Ontem fui interrogado por um aluno a respeito do texto de Gn 3,15, o qual transcrevo abaixo em versos, tal como corretamente dispõe a Bíblia de Jerusalém:
Porei hostilidade entre ti e a mulher,
entre tua linhagem e a linhagem dela.
Ela te esmagará a cabeça
e tu lhe ferirás o calcanhar”.
A pergunta do aluno: “ora, se a descendência da mulher é Cristo, quem é a descendência da serpente?”. Bem, a tradição cristã, desde os segundo século (Irineu, em Contra as Heresias III,23,7), interpreta a inimizade entre a mulher e a serpente como anúncio do “fruto do parto de Maria”. Em suma, Jesus seria a descendência da mulher. Mas e quanto à serpente? Faz algum sentido dizer que a linhagem da serpente é o diabo? E por acaso o diabo é descendente da serpente do Éden?
Lutero, seguindo Irineu de perto, declarou que “Cristo é o descendente dessa mulher que esmagou a cabeça do diabo, isto é, o pecado” (Prefácio do Novo Testamento, de 1522). Para não cair no absurdo de dizer que o diabo pertence à linhagem da serpente, fez uma observação no final da frase: “isto é, o pecado”. Dito de outro modo: Jesus esmagou a “cabeça” do pecado, representado pela figura do diabo, a antiga serpente. É muito malabarismo exegético para meu gosto.
Lutero, seguindo Irineu de perto, declarou que “Cristo é o descendente dessa mulher que esmagou a cabeça do diabo, isto é, o pecado” (Prefácio do Novo Testamento, de 1522). Para não cair no absurdo de dizer que o diabo pertence à linhagem da serpente, fez uma observação no final da frase: “isto é, o pecado”. Dito de outro modo: Jesus esmagou a “cabeça” do pecado, representado pela figura do diabo, a antiga serpente. É muito malabarismo exegético para meu gosto.
Faz muito mais sentido pensar no texto como tendo caráter etiológico, visando explicar quatro fenômenos que davam asas à imaginação dos antigos:
1. O porquê das serpentes rastejarem (3,14),
2. A “inimizade” entre os humanos e as serpentes (3,15),
3. O sofrimento das mulheres durante o parto (3,16),
4. A submissão das mulheres aos maridos (3,16),
5. A fadiga proveniente do trabalho no solo árido da Palestina (3,17-19).
Um conto etiológico, para quem não sabe, é uma pequena historieta, criada a partir da imaginação popular, com o intuito de explicar fenômenos que suscitam a curiosidade das pessoas, tais como as estranhas colunas de sal dispostas nas margens de um grande lago (a mulher de Ló, cf. Gn 19,26), um enigmático arco colorido que se estende nos céus (um sinal divino como pacto pela não repetição do dilúvio, cf. Gn 9,13), a diversidade de idiomas (a torre de Babel, cf. Gn 11,1-9), a extrema aridez de uma determinada região (fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra, cf. Gn 19,24-25) ou as inusitadas pedras amontoadas num vale (o apedrejamento de Acã, cf. Js 7,26), etc.
Contos etiológicos são comuns em diversas culturas. Você pode ler uma pequena coleção deles na seguinte obra: CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus, volume I, mitologia primitiva. São Paulo: Palas Athena, 2010.
Jones F. Mendonça
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