teologia da Reforma, teologia sistemática, teologia Imago Dei, teologia disso, teologia daquilo...

2. São, todas elas, teologias “de cima”, ou seja, estão interessadas em esmiuçar os atributos divinos, em produzir formulações teológicas capazes de exprimir com a maior exatidão possível a natureza das coisas celestes. Esse tipo de obsessão esteve na mira dos teólogos por cerca de dois mil anos.
 
3. Na segunda metade do século XX um grupo de pastores negros resolveu produzir o que mais tarde foi denominado “teologia negra”, ou seja, refletiram sobre a perversidade que é o racismo e sobre como as Escrituras podem contribuir para combater este mal (certamente será uma leitura seletiva, como são todas as outras). Não raro são ouvidos protestos como “não precisamos de uma teologia negra, mas de uma teologia bíblica”.
 
4. A teologia negra tem data de nascimento: 31 de julho de 1966. Na época os ortodoxos que adoravam formulações teológicas impecáveis – como a Convenção Batista do Sul dos EUA – apoiavam a escravidão e os proprietários de escravos. A retratação e as declarações de arrependimento só vieram em julho de 1995!

5. A ortodoxia racista tem memória curta (e arrependimento tardio).
 
Imagem: O Comitê Nacional de Homens da Igreja Negros comprou um anúncio de página inteira no The New York Times para publicar seu "Black Power Statement", propondo uma abordagem mais agressiva para combater o racismo usando a Bíblia como inspiração.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A TEOLOGIA COMO PATOLOGIA

1. Durante quase dois mil anos, boa parte dos teólogos cristãos justificaram o sofrimento dos judeus a partir da leitura das Escrituras. A lista começa no século II, com Irineu e Tertuliano. No século IV é repetida por Cirilo, bispo de Jerusalém, segue com Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho.

2. No decorrer da Idade Média o pensamento se manteve o mesmo: judeus estão pagando pela crucificação de Cristo (gostavam de citar Mt 27,25). Lutero, no século XVI manteve o velho e perverso antijudaísmo, visível, por exemplo, em seu texto “Os judeus e suas mentiras”, publicado em 1543. Não demorou e esse antijudaísmo se converteu em racismo, em antissemitismo.

3. A primeira manifestação positiva que conheço em relação aos judeus veio do avô presbiteriano do ex-presidente estadunidense George W. Bush. Em 1844 ele publicou um curioso livro intitulado “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”. A obra pode ser encontrada na Amazon ao custo de US$23,90.

4. George Bush (avô) era um restauracionista. A obra defendia – antes mesmo da criação do sionismo(!) – o retorno dos judeus à terra de Israel. Acreditava que na Terra Santa boa parte dos judeus se converteria ao cristianismo. Outro texto importante veio de Karl Barth: “A questão dos judeus e sua resposta cristã”, de 1949.

5. Até o século XIX todos faziam coro dizendo: “judeus estão pagando pela crucificação de Cristo”. Depois disso a coisa se inverteu: “o exército de Israel é o exército de Deus”. Ontem usavam e abusavam das Escrituras para justificar a dor e o sofrimento dos judeus. Hoje é abusada e usada para justificar seu triunfo (e a derrota dos muçulmanos!). Trata-se de uma teologia bipolar, doentia.

6. A pergunta que se impõe diante de nós, hoje, é: que tipo de pessoas os "teólogos" da atualidade estão ferindo, lançando na lama da agonia, no sheol do desespero, em nome das "Santas Escrituras"? A lista não seria pequena...

 

 Jones F. Mendonça

quarta-feira, 21 de julho de 2021

“RUTZ”, O VERBO CASAMENTEIRO

O verbo hebraico “rutz” (רוץ = correr) aparece dez vezes no livro bíblico de Gênesis. Em seis desses dez casos ele surge associado aos casamentos de Rebeca (4 vezes) e Raquel (2 vezes). Veja:

REBECA1) o servo de Abraão corre ao encontro de Rebeca para lhe pedir água (24,17); 2) Rebeca corre em direção ao poço para obter água (24,20); 3) Rebeca corre para anunciar à sua família que o servo é um enviado de seu parente (24,28); 4) Labão, irmão de Rebeca, corre para recepcionar o servo de Abraão (24,29);

RAQUEL 5) Após ser beijada por Jacó, Raquel corre para anunciar a seu pai, Labão, o encontro que teve com Jacó, seu primo (29,12); 6) Labão corre  ao encontro de Jacó para encontrá-lo e acolhê-lo em sua casa (29,13).

