terça-feira, 10 de junho de 2025

JESUS COMO "MACHO ALFA"


1. Uma das propostas centrais dos “Legendários”, movimento cristão fundado por Chepe Putzu em 2015, é a seguinte: o homem precisa retornar à sua configuração original, e essa “configuração original” diz respeito ao modelo de masculinidade exercida por Jesus. Bem, já pintaram Jesus de diversas maneiras, inclusive há um “Jesus saradão”, como o “Cristo Ressuscitado”, esculpido por Michelangelo em 1516, e o Jesus marombado exposto em “Gólgota”, obra produzida por Pordenone em 1521. Mas Jesus como “Macho Alfa”... essa é nova.

2. É interessante que todos esses grupos interessados em apresentar Jesus como modelo de macho gostam de enfatizar que a masculinidade ideal é aquela que expressa atributos que valorizam uma dimensão provedora/protetora do macho, que, inclusive, seria natural, inata. Assim, o homem ideal seria aquele que protege sua fêmea e sua prole, que provê recursos para sua subsistência, etc. Acontece que o Jesus dos evangelhos não tinha moradia fixa, não tinha mulher, nem filhos. Até sua atividade profissional era precária: era um tekton, um artífice.

3. Faz parte da natureza humana criar modelos capazes de estruturar a vida, funcionando como norte, como horizonte de orientação. Assim, criamos modelos de sociedade, de estrutura familiar, de códigos morais e até mesmo modelos de comportamento que esperamos ser reproduzidos por nossos filhos e filhas. Mas esses modelos não caem do céu. São o resultado da interação entre humanos e meio ambiente, que se desenvolve a partir de uma relação dialética, de troca. Tanto a “Machonaria” como os “Legendários” descambam em essencialismo biológico barato.

4. Pior do que isso. Buscam legitimar esse essencialismo biológico usando textos ou personagens da Bíblia.




Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de junho de 2025

COMO SATANÁS VIROU "LUCIFER" EM 5 PONTOS CURTOS

1. A palavra latina “lucifer” nada tem a ver com “diabo”, “satanás” ou “capiroto”. Ela significa simplesmente “ASTRO BRILHANTE”, como em Jó 11,17 na versão latina: “tua vida ressurgirá como o meio dia, a escuridão será como LUCIFER”, ou seja, como um “astro brilhante”, provável referência a Vênus, planeta que brilha no céu como uma estrela, e que se destaca por sua luz fulgurante no céu da manhã, daí o título “estrela da amanhã”. Vênus é o terceiro astro mais brilhante no céu, atrás da lua e do sol.

2. Na versão latina da Bíblia o termo “lúcifer” reaparece em Is 14,12: “como caíste do céu, ‘lucifer’, filho da manhã, como foste atirado à terra, vencedor das nações”. Neste texto, o rei da Babilônia (cf. 14,1) é comparado a um ASTRO BRILHANTE, que devido à sua arrogância “foi precipitado no Sheol”, o mundo dos mortos (cf. 14,9-11). O texto fala da queda de um rei, não de um anjo ou ser divino. Outro soberano “lançado por terra” é o rei de Edom (cf. Ob 1,2-4).

3. A palavra “lúcifer” reaparece uma última vez em 2 Pe 1,19: “...lucifer oriatur in cordibus vestris”, ou seja, “que o ASTRO BRILHANTE resplandeça em vossos corações”. Veja que “lúcifer”, ou melhor, o “astro brilhante”, neste caso, é uma referência a Jesus, associado à luz, ao brilho, ao resplendor. Deus também é associado à luz em Jo 1,5 (“Deus é luz...”) e em Tg 1,17 (“Pai das luzes”).

4. Mas de onde veio a ideia de que “Lúcifer”, com letra maiúscula, é o nome do “capiroto”, do “zarapelho”? Essa é fácil. Quando o Antigo Testamento foi traduzido para o latim, Jerônimo, o tradutor, escolheu “lucifer” como palavra correspondente a “astro brilhante” em Is 14,12. E como ele interpretou esse “astro brilhante” como sendo Satanás, a coisa pegou.

5. E foi assim que “Satanás” ganhou nome próprio: “Lucifer”. Um nome dado pelos homens, não pelos deuses.



Jones F. Mendonça

A FÉ COM LÓGICA É MORTA

1. Por alguma razão o algoritmo do YouTube entende que eu aprecio debates entre judeus e cristãos sobre a figura de Jesus, em particular sobre sua messianidade. Os debatedores que mais pipocam na minha tela são Tassos Lycurgo (apologeta cristão) e o rabino Micha (judeu), ambos apegados à interpretação fundamentalista de suas respectivas Escrituras.

2. De um lado Tassos tenta demonstrar que Jesus é o messias tal como profetizado nas “Antigas Escrituras”. Do outro lado Micha se esforça para comprovar que esta declaração é falsa e não encontra apoio nos textos sagrados. O nível do debate é baixíssimo, com ataques pessoais, leituras equivocadas e tentativas de desqualificar o oponente. Que canseira...

3. Não seria mais honesto e maduro o adepto da fé cristã dizer: “creio que Jesus é o messias e que ressuscitou dos mortos e não preciso provar nada pra ninguém!”? E não seria igualmente honesto e maduro o rabino declarar: “a Torah é a luz do mundo, creio que o messias ainda está por vir e ninguém tem nada a ver com minhas crenças!”?

4. O número de visualizações que esse tipo de debate alcança chega a passar de meio milhão. Sim, é surpreendente (e trágico!). Crenças não se provam, não se justificam racionalmente e nem mesmo exegeticamente. Crenças são o resultado de experiências (individuais ou coletivas), cristalizadas posteriormente em fórmulas de fé, em dogmas.

5. O cristão crê de um jeito, o judeu de outro, o espírita, o hindu, o budista, o muçulmano, o umbandista, o bahaísta e o zoroastrista de outro e de outro modo. É saudável que todos dialoguem em nome de um bem comum. Mas o sujeito de fé que tenta provar que tal religião é a mais verdadeira ou mais falsa faz papel de padego, boboca, obtuso, pacóvio, sandeu.



Jones F. Mendonça

QUEM ESCREVEU A BÍBLIA?

1. Uma tradição muito antiga atribuiu a determinados personagens bíblicos a autoria de livros ou blocos de livros. Assim, Moisés seria o autor do Pentateuco, Josué o autor do livro que leva seu nome, Jeremias o autor do livro do Reis, etc. A grande verdade, no entanto, é que essas atribuições de autoria são meramente especulativas. Ao que tudo indica, os livros foram escritos por "autores" e não por um autor apenas.

2. Muitos dos códigos legais presentes no Pentateuco, por exemplo, aparecem registrados de forma repetida, porém modificada, sugerindo que um código mais antigo foi relido e atualizado, de forma que pudesse dar respostas a novos problemas e desafios, não contemplados no código mais antigo. Isso acontece, por exemplo, em relação às leis relacionadas aos escravos, aos empréstimos a juros e ao amor ao inimigo.

3. Em relação ao livro de Josué, uma série de fórmulas estereotipadas, tendências teológicas e de estilo, sugerem que o livro foi escrito por indivíduos de alguma maneira vinculados ao Deuteronômio. Na verdade não apenas o livro de Josué possui afinidades com o Deuteronômio. São igualmente classificados como "deuteronomistas" os livros de Juízes, Samuel e Reis. Reflexos da "teologia deuteronomista" também podem ser encontrados em profetas como Jeremias.

4. Desde o início do século XX o livro do profeta Jeremias vem sendo dividido em quatro partes, relacionadas a autores diferentes. Textos poéticos, predominantes nos capítulo 1-25, seriam os mais antigos. Textos em prosa, de natureza "biográfica", seriam mais recentes. Um terceiro grupo de textos teriam sido redigidos por "deuternomistas"; e um último, de natureza mista, revela grande preocupação em apresentar um futuro glorioso para Jerusalém e Judá e punição aos seus inimigos.

5. Uma matéria publicada há alguns dias no Haaretz (Israel), apresenta novas ferramentas de análise do texto que parecem promissoras para nos ajudar a datar os textos. Boa leitura! 



