quinta-feira, 6 de março de 2014

O RUGIDO DO URSO: SOBRE UMA GUERRA NÃO TÃO FRIA

Carlos Latuff
Hoje (06/03/14) o parlamento da Crimeia aprovou uma moção em que pede ao presidente Vladimir Putin a anexação da região à Rússia. Se o pedido for aceito pelo governo de Moscou caberá ao povo decidir se quer ou não aderir à federação russa.

A parte oeste da Ucrânia, favorável ao estreitamento das relações com a Europa e nutrida com elevado sentimento anti-russo, quer justamente o contrário. Os protestos em Kiev tiveram início após a decisão do presidente ucraniano (agora deposto) de rejeitar relações com a União Europeia em prol do apoio de Moscou.

Atualmente há um cabo de força atravessando a Ucrânia. De um lado os EUA e a Europa. Do outro a Rússia.

Parte do governo interino da Ucrânia (que é minoria) é formada por grupos ultranacionalistas, xenofóbicos e com inclinação neofascista. Moscou tenta superdimensionar esse lado radical dos “revoltosos de Kiev” a fim de justificar uma intervenção militar na região. A Rússia possui ligações históricas com a Crimeia, uma região autônoma e com constituição própria no sudeste da Ucrânia. Além disso, mantém uma estratégica base militar na região, que é banhada pelo Mar Negro. Por trás do discurso russo estariam ambições imperialistas.

Os EUA e a Europa, por outro lado, têm criticado o deslocamento de tropas russas para a Crimeia (majoritariamente pró-Rússia). Americanos e europeus acusam Putin de desrespeitar tratados internacionais e de interferir na soberania da Ucrânia. Mas o ocidente não pode negar que a deposição do presidente ucraniano foi ilegal, afinal ele foi legitimamente eleito.

O leitor poderá compreender melhor as divergências políticas, culturais e étnicas entre leste e oeste da Ucrânia lendo discursos vindos da Crimeia (pró-Rússia) e da Ucrânia (pró-ocidente):

Sergey Tsekov, vice-presidente do parlamento da Crimeia:
As autoridades centrais na Ucrânia estão provocando o povo da Crimeia [...] Eles pensam que nós vamos esquecer nossas raízes [russas], nossa língua, nossa história, nossos heróis. Somente pessoas estúpidas podem achar que nós vamosfazer isso. Infelizmente, pessoas estúpidas atualmente governam a Ucrânia.
Projeto do partido ucraniano Sbovona:
(precisamos) determinar o "Ucraniocentrismo" europeu em direção estratégica do Estado,segundo o qual a Ucrânia aspira se tornar não apenas centro geográfico, mas também o centro geopolítico da Europa. [...] Concluir um acordo bilateral comos EUA e a Grã-Bretanha para uma ajuda imediata à Ucrânia, de grande efetivo militar, em caso de agressão armada por parte da Rússia [...]. Assegurar a retirada de bases russas do território ucraniano.
Nas redes sociais (e até mesmo na grande mídia) há uma tendência em simplificar o conflito, ora defendendo a retórica americana e europeia, ora legitimando uma intervenção militar russa na região, mas a crise é bem mais complexa do que parece. Há quem acuse Washington de manter uma série de ONGs na Ucrânia com oobjetivo de enfraquecer a Rússia e estabelecer bases militares na região. Há quem acuse Putin de oportunismo e de caminhar na contramão num projeto retrógrado e desestabilizador.

É claro que em meio a toda essa “boa vontade” para com o povo ucraniano por parte das grandes potências há ambiciosos interesses geopolíticos. Na prática a diferença entre o imperialismo russo e o euro-americano é que no segundo o fel tem cobertura de coco.



Jones F. Mendonça

5 comentários:

  1. "Eles pensam que nós vamos esquecer nossas raízes..." Vindo de um mundo globalizado,isso é demente. Na Ucrânia ficam sedes como a do movimento feminista FEMEN e outras esferas liberais...a juventude ucraniana quer a UE e a 'velhitude' quer a Rússia.Por que será?
    Querem voltar ao czarismo do século XIX?Ótimo. Só que há de se respeitar a população pró-Ucrânia. Na Criméia tudo bem,pois há já uma certa independência,mas alastrar pelo país? Isso tudo é medo do modernismo do Ocidente? Fala sério,né? Nem o Brasil,que é machista,dado ao misticismo exacerbado entraria numa dessas...
    Sabemos que há razões imperialistas por trás,mas a juventude ucraniana não quer(e com razão) o jeito religioso da Rússia e as leis anti-gays,anti-mulheres e anti-cientificistas da Rússia. Prefere o modernismo da esfera Protestante e Pró-ateísmo dos países escandinavos...
    http://lulopesfada.blogspot.com.br