O que parece todos tinham muita pressa para casar. :)



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 12 de julho de 2021

"LEGEND OF DESTRUCTION": UM FILME SOBRE A 1ª GUERRA JUDAICA



A cidade de Jerusalém no tempo de Jesus era uma região muito instável. As sucessivas humilhações diante do poderio das nações estrangeiras – Assíria, Babilônia, Pérsia, Macedônia e Roma – deixava grupos judaicos mais piedosos com os nervos à flor da pele, esperançosos e ansiosos pela intervenção divina em favor de seu povo, realizada pela ação de seu Messias, o Ungido. Em 66 d.C. uma grande revolta judaica se impôs contra as tropas imperiais romanas. Roma reagiu com força e enviou seus soldados a Jerusalém, que a sitiaram. A revolta foi esmagada em 08 de setembro do ano 70 pelas legiões romanas comandadas pelo general Tito. Você poderá ver tudo isso e muito mais em “Legend of Destruction”, o novo filme de Gidi Dar.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 28 de junho de 2021

ISRAEL FINKELSTEIN E AS TRADIÇÕES DO NORTE

Neste vídeo, o arqueólogo israelense Israel Finkelstein fala sobre o Reino do Norte no contexto do século VIII a.C., época em que são situados reis como Jeroboão II e profetas como Amós e Oseias. O século VIII também é marcado pela invasão assíria, que conquista Samaria e cobra tributo a Acaz, rei de Judá. O arqueólogo vê nas narrativas heroicas presentes no livro de Juízes, na história de Jacó, nos traços positivos atribuídos ao rei Saul e nos ciclos de Elias e Eliseu elementos que os ligam ao Norte. Uma das perguntas que Finkelstein busca responder é a seguinte: como e quando as tradições do Norte foram incorporadas às tradições do Sul? Ah, uma informação importante: embora o áudio esteja em inglês, é possível adicionar legendas em português. Assista a todos os vídeos aqui.


Jones F. Mendonça



MÁRIO LIVERANI E O ÊXODO

1. Na opinião de Mário Liverni o Êxodo possui um fundo histórico que pode ser rastreado, por exemplo, em trechos mais antigos do livro do profeta Oseias que ele data para o século VIII: “Efraim [Israel do Norte] voltará para o Egito, na Assíria comerão alimento impuro” (Os 9,3). A Assíria aqui, segundo Liverani, aparece como um “Novo Egito”. No passado estiveram sob controle egípcio; agora serão subjugados pelos assírios. Guarde isso.

2. A memória preservada por Oseias, para Liverani, não diz respeito à narrativa do Êxodo tal como conhecemos: saída sob a liderança de Moisés com sinais e prodígios, etc. Embora diga que Javé tenha usado um profeta (נביא) para tirar Israel do Egito (Os 12,13), nenhuma menção ao nome de Moisés, aos sinais miraculosos, ao Mar Vermelho, ao Sinai aparecem no texto. O assiriólogo entende que Oseias apenas está fazendo menção à época em que Israel vivia sob controle egípcio na Canaã no período do Bronze recente (algo que está bem documentado).

3. O autor cita textos – como as Cartas de Amarna – que empregam expressões como “fazer sair”, “fazer voltar”, “fazer vir” (ele chama de “código motor”), como indicação de libertação da influência de uma potência estrangeira. A narrativa do Êxodo, tal como a conhecemos, seria o resultado de reelaborações (séculos VII ao V), com a finalidade de legitimar a pose da terra, na medida em que a “Saga dos Patriarcas” fornecia uma legitimação insuficiente, situada em um passado muito remoto, sem jamais mencionar a posse de toda a terra, mas apenas de alguns lugares símbolo, como túmulos e árvores sagradas.

4. Assim, a narrativa do Êxodo, somada à narrativa da conquista armada, sob a liderança de Josué, cumpriria o papel de legitimar de forma mais contundente a posse da terra. Você lê a exposição completa do assunto em “Para além da Bíblia”, de Mario Liverani (Loyola, 2008, p. 339-343).