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de junho de 2025

ELISEU, GEASI E A "UNÇÃO DE PROFETA"

1. Nos capítulos 4-8 do Segundo Livro dos Reis tomamos contato com as aventuras de Eliseu e seu servo, Geasi. O capítulo 5 registra uma história conhecida como “A cura de Naamã”, cujo desfecho é ao mesmo tempo cômico e dramático. Sentindo-se grato a Eliseu pela cura de uma doença, o general Naamã oferece ao profeta uma generosa recompensa, que é imediatamente rejeitada. Geasi, servo de Eliseu, pensou com seus botões: “Vou pedir essa recompensa em nome de meu senhor; ele nem vai desconfiar”. Mas o texto diz que “o coração de Eliseu andou com Geasi” até Naamã (5,26), ou seja, Eliseu percebeu a malandragem do moço.

2. Para surpresa de Geasi (e do leitor), Eliseu dá a seu servo uma resposta inesperada: “agora que recebeste a prata, pode comprar com ela vestes, olivais, vinhas, bois, servos e servas” (5,26). Eita! Então o golpe é válido? Não, não. Acontece que no verso seguinte Geasi recebe de seu mestre uma terrível notícia: “a doença de Naamã se apegará a ti e à tua posteridade para sempre” (5,27). E, de fato, é o que acontece: a doença de Naamã é transferida para Geasi. A história tem finalidade moralizante: 1) Um profeta não deve operar milagres em benefício próprio; 2) Jamais desrespeite um profeta (como a história das ursas, no cap 2).

3. De modo geral, todas as histórias envolvendo algum tipo de punição dirigida àqueles que se levantam contra um profeta têm a mesma finalidade: expor aos ouvintes dessas narrativas – indivíduos de um passado remoto – que determinado comportamento é considerado inaceitável. Note que na trajetória do êxodo Moisés tem sua capacidade de liderança desafiada diversas vezes. E todos aqueles que o desafiam ou morrem ou são punidos severamente. A leitura de histórias como esta no ambiente eclesiástico contemporâneo esbarra em diversos desafios, uma vez que a mensagem que o texto pretende comunicar é exatamente esta: não se meta com o "ungido" de Yahweh. 

4. Não faltam líderes vendo a si mesmos como "Moisés", "Eliseu" ou "Davi", cuja autoridade, alegadamente dada diretamente por Deus, jamais poderá ser questionada.  




Jones F. Mendonça

OS "MACHONÁRIOS" E JÔNATAS "DE GATINHAS"

1. O líder dos Machonários abriu sua Bíblia no capítulo 14 do Segundo Livro de Samuel, versão Almeida Revista e Atualizada. O texto, se você não sabe, narra a batalha entre Jônatas, filho de Saul, e os filisteus, que desafiavam com ofensas Jônatas e seu escudeiro. Os Machonários que acompanhavam a leitura ficaram empolgados: “vamos lá, Jônatas, acaba com esses maricas!”. O líder da reunião fez uma pausa, respirou fundo e reproduziu as palavras dos filisteus dirigidas a Jônatas e a seu companheiro: “subi a nós, e nós vos daremos uma lição”.

2. A galera que lotava o galpão foi ao delírio: “parte pra cima, Jônatas, mostre a esses incircuncisos o poder de tua testosterona”. Os brados eram tão altos que faziam tremer as telhas da cobertura de zinco do galpão. Logo depois veio o silêncio. Era grande a expectativa. Qual seria a atitude tomada pelo grande guerreiro machonário? Golpes de faca? Luta corporal? Disparo de flechas certeiras? Movimentos com espada? Leia você mesmo: “Então trepou Jônatas DE GATINHAS, e o seu escudeiro atrás dele” (2Sm 14,13). A decepção foi geral.

3. Um líder famosinho, arqueólogo do YouTube com voz de locutor de rádio que fazia parte da liderança tentou intervir, assumindo o microfone: “pera lá, no hebraico não diz isso não...”. E começou a ler em hebraico: “vayoal yonatan al-yadayv veal-raglayv”. Mas as palavras do arqueólogo do YouTube soavam como “ta-ta-ti, tateté, valoya, me-meme”. Não eram palavras brutas o suficiente. Diziam que parecia um Bebê Reborn falando. O clima ficou tenso e a confusão só aumentava.

4. A reunião acabou e os machonários voltaram pra casa sem conseguir resgatar a tão sonhada macheza perdida.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 30 de maio de 2025

A BÍBLIA HEBRAICA E O BEIJO NO PIEL

1. Uma das coisas que aprendi sobre verbos nas aulas de hebraico e reproduzi para meus alunos é a seguinte: verbos classificados no tronco do QAL têm ação simples (p. ex. “ele beijou”); verbos classificados no tronco do PIEL têm ação enérgica, intensa, repetida ou demorada (p. ex. “ele beijou intensamente”). Parece bem simples, não? O exemplo que dei aqui – com o verbo “beijar” – aparece na gramática escrita por Page H. Kelley, p. 40 e também na gramática produzida por Tereza Akil e Rosemary Vita, p. 50. Guarde isso. Sigamos.

2. Com a ajuda de um software bíblico consigo identificar todas as ocorrências do verbo “beijar” (נשק) na Bíblia Hebraica. Mais do que isso, o software sinaliza pra mim quando esse verbo aparece no QAL (forma simples) ou no PIEL (forma intensiva). Com essas informações na minha tela, só preciso analisar caso a caso, de forma que seja possível verificar se a informação passada pela gramática se confirma no mundo das realidades concretas. Sim, sou uma pessoa muito desconfiada. Que tal analisarmos o uso do verbo na história de José?

3. No capítulo 45, verso 14, do Livro do Gênesis, tomamos contato com o dramático encontro entre José e seu irmão Benjamin. José o abraça, e chora emocionado. No verso seguinte ele faz o mesmo com seus outros irmãos: “Em seguida ele COBRIU DE BEIJOS todos os seus irmãos e, abraçando-os, chorou” (Tradução da Bíblia de Jerusalém). Considerando que o verbo “beijar” aqui está no PIEL, o tradutor enfatizou a intensidade da ação empregando outro verbo: “COBRIU de beijos”. Foi uma boa solução.

4. Mais adiante o leitor se depara com outro encontro emocionante, desta vez entre José e seu pai, Jacó: “Então José se lançou sobre o rosto de seu pai, e chorou sobre ele e O BEIJOU” (50,1). Eu esperaria um beijo bem intenso, afinal estamos diante de uma despedida definitiva entre um filho e um pai. Acontece que o verbo “beijar” aqui está no QAL, teoricamente indicando uma ação simples. Assim, fico pensando se o verbo “beijar” no PIEL realmente indica ação intensiva ou repetitiva, como dizem os gramáticos.

5. Muitas vezes um verbo no QAL – teoricamente indicando ação simples – sugere ação intensiva. Muitas vezes o verbo no PIEL – teoricamente indicando uma ação intensiva – sugere ação simples. Talvez seja possível resolver a questão do seguinte modo: Gn 45 e 50 foram redigidos por autores diferentes. O autor de Gn 45 teria optado por enfatizar a ação, usando o verbo no PIEL; o autor de Gn 50 teria empregado o verbo no QAL, pensando que não havia necessidade de usá-lo no PIEL, dadas as circunstâncias. Será? 

6. Além de Gn 45,15, outras ocorrências do verbo “beijar” no PIEL, podem ser encontradas em Gn 31,28 (infinitivo do PIEL); 31,55 (imperfeito do PIEL) e no Sl 2,12 (imperativo do PIEL). Não há qualquer razão aparente para que nestes casos específicos a ação seja necessariamente percebida como “intensiva”, seja na repetição, seja na duração, seja no ardor. Tudo isso parece bastante confuso. Será que comptreendemos suficientemente bem como funcionam os verbos no tronco do PIEL?  



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 14 de maio de 2025

ENCÍCLICAS, LIBERALISMO ECONÔMICO E COMUNISMO


1. A eleição do cardeal Robert Prevost como substituto do Papa Francisco despertou a curiosidade de muita gente, interessada em saber a razão que levou o religioso a adotar o título “Leão XIV”. Em discurso tornado público, Prevost expôs a razão da escolha: trata-se de uma referência ao legado de Leão XIII, Papa responsável pela elaboração da Doutrina Social da Igreja, cujo documento principal é a Encíclica Rerum Novarum, publicada em maio de 1891.

