O trabalho do arqueólogo ou
historiador que se debruça sobre a região da Siro-Palestina e não vê como
históricos determinados eventos relatados no Antigo Testamento geralmente é
visto como ateu ou anti-sionista, dadas as implicações negativas de suas
teorias para a credibilidade da fé judaico-cristã e na reivindicação de Israel
pelo território por ele atualmente ocupado. Dois exemplos de profissionais que
atuam nessa área de pesquisa e negam, por exemplo, a historicidade do Êxodo e
da ocupação de Canaã pela força das armas sob a liderança de Josué tal como
apresentada no relato bíblico são Israel Finkelstein (arqueólogo) e Mario
Liverani (historiador).
Ainda que a Bíblia descreva
a saída dos descendentes de Abraão, Isaque e Jacó do Egito, sua peregrinação
pelo deserto e a tomada violenta das cidades cananeias como Jericó, Ai e Hazor,
qualquer historiador comprometido com a ciência e seus métodos se esforçaria
para demonstrar se tais eventos de fato ocorreram ou não passam de lendas
religiosas elaboradas por sacerdotes e líderes regionais. Muita gente acha que esse trabalho crítico é
feito apenas em relação ao relato bíblico, constituindo uma espécie de
perseguição com o propósito de destruir a fé de milhões de pessoas ao redor do
mundo. Mas isso não é verdade. Para citar um exemplo, posso apresentar o
trabalho crítico feito pelo historiador Prado Custódio (Alexandre Magno:
aspectos de um mito, Annablume, 2006).
Não se trata, como pode sugerir o título do livro, de uma tentativa de
demonstrar que o proeminente líder macedônio não existiu, mas de apresentar
evidências de que o próprio Alexandre tentou divinizar sua linhagem e sua
pessoa a fim de parecer mais que um simples homem. Quem de fato foi Alexandre?
Pergunta-se o historiador. Qual o grau
de historicidade da Bíblia? Pergunta-se o mesmo o mesmo sujeito interessado em reconstruir a história.
Cabe ao historiador reunir
evidências que demonstrem a plausibilidade ou implausibilidade de relatos
registrados pelas mais diversas culturas. No caso do Êxodo, por exemplo, não há
qualquer registo, seja no Egito ou nos povos vizinhos, de uma fuga em massa de
pessoas em direção à costa Oriental do Mediterrâneo em meados do segundo milênio a.C. Tampouco há vestígios
arqueológicos no deserto que possam confirmar que tão grande números de pessoas
(cerca de três ou quatro milhões!) tenha permanecido no deserto por aproximadamente
quatro décadas. A falta de documentos ou
registros arqueológicos não implica necessariamente na negação do Êxodo ou de
outros relatos presentes na Bíblia, mas torna sua existência pouco
plausível sob o ponto de vista histórico. As saídas encontradas por
pesquisadores religiosos para lidar com esse desconforto e manter a
credibilidade do relato têm sido diversas. Há quem sugira um erro do copista no
trecho que registra o número de hebreus que saíram do Egito. Um número reduzido
de fugitivos tornaria o relato mais crível considerando que seria natural a
ausência de vestígios tão evidentes. Outros propõem uma tradução diferente para
o termo “elef”, traduzido por “mil” em Ex 12,37. O fato é que não se pode mais
lidar com o texto bíblico de maneira ingênua e acrítica.
Quanto à tomada das cidades
cananeias tais como Jericó, Ai, Libna e Hazor os problemas não são menores. Ora,
se não houve uma fuga maciça de hebreus vindos do Egito, de onde vieram os
israelitas e como puderam conquistar cidades fortificadas? Relatórios feitos a partir da análise do material escavado em Jericó
sugerem que as muralhas da cidade já estavam destruídas quando os
israelitas chegaram à região. Na opinião de alguns arqueólogos o relato da
destruição da cidade presente no livro de Josué seria uma espécie de conto
etiológico com o objetivo de explicar a presença de ruínas de uma antiga cidade.
Mas há quem discorde, como o arqueólogo Bryant Wood.
Registros arqueológicos tem
demonstrado que por volta de 1200 a.C. a costa mediterrânea que vai do norte da
Síria ao Egito foi abalada por invasões de povos vindos do mar (dentre eles os
filisteus), causando destruição em diversas cidades-estado da região. Tal
invasão parece coincidir com o estabelecimento dos israelitas na Palestina. A
estela de Merneptah (1207 a.C.) confirma a existência de um povo chamado Israel
na região, mas é difícil dizer com certeza se esse grupo pode ser identificado
com os israelitas da Bíblia. Há quem prefira o termo proto-israelita (William
G. Dever). Outros sugerem uma tradução diferente. A referência seria a Jezreel,
um vale que fica ao norte, nas proximidades do Mar da Galileia e não a Israel. Mesmo que
consideremos que o documento se refira a um povo chamado Israel, outras
perguntas se impõem: Trata-se de um grupo
étnico bem definido? Nômades? De onde vieram?
Quando o assunto é a
monarquia israelita a discussão fica acirrada. Hoje ninguém (ou quase
ninguém) duvida da existência de um rei chamado Davi, ou melhor de um líder
israelita chamado Davi (a estela de Tel Dan refere-se a uma “beyt David” =
“casa de Davi”). Mas faltam evidências arqueológicas concretas que atestem a existência de uma monarquia unificada sob a liderança desse israelita, por isso
ele tem sido tratado por alguns estudiosos (como Israel Finkelstein) com mero
líder tribal. Eilat Mazar, por outro lado, insiste que há evidências suficientes para dar crédito ao texto bíblico, que apresenta Davi como um rei que governou todas as tribos israelitas a partir de um palácio em Jerusalém.
É importante ressaltar que
muitas das dúvidas quanto à historicidade de alguns relatos bíblicos não se
apoia apenas na arqueologia. Uma leitura atenta do texto hebraico revela
anacronismos que não podem ser negligenciados. Histórias duplicadas, nomes
diferentes para um mesmo local, interpolações no texto, palavras persas e
aramaicas em textos supostamente antigos favorecem a opinião de que os textos
conheceram um longo processo redacional. Na opinião dos mais otimistas, relatos
como o do Êxodo, da conquista de Canaã, das aventuras do rei Davi e da
construção de um magnífico templo pelo rei Salomão possuem ao menos fundo
histórico. Para os mais pessimistas toda a narrativa do Antigo Testamento não
passa de uma invenção pós-exílica empreendida por pessoas instruídas que viviam
em Jerusalém. Pessoalmente não sou tão pessimista assim. Mas também nem ingênuo e nem tão cego.
Jones F. Mendonça
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