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de junho de 2021

MÁRIO LIVERANI E AS 12 TRIBOS DE ISRAEL

Mario Liverani reserva uma seção de seu “Para além da Bíblia” para falar sobre as doze tribos de Israel. Inicialmente o assiriólogo italiano destaca o caráter artificial do número doze, rejeitando, por exemplo, a tese da anfictionia de Martin Noth (seguida por von Rad), que supôs um modelo de organização tribal semelhante ao que existiu nas antigas sociedades gregas e itálicas.

Evidências desse caráter artificial poderiam ser facilmente percebidas a partir de uma análise atenta às diversas listas tribais – com quantidades e nomes diferentes – extraídas de alguns textos. Veja:

 ·  Jz 5 (Cântico de Débora) → 10 tribos (séc. IX): Efraim, Makir, Benjamim, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gile’ad, Dan, Asher e Neftali;

 · Dt 33 (Bênçãos de Moisés A) → 10 tribos (séc. VIII): José, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali e Judá;

 ·  Dt 33 (Bênçãos de Moisés B) → 12 tribos (séc. VII): Efraim, Manassés, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali, Judá e Levi.

 ·  Ez 48,1-29 → 12 tribos (séc. VI): Efraim, Manassés, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali, Judá, Simeão.

 ·  Ez 48,1-29 → 12 tribos (séc. VI): José, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali, Judá, Levi e Simeão.

Ele sugere que os levitas eram originalmente um “grupo funcional”, elevado ao status de tribo pelos sacerdotes pós-exílicos (neste caso, teríamos treze e não doze tribos). Outra questão que ele levanta diz respeito à tribo de Simeão, situada nos limites fronteiriços de Judá: a tribo teria sido inserida artificialmente na região com a finalidade de afirmar que a perda de territórios mais ao sul não tinha refletido sobre Judá. O deslocamento de Dan da região mais central (na Shefelah) para o extremo norte (Jz 18) teria a finalidade de afirmar direitos sobre um território apenas transitoriamente incluído no reino de Israel.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de maio de 2021

CALVINISMO E ESTOICISMO

1. Em suas Institutas, Calvino rejeita a acusação, já feita a Agostinho, de que a doutrina da Providência seja uma versão cristã “do dogma do destino estoico” (Livro I, XVI, 8 ).

2. Ele não nega certas semelhanças entre as duas doutrinas, mas insiste que a Providência estoica aparece relacionada à Natureza/Razão Universal, diferentemente da doutrina que ele prega, segundo a qual “Deus é árbitro e moderador”.

3. Daí ele conclui: “afirmamos que não só o céu e a terra, e as criaturas inanimadas, são de tal modo governados por sua providência, mas até os desígnios e intenções dos homens, são por ela retilineamente conduzidos à meta destinada”.

4. E aqui, claro, devem ser inseridos os desígnios pecaminosos do primeiro casal. Meio louco isso, não?


Jones F. Mendonça

FÍLON E A MAMADEIRA FÁLICA

1. Fílon foi um sábio judeu que viveu no primeiro século antes da era cristã, em Alexandria, no Egito. O judaísmo professado por Fílon era fortemente influenciado pela filosofia grega e, de maneira geral, pela cultura dos gregos.

2. Em “Leis III, 31”, Fílon trata, dentre outras coisas, a respeito do comportamento das mulheres em público. Ele diz, por exemplo, que uma mulher jamais deve se meter em uma briga na qual se envolveu seu marido.

3. A razão é a seguinte: imagine – ele diz – que coisa chocante seria, se essa mulher, ao tentar separar os corpos que brigam, agarrasse no órgão genital de um dos homens. Sim, é isto mesmo o que você leu.

4. Quem quiser entender essa obsessão por mamadeiras fálicas, por torres fálicas da Fiocruz, deve começar a cavar por aqui...

Leia "Leis Especiais" de Fílon aqui (e divirta-se):


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de maio de 2021

RECURSOS BÍBLICOS ONLINE E GRATUITOS

Mark Hoffman publicou em seu Blog – Biblical Studies and Technological Tools – uma lista contendo uma série de recursos bíblicos online e gratuitos. A lista, publicada em 14 de abril de 2021, é uma atualização de uma relação postada em 2018. Ele destaca que para um estudo mais aprofundado será preciso pagar por softwares com o Acordance, o Logos ou o OliveTree. Aos interessados na lista, cliquem aqui.


Jones F. Mendonça