2. O documento faz críticas tanto ao liberalismo econômico, acusado de gerar desigualdade e exploração econômica, como às ideias socialistas, vistas como uma ameaça ao edifício social por instigarem o ódio nos pobres contra os ricos e por defenderem a abolição da propriedade privada. Um bom leitor perceberá com clareza que são mais abundantes e enfáticas as críticas ao socialismo que ao liberalismo econômico. Prossigamos.

3. Em muitos pontos a encíclica lembra a Carta aos Efésios (6,5-9), exigindo obediência dos servos e benevolência dos patrões: “Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem... Quanto aos deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o juízo do próprio Deus, a pobreza não é um opróbrio e que não se deve corar por ter de ganhar o pão com o suor do seu rosto”.

4. Uma crítica mais ferrenha da Igreja ao socialismo aparece em 1937, consignada nas linhas da Encíclica Divinus Redemptoris, publicada em março de 1937. Há destaque especial ao contexto político-social experimentado pela Espanha, mergulhada em uma guerra civil entre republicanos (aliados convenientemente aos comunistas e anarquistas) e nacionalistas (apoiados pela Igreja). O documento também reserva uma crítica ao liberalismo econômico, que teria, por exemplo, investido em fábricas e abandonado as igrejas.

5. A ênfase maior da encíclica, como já foi dito, dirige-se ao socialismo. O documento expressa grande indignação da Igreja contra três tipos principais de problemas: 1) ataques dos socialistas a Igrejas e monumentos religiosos; 2) desordem social desencadeada pelas ideias socialistas; 3) defesa do ateísmo. Como sabemos, os republicanos apoiados pelos comunistas e anarquistas perderam a batalha na Espanha. O vencedor foi o general Francisco Franco, ditador que governou o país com mão de ferro por quase 40 anos.

6. Quem também celebrou a vitória de Franco foi a Igreja, que recebeu do governo uma série de privilégios legais, políticos, econômicos e fiscais (Concordata de 1953). As Encíclicas, de modo geral, querem apenas manter a ordem social estabelecida. E não é esta a tendência dominante na religião organizada, manter o status quo, a ordem social vigente, tentando legitimá-la como divina, e, portanto, como “natural”? Tanto a Rerum Novarum como a Divinus Redemptoris nascem a partir de duas preocupações fundamentais: preservar o poder da Igreja e a hierarquia social vigente.


Jones F. Mendonça

terça-feira, 13 de maio de 2025

LEÃO XIV E A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

1. Em 2006, sob o pontificado de Bento XVI, José Comblin escreveu “sinais dos tempos – 40 anos depois do Vaticano II” (Reb 66). Parte do texto se dedica a analisar os resultados concretos da chamada “doutrina social da Igreja”, um conjunto de princípios morais e socias que visavam apontam um caminho para a Igreja que fosse capaz de promover o bem comum e a dignidade humana. Sob a perspectiva política, econômica e social, a doutrina social da Igreja criticava tanto o comunismo como o capitalismo industrial. O contexto: a virada do século XIX para o século XX.

2. Para quem não sabe, o grande responsável por essa postura foi o Papa Leão XIII, cujo nome foi adotado por Robert Prevost, ou Leão XIV. A adoção do “Leão” indica que Prevost pretende se inspirar no legado de Leão XIII. Voltemos ao texto de Comblin. Em sua reflexão, o teólogo lamenta que a doutrina social da igreja tenha sido feita “sem nenhuma participação das igrejas locais” e” sem a ampla consulta ao povo cristão”. Mais do que isso, considera sem utilidade documentos bem elaborados e bem redigidos, quando desacompanhados de “gestos espetaculares”.

3. Comblin finaliza dizendo que “o testemunho da igreja precisa ser visível”, dado por “pessoas significativas”: “O Papa atrai mais a TV do que um bispo e um bispo mais do que um padre e um padre mais do que um leigo. Daí uma responsabilidade maior para quem está mais exposto à mídia”. Trocando em miúdos: Comblin declara desejar um Papa que não apenas produza documentos repletos de “matizes e contornos”, mas que tenha coragem para enfrentar os problemas que afligem os fiéis e o mundo por meio de ações concretas.



Jones F. Mendonça

CONEXÕES ENTRE O JARDIM E O APRISCO NO EVANGELHO DE JOÃO


1. O ambiente que compõe o cenário da prisão de Jesus, tal como registrado no capítulo 18 do evangelho de João, é um jardim localizado no Monte das Oliveiras. De acordo com o evangelista, Jesus entra nele com seus discípulos e logo é assaltado por um destacamento de guardas armados, conduzidos por Judas (18,3). Jesus não foge deles. Pelo contrário, ele os enfrenta, revela sua identidade e pede para que não importunem seus discípulos (18,8). Pedro tenta reagir violentamente contra os algozes, mas Jesus o detém. A razão alegada: "deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?" (18,11).

2. James Resseguie percebeu uma notável semelhança entre o que acontece em Jo 18 e a parábola preservada no capítulo 10 de João. Na parábola Jesus se coloca com o “bom pastor”, como aquele que “enfrenta o lobo” (10,12), como aquele que “dá a vida por suas ovelhas” (10,11). Não é, portanto, como o “ladrão”, o “assaltante”, o “mercenário” (10,1; 10,12). O ladrão – ele enfatiza – veio para “roubar, matar e destruir” (10,10). Seu objetivo é assaltar as ovelhas e dispersá-las (10,12). Não se importa com elas.

3. James Resseguie supõe que o jardim de Jo 18 está de alguma maneira conectado ao aprisco de Jo 10. No jardim, acompanhado de seus discípulos, Jesus “enfrenta os lobos”, os “ladrões”, os “mercenários”. Não foge, não se acovarda, não permite que suas ovelhas sejam feridas, devoradas, dispersadas. Judas, os fariseus e os guardas desejam entrar pela “porta do jardim”, mas são detidos por Jesus, que avança para proteger suas ovelhas. O jardim de Jo 18 funciona como um aprisco. Jesus é o bom pastor, seus discípulos as ovelhas, Judas o líder dos lobos-ladrões-mercenários (Judas é chamado de “ladrão” – κλεπτης – em 12,6).

4. A leitura desatenta de Jo 10 converteu o “ladrão”, o “mercenário”, o “lobo”, ou seja, aquele que “veio para roubar, matar e destruir”, em “diabo”. Mas não se trata disso. O texto na verdade fala de “falsos pastores”, de líderes que “apascentam a si mesmos” (Ez 34,8), que abandonam suas ovelhas em “dias de nuvem e de escuridão” (Ez 34,12). O episódio narrado em Jo 18 está conectado a Jo 10, que por sua vez se conecta a Ez 34. A Bíblia, em sua forma final, acabada, canonizada, é o resultado de um processo contínuo de leitura, releitura e ressignificação.

5. Quem estiver interessado neste tipo análise textual deve se debruçar sobre os trabalhos de James Resseguie (NT), Robert Alter (AT) e tantos outros dedicados à chamada “leitura atenta”, “narratologia”, “interpretação bíblica formalista” ou “neocrítica”.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 1 de maio de 2025

SOBRE DAVI COMO FILHO BASTARDO NA SÉRIE DA PRIME VÍDEO

1. Ouvi dizer – porque ainda não assisti – que na série “Casa de Davi” (Amazon Prime), o jovem Davi é retratado como filho bastardo. Eita, mas de onde teria vindo essa ideia? Bem, a hipótese nasceu a partir de uma leitura atenta do Salmo 27, atribuído a Davi. No v. 10 lemos assim: “Pois meu pai e minha mãe ME ABANDONARAM, mas Javé me acolherá!” (cf. trad. BJ). Neste caso, o texto sugere que o salmista foi abandonado pelos pais (o verbo está no passado, no perfeito do QAL, como em 2Rs 22,17; 2Cr 34,25; Jr 1,16; 5,7).

2. Provavelmente incomodados com a declaração, alguns tradutores fizeram pequenas modificações com a finalidade de dar novo sentido à fala do salmista. Veja:
“SE meu pai e minha mãe me ABANDONAREM, então o Senhor me acolherá” (PFJA).

“AINDA QUE me ABANDONEM pai e mãe, o Senhor me acolherá” (NVI).