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  2. E nesse jogo de poder, quem perde é a Ucrânia, que apenas está em um lugar de interesse para dois impérios. Uma pena. Concordo com o Gustavo e estou torcendo pelos jovens de lá; qualquer coisa é melhor que esse retrocesso abominável que a Rússia está se tornando - ou sempre foi, pelo menos um pouco. E mais do que estabelecer bases, os americanos na verdade sempre temeram a base naval russa de Sevastopol e querem varre-los de lá. Este porto é a porta estratégica fundamental da Rússia para o ocidente, através do Mar Mediterrâneo. Na II Guerra os nazistas já viram a importância deste lugar e tentaram tomá-lo a qualquer custo.

    No mais, toda essa situação me lembra uma pintura de Ilya Repin, um pintor finlandês que mais tarde serviu de exemplo artístico para o Realismo Socialista soviético. Certa vez ele pintou uma grande tela na qual Cossacos aparecem redigindo com deboche uma resposta negativa a um líder estrangeiro que havia pedido sua ajuda mercenária em uma guerra. Este povo, da antiga Criméia, era senhor de si mesmo, "bárbaros" no sentido clássico romano, insubordinados, robustos, valentes, violentos, independentes e indomáveis. Eles são tão diferentes que a Rússia tem uma unidade militar só deles, pois não se misturam e defendem seus ideais antigos de honra e independência. A pintura chama atenção pela irreverência e corte ddos personagens e pelo seu cabelo tradicional:
    http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/Repin_Cossacks.jpg

    Outra curiosidade interessante que me vem à cabeça nesse momento, é que a bombacha, calça tradicional do gaúcho, foi na verdade um grande espólio de guerra da Criméia. Essa calça era tradicional por essas bandas, e quando chegou aqui quase de graça, aos milhares, o povo tomou gosto pelo corte e acabou se tornando símbolo do gaúcho, que também precisava de uma calça larga e confortável para montar a cavalo e cuidar lida campeira, muito parecida com a vida dos Cossacos, que também viviam em uma pradaria, por sinal. No início do século XX, o estado do Rio Grande do Sul promoveu um movimento cultural, no qual artistas e escritores como Érico Veríssimo, Simões Lopes Neto, O Clube de Gravuristas de Bagé e até Aldo Locatelli foram convidados a solidificar a imagem cultural do gaúcho e forjar essa quase mitologia do estado do Rio Grande do Sul, com toda sua beleza e, ao mesmo tempo, bairrismo preconceituoso, machista, racista, etc.

    Que a Criméia continue viva, nos livros de história. Que honras, heróis e ressentimentos antigos sejam guardados em livros de história e as pessoas se libertem disso, para viver em paz com seus semelhantes. Todas estas guerras atuais me dão vontade de refundar a "contra-cultura"! "Não aprendemos nada com os terrores do passado? Por quê repetimos tudo isso?" Esse mesmo sentimento do pós II Guerra me toma a cabeça, e dá vontade de jogar tudo para cima e ir tocar violão e desenhar à sombra de uma árvore.

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  3. Jones, Visito seu blog constantemente e através dele tomei conhecimento de diversos assuntos relacionados à Teologia e coisas sobre as quais eu ainda não tinha sequer conhecimento superficial. Através desse canal, também descobri o Peroratio (excelente) e outros blogs interessantíssimos.
    Agradeço por este texto. Realmente estive buscando sobre atualidades a fim de um concurso público que prestarei dia 23 deste mês e foi num blog de assuntos relacionados à Teologia que encontrei a explicação mais cristalina, esmíuçada e simples, de forma que posso agora afirmar que estou bem inteirado acerca deste conflito.
    Agradeço e desejo muita Sabedoria e Luz em sua Caminhada.
    Abração!

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  4. Tiarles, obrigado pela contribuição cultural. Quanto à sua angústia diante da falta de limites da ambição humana, o melhor mesmo é tocar violão e desenhar à sobra de uma árvore (desde que não seja uma jaqueira...).

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