O
sujeito vai a Galleria degli Uffizi, Florença, Itália. Depara-se com “A anunciação” (1472-1474), de Da Vinci. Nela aparecem, numa imobilidade solene,
Maria e o anjo Gabriel. A obra retrata, numa perspectiva renascentista, o
anúncio do nascimento de Jesus à Virgem, escolhida para gerar o Salvador (cf.
Lc 1,26). Um belo quadro.
O
tal sujeito é um sujeito de fé. Crê no dogma do nascimento virginal, na Maria
como virgem não injuriada em sua virgindade e mãe de Deus, Theotokos, Dei
genitrix, Mater Christi, simultaneamente mãe de Deus e de Jesus, aquela que
“ora pro nobis” como versa a ladainha. Vem-lhe à memória o texto de Is 7,14, citado por Mateus (1,23), que o interpretou como
profecia messiânica. A fé aquece-lhe a alma. Com os olhos rúbidos ele se
recolhe emocionado num canto. Minutos depois deixa a sala.
Atrás
do sujeito de fé vem um estudante de arte. Atem-se ao fundo da tela. Percebe
que atrás da Virgem e do anjo há uma paisagem tipicamente toscana, com
características ciprestes e montanhas rochosas. Mais ao fundo nota uma pequena cidade
lacustre do norte da Itália. Depois foca sua atenção nos gestos, na mesa de
mármore na frente da Virgem, nas vestes e nas asas do anjo, realisticamente
inspiradas nas asas de um pássaro. O estudante sabe que apesar de
tradicionalmente atribuída a Da Vinci, exames minuciosos tem demonstrado que a
tela provavelmente recebeu pinceladas de outros artistas (Ghirlandaio? Verrocchio?).
Com a alma embevecida ele se vai.
Quando
examino as páginas da Bíblia observo como o segundo sujeito. Atenho-me aos
detalhes, aos anacronismos, às diferentes camadas do texto, sobrepostas como se
fossem obra de um único artista. Vejo Isaías em mil tons, os retoques feitos em
Jó, as marcas dos muitos pincéis que compuseram o Pentateuco, as intervenções
tardias feitas em Oseias. É o que vejo. Não me deixo cegar pela devoção. Ainda
assim, extasio-me.
Jones
F. Mendonça
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