“Porque, QUANDO meu pai e minha mãe me DESAMPARAREM, o SENHOR me recolherá” (ACF).
3. A hipótese ganha ainda mais força quando se leva em conta uma declaração atribuída a Davi presente no Salmo 51: “em pecado se AQUECEU minha mãe” (v. 5). Ou melhor, "minha mãe concebeu-me no pecado”. Quer mais um verso para apimentar essa treta? Aqui vai: “tornei-me um estrangeiro aos meus irmãos, um estranho para os filhos de minha mãe”. Davi teria origem edomita, povo descendente de Esaú, irmão de Jacó que era ruivo como Davi.

4. Quer saber o que acho? Acho nada, fico só observando…



Jones F. Mendonça

PRECISAMOS FALAR SOBRE O TAMANHO DE GOLIAS


1. Eu poderia citar ao menos duas tretas envolvendo o embate entre Davi e Golias tal como preservado no livro bíblico de I Samuel. A primeira diz respeito ao tamanho do “gigante” filisteu. A versão da história contada em hebraico registra o seguinte: Golias tinha a altura de “seis côvados e um zeret (זרת)” (1Sm 17,4). Bem, ninguém tem certeza sobre o significado de “zeret”, mas sabemos que o termo foi traduzido por “palmo” (σπιθαμης) nas versões gregas do texto hebraico. Se isto for certo, Golias teria “seis côvados e um palmo”. Fazendo as contas: 6 côvados de 45cm + 1 palmo de 23cm = 2,93 metros (*).

2. Acontece que na versão grega do texto hebraico, conhecida como Septuaginta ou LXX, a altura de Golias foi registrada de maneira diferente. Golias teria “quatro” (τεσσαρων) côvados e um palmo e não “seis” côvados e um palmo. Somando os quatro côvados de 45 centímetros + um palmo de 23cm = aproximadamente 2 metros (cerca de 1/3 menor que na versão hebraica). Caso você leia com atenção, vai perceber que em nenhum lugar o texto trata Golias como “gigante”. Apenas enfatiza que ele era forte e extremamente hábil na arte da guerra.

3. Bem, esta é a primeira treta. Quer saber qual é a segunda? Essa eu não conto. Mas se você quiser ler uma obra crítica sobre as narrativas bíblicas relacionadas a Davi, eu sugiro “Davi: a vida real de um herói bíblico” (Zahar, 2016), escrito por Joel Baden, professor de Yale e especialista no Antigo Testamento. Baden adora uma treta. Eu, não... 

(*) Palmo (σπιθαμης) , em textos gregos, indicava a distância entre o polegar e o dedo mínimo da mão quando estendidos, cerca de 23 cm de envergadura. O côvado era a distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio, aproximadamente 45 cm.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de abril de 2025

SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DO CRUCIFICADO

1. Na história da arte cristã, o Cristo crucificado foi retratado de duas formas elementares: o Christus Victor (Cristo vitorioso) e o Christus Patiens (Cristo sofredor). O primeiro foi moldado a partir da teologia dos chamados Pais da Igreja, e enfatizava a vitória de Cristo sobre a Cruz, o pecado, a morte e as forças destrutivas do mal. O segundo ganhou força a partir do final da Idade Média, influenciado pela teologia de Anselmo de Cantuária, teólogo do século XI. A ideia era apresentar Cristo como “homem de dores”, exaltando seu corpo ensanguentado, flagelado, desfigurado pelos açoites.

2. Um exemplo do Christus Victor pode ser visto na tela “Ressurreição”, de Matthias Grünewald, exposta no Museu Unterlinden, França (IMAGEM DA DIREITA). A tela mostra na extremidade direita um colorido Cristo ressurreto em ascensão acima do túmulo. O esquife está aberto, os guardas desmaiados, a figura de Cristo aparece cercada por um grande halo resplandecente em contraste com a escuridão do céu noturno. Com os braços estendidos mostrando as feridas em suas mãos, Cristo parece esboçar um singelo e sereno sorriso em seu rosto. Uma visão gloriosa.

3. O Christus Patiens fez e ainda faz muito mais sucesso nas representações artísticas e no imaginário religioso cristão. É um erro pensar que o essa representação só ganhou destaque na teologia católica. Lutero, no debate de Heidelberg, de 1518, propôs a sua “teologia da cruz”, buscando relacionar os sofrimentos de Cristo aos sofrimentos do cristão. O Cantor Cristão (p. ex. hinos 84 e 94) está repleto de canções que exaltam o sofrimento de Cristo na Cruz. E o que dizer do filme "A Paixão de Cristo", um espetáculo de sangue, violência e mau gosto?

4. Alguns artistas, como o russo Viktor Vasnetsov, buscaram retratar Cristo na cruz sem enfatizar o sangue e as marcas da violência que dilacerou sua carne e desfigurou seu corpo (IMAGEM DA ESQUERDA). Repare que a asa de um anjo cobre (propositalmente?) a chaga aberta do lado direito. Outro detalhe: a face de nenhum dos anjos é exibida com o propósito de destacar o semblante sereno de Cristo, no centro.


Jones F. Mendonça

O PAPA COMO ANTICRISTO: UMA BOBAGEM QUE JÁ DURA QUASE MIL ANOS

1. A crença ainda muito popular que supõe ser o papado a manifestação do anticristo pode ser encontrada no século XII, difundida pelos cátaros e valdenses, grupos cristãos que rejeitavam alguns dos elementos centrais da ortodoxia católica. No século XIV foi repetida por John Wyclif, reformador religioso inglês considerado um dos precursores da Reforma Protestante ao lado de Jan Hus.

2. Mas o responsável pela popularização da crença foi Lutero, que em seus escritos não cansa de acusar “o Papa e seus comparsas” de tentarem ocupar o lugar de Cristo, colocando-se acima das Escrituras. O líder supremo da Igreja também é criticado por se deixar seduzir pela “Coroa da soberba”, ao buscar reunir em suas mãos o poder espiritual e o poder temporal.

3. Lutero usa as expressões “contracristo” e “anticristo” para se referir não apenas ao Papa e a seus auxiliares, mas a todos os que contrariam o que Cristo fez e ensinou. Em sua Carta à Nobreza Alemã o monge agostiniano declara com todas as letras: “o Papa é o anticristo”. Mas é preciso ler as cartas de Lutero tendo em vista um contexto muito particular, relacionado ao catolicismo de seu tempo e à sua experiência de vida.

4. Não tenho ideia do que Lutero diria se ressuscitasse hoje, sendo capaz de avaliar e julgar o que é ou não é anticristão ou contracristão. Muitas são as denominações, há líderes para todos os gostos, diversas são as crenças, múltiplas são as maneiras como se articulam fé e realidade concreta. Mas se este julgamento estivesse em minhas mãos, Francisco, que nos deixou recentemente, teria seu nome imortalizado na calçada dos bons exemplos.

5. Descanse em paz, Francisco. E que seu legado jamais seja esquecido.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 14 de março de 2025

O QUE SIGNIFICA "POBRES DE ESPÍRITO"?

1. A expressão “pobres de espírito” (Mt 5,3), presente no Sermão do Monte de Mateus, aparece ao lado de “mansos” (5,4), “aflitos” (5,5), “promotores da paz” (5,9) e “perseguidos” (5,10). No contexto parece claro que ser “pobre de espírito” ou indica uma virtude (como os “mansos” e “promotores da paz”); ou a condição de quem precisa do auxílio divino (como os “aflitos” e “perseguidos”). A segunda opção parece ser a mais acertada: ser “pobre de espírito” é ser “oprimido”, “desafortunado”, “desamparado”, “humilhado”.

2. Mas de onde teria vindo essa expressão? Bem, é bastante provável que o grego "πτωχοι τω πνευματι" corresponda ao hebraico “שפל־רוח” ( = “rebaixado de espírito”, cf. Pv 16,19 e Is 57,15) ou “עני ונכה־רוח” ( = “pobre e ferido de espírito”, cf. Is 66,2). Em Provérbios, “pobre de espírito” é colocado em oposição aos “exaltados”; Isaías 57,15 destaca que embora resida nas alturas, Yahweh está junto dos “pobres de espírito”; Isaías 66,2 faz a mesma comparação: Yahweh tem nos céus o seu trono, mas seus olhos estão voltados para o “pobre e o ferido de espírito”.

3. A tradução “espiritualmente pobres”, proposta pela NTLH, vai em outra direção, sugerindo que esses indivíduos são dotados de uma espiritualidade empobrecida, debilitada, adoecida. Outra tradução que se desvia do sentido que o texto quer dar é “humilde de espírito”, pessoa simples, que não procura se colocar acima das demais. O ideal seria “humilhada em espírito”, porque esta é sua condição: humilhada, rebaixada, subjugada, oprimida pelos poderosos. Deus, assim, se coloca como aquele que estende a mão aos “pobres de espírito”, ou seja, a todos aqueles que por alguma razão se sentem pisados como a lama das ruas.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 12 de março de 2025

O "COLO DO ÚTERO" NA BÍBLIA HEBRAICA


1. Quando uma mulher caminha para os últimos dias da gravidez, o colo do útero começa a se preparar para a saída do bebê, dilatando-se e tornando-se mais flexível. É óbvio que os antigos israelitas não tinham uma compreensão detalhada a respeito da fisiologia do parto, mas as parteiras sabiam que uma dilatação precisava acontecer e que uma ajuda do bebê era importante.

2. Aquilo que hoje chamamos de “colo do útero” era conhecido em hebraico como “mishber” (משבר), algo como “local do rompimento”. Dois exemplos. Em Isaías 37,3 lemos este lamento atribuído ao rei Ezequias: “os filhos chegaram AO PONTO DE NASCER (mishber), mas não há força para dar à luz” (Bíblia de Jerusalém). Uma tradução literal seria: “os filhos se achegam AO LOCAL DO ROMPIMENTO, mas não há força para fazê-los nascer”.

3. O verso aparece no contexto da invasão assíria, cujo exército estava estacionado em Laquis, a poucos quilômetros de Jerusalém. A imagem de mulheres em trabalho de parto, incapazes de dar à luz, fui usada pelo rei Ezequias para enfatizar sua tristeza frente à ameaça imposta pelo exército inimigo, que revelava ser capaz de permitir a vida ou declarar a morte dos filhos do seu povo. A fraqueza da mãe reflete a fraqueza de Jerusalém.

4. No livro do profeta Oséias, o “mishber”, nosso “colo do útero”, reaparece, desta vez enfatizando a apatia do bebê, que não reage frente aos esforços desesperados da parteira: “os cordões do parto vêm sobre ele, mas ele é filho não sábio, porque é tempo [de nascer], mas não toma posição no local dos filhos” (Os 13,13). Os “cordões do parto” são as dores do parto e a não “tomada de posição” indica a falta de cooperação do bebê com a parteira e com a mãe.

5. Mishber só aparece nesses dois textos: Is 37,3 ( = 2Rs 19,3) e Os 13,13. O primeiro funciona como retrato do desespero: “Jerusalém está cercada, o que será de nossos filhos”. O segundo compara um “bebê insensato” – pouco disposto a colaborar com o trabalho da parteira – com Jerusalém, indiferente aos apelos de seu Deus (13,16).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

AS CIDADES DA "TERRA DE NOD"


1. Quem faz uma leitura atenta do texto do Gênesis prestando bastante atenção na narrativa, percebe que os descendentes de Caim fundam uma cidade. E por que eles fundam uma cidade? Bem, porque se para Adão a terra se tornou apenas pouco produtiva (Gn 3,17), para Caim ela se tornou estéril (4,11-12). Assim, o que resta aos cainitas é construir cidades, criar animais, inventar instrumentos musicais e fundir metais. Agricultura, nem pensar!

2. A imagem que acompanha este post vem do Manuscrito Egerton de Gênesis, produzido entre 1350-75. Ela exibe alguns dos descendentes de Caim mencionados em Gn 4,17-24: Henoc (construtor de cidades), Jabel (habitante de tendas e cuidados de rebanhos), Jubal (pai de todos os que tocam lira e charamela) e Tubalcaim (pai de todos os laminadores de cobre e ferro). Noema aparece fiando um tecido, mas o ofício de tecelã não é mencionado no texto, é criação do artista.

3. Todos os descendentes de Caim nascem a partir de sua união com uma mulher cujo nome não é mencionado (4,17). Quem é ela? Bem, o texto apenas diz que ela é da “terra de Nod” ( = terra da peregrinação, cf. 4,16). Quem lê o relato como se fosse um texto jornalístico ou algo produzido pela pena de um historiador fica confuso: “quem são os pais dessa moça”? Seria uma filha desconhecida de Adão e Eva? Ou, quem sabe, a serpente transformada em mulher?

4. Mas o texto não possui natureza histórica. Tudo o que ele pretende é comunicar uma mensagem. Guarde isso no coração e durma bem.



Jones F. Mendonça

TEOLOGIA E FILOSOFIA

1. Desde o momento em que o cristianismo se tornou uma religião proselitista, jamais deixou de empregar a filosofia para expor e dissecar os dogmas de fé. Paulo, por exemplo, claramente faz uso de elementos da filosofia platônica e estoica para comunicar sua mensagem. Quando diz, por exemplo, que as realidades espirituais são percebidas “como que por espelho” (1Co 13,12) ou que algumas ações humanas devem ser condenadas por agirem “contra a natureza” (Rm 1,26), toma por empréstimo categorias mentais e expressões linguísticas tomadas do platonismo e do estoicismo.

2. Os Pais da Igreja dissecaram os dogmas de fé a partir da filosofia neoplatônica; os escolásticos fizeram isso lançando mão da filosofia aristotélica; os reformadores retornaram a Platão; os protestantes liberais usaram os óculos da filosofia kantiana; Karl Barth, na primeira fase de seu pensamento, buscou apoio no existencialismo de Kierkegaard. E tem mais. Os teólogos da libertação viram até a possibilidade de dialogar com a filosofia marxista. E pode isso, Arnaldo? Ora, claro que pode. Se foi possível instrumentalizar Platão, Aristóteles, Kant e tantos outros, porque não seria legítimo articular fé e filosofia a partir de Marx?


Jones F. Mendonça

A VOZ DE JEREMIAS

1. Alguns textos que compõem os livros proféticos são realmente difíceis de interpretar. Isso acontece porque nem sempre é possível identificar a voz de quem fala. Um oráculo pode começar com a fala divina e no meio do caminho alternar para outra voz (e outro tempo verbal). Quero tomar como exemplo um trecho do livro do profeta Jeremias (Jr 9,9-11).

2. Veja que em 9,9 a voz que fala é a de Yahweh: “Não deveria eu castigá-los por isso? ...contra uma nação como esta não deveria eu vingar-me?”. No verso seguinte a imagem evocada pelo texto é a de alguém que chora: “sobre as montanhas elevo gemidos e prantos”. Pergunta: quem chora é o próprio Yahweh ou o profeta que anuncia sua mensagem? Isso não fica claro.

3. No v. 11 Yahweh expõe nova sentença contra a capital de Judá: “Eu farei de Jerusalém um monte de pedras”. Temos assim o seguinte quadro: v. 9: Yahweh ameaça punir Jerusalém (futuro); v. 10: Alguém chora por uma cidade que aparentemente já está destruída (presente); v. 11: nova ameaça contra Jerusalém (futuro).

4. É possível que um editor tenha enxertado o v. 10 entre os vv. 9 e 11, visando dar mais dramaticidade ao texto. Neste caso o choro seria o do profeta. Também é possível que os três versos venham da mão de um mesmo autor. O choro do v. 10 seria expressão da tristeza divina por aquilo que a própria divindade fará em breve contra Jerusalém.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

ZADOQUITAS E AARONITAS

1. Lemos em 2Sm 8,18 que “os filhos de Davi eram sacerdotes”. Esta declaração [em tese] é problemática, porque os sacerdotes precisavam pertencer à linhagem de Aarão (Ex 28,1). Alguns tradutores, na maior cara de pau, traduzem assim: “Os filhos de Davi eram Chefes de Estado”. Mas o hebraico registra coheniym (כהנים), sacerdotes. Os filhos de Davi podiam ser sacerdotes? Como?

2. Ezequiel 48,11 traz à tona outra questão. De acordo como profeta Ezequiel, os sacerdotes precisavam ser “filhos de Zadoc” e não “filhos de Aarão”: “Darás aos sacerdotes levitas, aos da família de Zadoc, que se aproximam de mim para me servirem” (Ez 43,19). Trocando em miúdos, precisavam ser zadoquitas, não aaronitas. Zadoc, para quem não sabe, foi sacerdote sob o governo de Davi (2Sm 8,17).

3. O Deuteronômio deixa as coisas um pouco mais complicadas, uma vez que usa a expressão “sacerdotes levitas” (Dt 17,9). O texto parece sugerir que todos os levitas podiam ser sacerdotes e não apenas os “Filhos de Aarão”, um ramo restrito dos levitas. Eita, que a coisa está ficando complicada. Candidatos até aqui: [1]“filhos de Davi”, [2]“Filhos de Aarão”, [3]“filhos de Zadoc” e [4]“Filhos de Levi”.

4. Outras figuras que aparecem exercendo o papel de sacerdotes são Moisés (Sl 99,6), Jetro (Ex 18,12) e Melquisedec (Gn 14,18-20). Nestes casos é preciso dar um desconto, porque é possível argumentar (em perspectiva sincrônica) que todos exerceram a atividade antes da instituição do sacerdócio. Mas o que dizer do personagem misterioso mencionado no Sl 110,4: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec”?

5. Quem é esse “tu”? Alguns acham que é Davi e que o texto procura dar legitimidade às atividades sacerdotais exercitas por Davi e seus “filhos”. Neste caso Davi seria sacerdote de uma linhagem especial, como Melquisedec. Outros acham que a ideia é dar legitimidade ao sacerdócio zadoquita, que também não era levita (alguns até sugerem que ele era um sacerdote jebuseu). Segura essa, varão!

6. A verdade é que o livro de Hebreus viu no Sl 110,4 uma abertura possível, capaz de legitimar a classificação de Jesus como sacerdote, mesmo sendo da tribo de Judá, portanto, não levita: “Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote para a eternidade, segundo a ordem de Melquisedec” (Hb 6,20). O autor de Hebreus parece estar dando uma resposta a opositores que não viam sentido em tratar Jesus como sacerdote.

7. No ponto 4 ficou faltando outro personagem não levita que exerceu atividades como sacerdote: Samuel. Acontece, minha agente, que o moço era da tribo de Efraim, era efraimita... (cf. 1Sm 1,1). 


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

PENTECOSTES É BABEL AO AVESSO


1. De modo geral os exegetas medievais (judeus e cristãos) se perdiam em interpretações bíblicas sem pé nem cabeça, impulsionados pelo método alegórico. Mas estas duas ilustrações inseridas na p. 036v do manuscrito Speculum humanae salvationis (séc. XV) indicam que o artista percebeu um nítido paralelo entre At 2,1-13 e Gn 11,1-9.

2. Em Babel o povo afronta Deus; em Pentecostes se submete a Deus. Em Babel os povos se distanciam uns dos outros; em Pentecostes ele se reúnem em Jerusalém. Em Babel as línguas são confundidas; em Pentecostes todos voltam a falar "a mesma língua". Em Babel o povo tenta subir até Deus; em Pentecostes é o espírito divino que "desce" até o grupo reunido.

3. É possível (e até provável) que a composição tenha sido influenciada pela leitura de algum comentarista medieval. De uma boa olhada no manuscrito aqui.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

SOBRE O TETRATEUCO EM CINCO PONTOS


1. Um leitor atento percebe com facilidade que sob a perspectiva narrativa o Pentateuco deveria terminar no capítulo 27 de Números. E por quê? Bem, é que nesta parte do livro, Moisés, já velho, recebe a ordem divina para contemplar a terra que havia sido dada a seus pais, estando sob a cadeia montanhosa de Abarim. No v. 20 uma última ordem lhe é dada: “invista sobre ele [Josué] sua autoridade, a fim de que toda a comunidade de Israel lhe obedeça”. Fim do ministério de Moisés...

2. Ocorre que o livro de Números só termina no capítulo 36 e Moisés ainda reaparece recebendo ordens e se dirigindo à comunidade, tratando questões relativas a votos, festas, guerras, divisão da terra, heranças, etc. No capítulo 33 temos até mesmo uma recapitulação da trajetória do Êxodo. Deve parecer óbvio para qualquer leitor que o Pentateuco, tal como se encontra, é o resultado de uma compilação e não uma obra redigida pelo próprio Moisés.

3. É ainda mais surpreendente que Moisés reapareça no livro seguinte, o Deuteronômio, que significa “segunda lei” (deutero = segunda; nomos = lei). Este título foi dado de forma acertada, afinal o que é o Deuteronômio senão uma atualização da Lei em forma de pregação? Este último livro do Pentateuco, como muitos notaram, possui características muito diferentes dos primeiros quatro livros (o Tetrateuco), não apenas na forma, mas também no conteúdo.

4. Os tradutores da Bíblia de Jerusalém traduziram assim Nm 27,20: “comunica-lhe UMA PARTE da tua autoridade, a fim de que toda a comunidade dos filhos de Israel lhe obedeça”. O tradutor acrescentou o “uma parte” porque tentou fazer parecer ao leitor que a transferência de autoridade havia sido parcial, uma vez que o livro mantém Moisés como personagem principal até Deuteronômio 34, quando finalmente morre.

5. A morte de Moisés, em Dt 34, caberia muito bem no final de Nm 27. 



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O LIVRO DO LEVÍTICO E O NARIZ PROIBIDO



1. De acordo com algumas traduções do livro bíblico de Levítico, o texto de Lv 21,18 diz que nenhum homem que possua "nariz chato" (haram) poderá oferecer ofertas queimadas a Deus. Acontece que "haram" não significa "nariz chato" nem aqui nem na China. Vale destacar que a palavra "nariz" sequer existe no texto. "Haram" reaparece, por exemplo, em Js 11,21: "Josué os destruiu (haram), juntamente com suas cidades".

2. Tudo o que podemos saber é que o texto proíbe o acesso de pessoas "destruídas" (mutiladas?) a alguns locais considerados sagrados. Quando o texto hebraico foi traduzido para o grego, a palavra escolhida como equivalente a "haram" foi κολοβορριν, termo que significa, de acordo com alguns léxicos "nariz destruído/desfigurado".

3. É possível que um tradutor mal intencionado (sendo claro: racista) tenha buscado o significado de "haram" na versão grega do texto: "nariz desfigurado" e como tinha certa aversão por narizes que não se enquadravam no seu modelo ideal de nariz, achou por bem traduzir "haram" por "nariz chato". Traduzir textos antigos não é tarefa fácil, mas tem gente que força a barra. 



Jones F. Mendonça

sábado, 16 de novembro de 2024

CIRCUNCISÃO, ANTIJUDAÍSMO E ANTISSEMITISMO


1. De acordo com o livro do Gênesis, a aliança entre Yahweh e os descendentes de Abraão deveria ser indicada por uma pequena incisão no pingolim, na carne do prepúcio dos machos (Gn 17,9-14). Sabemos, graças a representações preservadas em gravuras, que os egípcios – ao menos parte deles – também praticavam a circuncisão. O livro do profeta Jeremias (9,25-26) indica que o costume era cultivado por amonitas, moabitas e edomitas. Incircuncisos – atestam diversos textos da Bíblia Hebraica – eram os filisteus.

2. Como marcadora de identidade, a circuncisão foi combatida severamente por Antioco IV Epifanes (175-164 a.C.), que desejava unificar culturalmente as regiões sob seu controle com a fim de que todos “fossem um só povo” (1Mc 1,41-48). A circuncisão judaica também incomodou imperadores romanos como Tibério (14-37), Antonino Pio (138-161) e Adriano. De acordo com a História Augusta, uma coleção de biografias de imperadores romanos iniciada em 117 d.C., os judeus se rebelaram contra Adriano “porque foram proibidos de mutilar seus órgãos genitais” (14.2).

3. Os romanos viam a circuncisão como “castração” ou “mutilação”, por isso eram por vezes severamente condenadas. A animosidade entre indivíduos inseridos na cultura greco-romana e os judeus não se dava por “antissemitismo”, mas devido à resistência dos judeus a se assimilarem à cultura dos dominadores. Mais tarde, com a ascensão do cristianismo à religião oficial do império, no final do século IV, ganhou força o antijudaísmo, percebido, por exemplo, nos escritos de Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho de Hipona.

4. O antissemitismo, tal como conhecemos hoje, é o resultado de uma lenta e contínua transformação que foi capaz de converter preconceito religioso em preconceito étnico-racial. Entre cristãos da Idade Média, pouco acostumados à diversidade religiosa, os judeus eram vistos como um povo estranho. Além disso, a proibição da igreja aos empréstimos a juros feitos por cristãos a outros cristãos (considerado “pecado de usura”) abriu uma nova oportunidade aos judeus, acostumados a viver da atividade do comércio e dos negócios. Esse sucesso despertou a inveja e o ódio de muitos cristãos.

5. Deixo aqui a indicação de três livros sobre o assunto, ambos escritos por Robert Chazan, Professor de Estudos Hebraicos e Judaicos na Universidade de Nova York: 1) From anti-judaism to anti-semitism; 2) Reassessing Jewish life in Medieval Europe; 3) Medieval stereotypes and modern antisemitism.  


Jones F. Mendonça

sábado, 9 de novembro de 2024

"DEUS COMO MÃE" EM KIVITZ


1. Muita gente tratando a representação de “Deus como mãe” exposta por Kivitz como mais uma invencionice kivitziana. Vale lembrar que Leonardo Boff escreveu “O rosto materno de Deus” em 1979. Inspirado na psicologia de profundidade de Carl Jung, Paul Tillich destacou, em “Reabrindo o problema trinitário” (escrito na década de 50!), que o protestantismo “praticamente expurgou o elemento feminino na expressão simbólica de nossa preocupação última”. Mas sempre será possível encontrar uma saída para que essa dimensão feminina se manifeste.

2. No universo pietista, por exemplo, não raro surgiam representações de Jesus bastante efeminadas. Entre os católicos Maria preencheu essa lacuna com muita força. No final da década de 90, quando explodiu o movimento “adoração extravagante”, algo curioso aconteceu. A igreja era comumente apresentada como mulher, como noiva à espera do noivo: Jesus. Nas capas dos CDs Jesus aparecia como guerreiro, com tatuagem na coxa, montado em um cavalo e cabelos soprados pelo vento. As canções falavam de beijos, abraços e toques amorosos. Eram até constrangedoras.

3. O feminino sempre esteve presente na piedade popular: escondido, velado, disfarçado. Mas sempre presente. 


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

TEOLOGIA, POLÍTICA, SANGUE E ENTULHO


1. Quem lê com atenção o texto bíblico, percebe que de fato são inúmeras as passagens que enfatizam a promessa da terra aos descendentes de Abraão, Isaac e Jacó. Embora os limites dessa terra não sejam definidos com clareza no texto, é inegável que o tema da terra está presente de alguma maneira em praticamente todos os livros do Antigo Testamento. Poderíamos dizer que a terra está para as promessas assim como as unhas estão para os dedos.

2. Acontece que as promessas da posse dessa terra são constantemente apresentadas de forma condicional. Isto é o que diz, por exemplo, Deuteronômio 28. De acordo com este texto, sempre que os descendentes de Abraão, Isaac e Jacó abandonarem os preceitos, os mandamentos e as leis de Moisés, fazendo aquilo que “é mal aos olhos do Senhor”, a terra poderá ser confiscada e entregue a povos estrangeiros (Dt 28,47-68).

3. No livro de Josué a terra prometida é perdida para os inimigos diversas vezes, sempre que o povo faz algo que é visto como "mal aos olhos do Senhor" (Jz 2,11-15; 3,7-11; 4,1-3; 10,6-9; 13,1). É também a partir do que está expresso na maldição presente no capítulo 28 do Deuteronômio que o profeta Jeremias julga correto dizer que a terra foi perdida para os babilônios devido ao pecado (2Rs 25,1-21; Jr 21,1-10).

4. Se eu fosse dessas pessoas que gostam de usar linguagem religiosa para justificar maldades feitas em nome de Deus – mas não gosto! – eu poderia argumentar, usando as Escrituras, que a terra prometida a Abraão, Isaac e Jacó, deve ser dada aos árabes. Mas como assim? Ora, porque sempre será possível argumentar que esses descendentes se afastaram dos preceitos divinos e que estão sujeitos, portanto, ao que diz Deuteronômio 28.

5. Eu considero, no entanto, que qualquer teologia que procure legitimar posse de terras, guerras, deslocamento forçado de pessoas, destruição de moradias ou assassinatos, seja a favor ou contra judeus, árabes, iranianos, russos, canadenses, japoneses, ou qualquer outro povo que exista sobre a face da terra, é algo abominável, desprezível, repugnante. 



Jones F. Mendonça

OS ÁRABES NA ANTIGUIDADE: DOS ASSÍRIOS AOS OMÍADAS


1. Cultivo há muitos anos grande interesse pela história do povo judeu e do povo árabe. Obras sobre a história dos judeus são facilmente encontradas no mercado editorial, dada sua relação com aquilo que convencionamos chamar de "cultura ocidental".

2. Um trabalho muito bem fundamentado sobre a história dos árabes, incluíndo o período pré-islâmico, é este que aparece na imagem que acompanha o post: "The Arabs in Antiquity: their history from the Assyrians to the Umayyads".

3. O autor, Jan Retsö, é professor no Instituto de Línguas Orientais e Africanas da Universidade de Gotemburgo. Seus interesses de pesquisa são: linguística árabe; línguas semíticas; e história pré-islâmica da Arábia.

4. Retsö explica que o registo mais antigo sobre um grupo classificado como "árabe" aparece em um documento relacionado à batalha de Qarqar, na Síria, em 853 a.C. (Monólito de Curque). Mas será que os "árabes" mencionados no texto possuem alguma relação com os árabes modernos? Retsö não foge de questões espinhosas como esta.

5. O mesmo podemos dizer em relação aos israelitas. Será que o "Israel" mencionado na Estela de Merneptah (1208 a.C.) tem relação com o que mais tarde ficou conhecido como"Reino de Israel"? As respostas nem sempre são fáceis.

6. Em breve postarei alguns detalhes interessantes sobre o livro de Jan Retsö que discutem trechos da Bíblia Hebraica relacionados aos "árabes", como Crônicas (17,1; 21,16; 22,1; 26,7); Neemias (2,19; 4,7; 6,1); Isaías (13,20) e Jeremias (3,2).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

NUMINOSUM NO FACEBOOK


Tudo o que publico aqui no Blog é reproduzido na minha página pessoal do Facebook. Aliás, há coisas que publico lá, mas não aqui (por falta de tempo). Assim, caso você não queira perder nenhuma publicação e contar com ferramentas melhores para inserir comentários (no Blog a interação é horrível), siga-me no Facebook ou faça uma solicitação de amizade. Terei prazer em aceitar seu convite (exceto se suas publicações incitarem o ódio político ou religioso).


Jones F. Mendonça.

domingo, 29 de setembro de 2024

SEXO E TROCADILHOS


1. De acordo com o capítulo 30 do Gênesis, Raquel e Lia deram filhos a Jacó por meio de duas concubinas, Bilhah e Zilpah. Quem lê a Bíblia em idioma diferente do hebraico não percebe que os nomes das crianças aparecem relacionados a experiências pessoais vivenciadas por Raquel e Lia. Preste bastante atenção.

2. Quando Bilhah (בלהה) concebe, diz-nos o texto (cf 30,6), Raquel celebra com alegria dizendo assim: “ele se chamará DAN porque Deus me fez DANaniy (justiça). No verso seguinte Bilhah concebe de novo e Raquel dá à criança um nome cuja grafia se assemelha à palavra “luta”. veja: “ele se chamará NAFTALI, pois as NAFTULey (lutas) de Deus lutei contra minha irmã”.

3. O texto passa em seguida a apresentar os nascimentos dos filhos de Zilpah, concubina de Lia. O mesmo padrão se repete. A mãe do menino dá à luz e Lia faz festa: “entrou GAD (sorte), por isso o chamou GAD” (Não escrevi errado, o texto diz “entrou” e não “estou”). Bem, Zilpah tem então um segundo filho e Lia mais uma vez nomeia a criança: “ele se chamará ASHER, pois ISHRuniy (feliz)...”.

4. Asher e Ishruniy podem parecer palavras bem diferentes, mas o hebraico não possui vogais. Ambas as palavras são grafadas com as consoantes alef (א) + shin (שׂ) + resh (ר). Assim, ao que parece a ideia era associar o nome da criança a uma palavra grafada com consoantes de mesma raiz e não necessariamente à uma palavra com mesma sonoridade fonética.

5. Em tempo: "entrou sorte" pode ter conotação sexual, porque o verbo "entrar" (בוא) aparece muitas vezes relacionado à entrada dos noivos na tenda para fazerem aquilo que os noivos fazem na noite de núpcias. Será que a ideia é dizer que a "entrada" foi afortunada? Não tenho certeza, mas é questão para se investigar.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O RELATO DA CRIAÇÃO E A IDEOLOGIA REAL ASSÍRIA

1. Leio “The Story of Paradise in the Light of Mesopotamian”, escrito por Arie van der Kooij. O autor defende que a condenação dirigida ao primeiro homem e à primeira mulher por terem comido da “árvore do bem e do mal” (ou “do certo e do errado”), funciona como crítica à ideologia real dos reis mesopotâmicos, particularmente dos assírios. Quer saber de onde ele tirou isso? Explico.

2. Kooij nota que a capacidade de “distinguir entre o bem e o mal” é um atributo real, tal como indica 2Sm 14,17: “o rei [referindo-se a Davi], meu senhor, é como um anjo de Deus, capaz de discernir entre bem e mal”. Aqui, ele destaca, essa capacidade é apresentada como algo positivo. Ora, se é assim, porque Gênesis condenaria uma dádiva tão nobre, tão necessária?

3. Ocorre que há textos na Bíblia Hebraica que criticam essa “capacidade”, vista como reflexo de uma postura arrogante e destrutiva. No livro do profeta Isaías, por exemplo, o rei assírio se gaba de oprimir as nações “com a força de suas mãos”, uma vez que possui “sabedoria e entendimento”. Em seguida vem o alerta: “seu coração é arrogante e soberbo” (Is 10,12-13).

4. É claro que o autor sustenta sua tese com outros argumentos, não mencionados nos pontos 1-3 deste post. O artigo completo, escrito por Kooij, pode ser encontrado na seguinte obra: DELL, Katharine J; DAVIES, Graham; VON KOH, Yee (Edit.). Genesis, Isaiah and Psalms: a festschrift to honour Professor John Emerson for his eightieth birthday. Leiden/Boston: Brill, 2010, pp. 3-22.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 17 de setembro de 2024

A BÍBLIA COMO ELA É

1. Um leitor atento percebe com facilidade que muitos dos livros que compõem a Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento) não são obra de um único autor, mas o resultado de um longo e complexo processo redacional. Vejamos o caso do Deuteronômio. No capítulo 34, último do livro, lemos assim: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés” (34,10). É óbvio que quem escreveu esse verso não foi o próprio Moisés. O texto fala de alguém do passado e foi redigido em terceira pessoa.

2. Logo no início do livro de Eclesiastes o leitor é informado a respeito do autor do texto: “palavras de Qohélet (Pregador ou Sábio, em algumas versões), filho de Davi, rei em Jerusalém” (1,1). Não é difícil notar que este verso veio da mão de um editor, interessado em retransmitir aos leitores as tais “palavras de Qohélet”. No final do livro (12,90), este mesmo editor ainda diz: “Além de ter sido sábio, Qohélet também ensinou o conhecimento...”.

3. Agora vejamos o Livro do Profeta Jeremias. Logo no primeiro verso do capítulo 1 um editor deixa claro que pretende expor as “palavras de Jeremias, filho de Helcias”. No v. 2 ele situa essas palavras no tempo: “nos dias de Josias...”. E acrescenta, no v. 3: “além disso, nos dias de Joaquim...”. Apenas no v. 4 o texto é redigido em primeira pessoa: “a palavra de Yahweh me foi dirigida nos seguintes termos”.

4. E o que dizer a respeito da autoria do livro de Provérbios "de Salomão". Veja que os capítulos 30 e 31 são atribuídos a indivíduos estrangeiros, como "Agur, filho de Jaces" (30,1) e "Lamuel, rei de Massá"(31,1). O mesmo ocorre com os Salmos, que recebem títulos relacionados a pessoas diferentes: Davi, Salomão, Asaf, Moisés, Hemã, os filhos de Coré. Mas a tradição gosta de repetir "Salmos de Davi". Somos sempre tentados a atribuir tradições que consideramos valiosas a figuras especiais.

5. Quando o texto é analisado mais de perto, com as ferramentas do método histórico-crítico, percebemos que ele é formado por muito mais camadas. Isso acontece porque na tradição literária dos antigos israelitas era comum reler e reinterpretar o texto à luz de novas situações. Os responsáveis pela produção do texto não eram historiadores, interessados em reproduzir friamente os fatos. Pretendiam, ao contrário, exercer o ofício de intérpretes da realidade, que era exercido não com as lentes da razão, mas com os olhos da fé sobre o chão da tradição.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 27 de agosto de 2024

NOVA COLEÇÃO SOBRE PERSONAGENS BÍBLICOS: MOISÉS

Desde que o rabino Avraham ibn Ezra escreveu, no século XII, um comentário sugerindo que certas passagens da Torah (o Pentateuco cristão) não poderiam ter sido escritas por um autor apenas (Moisés), a pesquisa sobre a autoria do Pentateuco e, por conseguinte, sobre a própria figura do profeta como personagem histórico, passou por profundas transformações.

Neste livro, escrito por Thiago Pacheco, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a figura de Moisés é analisada com as ferramentas do método histórico-crítico e da teoria narrativa de Paul Ricoeur. Assim, destaca as diversas facetas de Moisés que se mesclam no texto: guerreiro, profeta, sacerdote, operador de milagres e muito mais.

Não apenas atento às diversas camadas redacionais do texto em busca de como foram articuladas as diversas tradições a respeito de Moisés, o autor ainda brinda o leitor com reflexões teológicas relacionadas às tradições preservadas na Bíblia Hebraica a respeito da figura de Moisés, tais como profecia, milagre, fé e experiência religiosa.

O livro, publicado pelo Ateliê de Humanidades Editorial, já está disponível para compra na pré-venda no site da Amazon. Reserve já o seu.


Jones F. Mendonça

RUAH, NESHAMAH, NÉFESH: CONSIDERAÇÕES SOBRE O AR EM MOVIMENTO


1. Há três palavras principais no hebraico relacionadas ao ar em movimento: ruah, neshamah e néfesh. Tais palavras não são sinônimas, mas podem ser utilizadas de forma intercambiável em alguns casos. Ruah, por exemplo, serve para indicar um vento forte, como aquele que abre o Mar dos Juncos: “E Yahweh, por um forte vento oriental que soprou toda aquela noite” (Ex 14,21). Mas ruah também serve para designar vento brando, como o “vento” que sai dos nossos narizes, o “vento de vida”, o fôlego (Gn 7,22). Em boa parte dos casos ruah é traduzida por “espírito” (cf. Jz 11,29), potência invisível que como o vento anima aquilo que toca.

2. Neshamah tem sentido mais restrito, substantivo feminino utilizado principalmente para indicar o ar que sai das narinas, o fôlego. Em Gn 2,7 Yahweh modela o homem do solo e sopra em suas narinas a “neshamah” de vida, ou seja, o “vento”, o “fôlego” de vida. Para indicar a morte de toda a população de uma cidade, exterminada pala espada, fazia-se alusão a abolição de todo o fôlego: “não restou nenhum fôlego” (Js 11,14), ou seja, nenhum ser com vida. Em Jó 4,9 – expostos em paralelismo semântico – ruah e nehamah aparecem como sinônimos: “com a neshamah de Deus perecem, com a ruah de sua ira se consomem”.

3. Néfesh indica, em sentido primário, a garganta. Assim, quando Yahweh sopra nas narinas do primeiro homem a “neshamah” de vida, o “fôlego” de vida, ele se torna uma “garganta” viva (Gn 2,7), ou seja, um ser que respira, que lamenta, que grita, que sente sede e fome e, claro, que também desobedece. Em muitas Bíblias néfesh é traduzido por “alma”. A tradução não está errada se considerarmos que “alma” indica aquilo que anima o corpo, que lhe dá vida. Néfesh não tem qualquer relação com a ideia grega de uma “alma imortal”, como antítese ao corpo finito, percebido como uma espécie de casulo ou prisão da alma (percepção adotada por Calvino).


Jones F. Mendonça