segunda-feira, 30 de novembro de 2015

MATEUS BRONCO, ANJO DELICADO [CARAVAGGIO]

Caravaggio pintou "Mateus e o anjo" (1602) deste jeito. A igreja recusou a obra. A justificativa: o apóstolo é retratado de forma rude e o anjo parece corrigi-lo enquanto escreve.

O anjinho delicado com olhos semiabertos tocando nas mãos do rude Mateus talvez tenham contribuído para a rejeição da obra. O anjo parece dizer: "não é assim, Mateus!". O apóstolo franze a testa e dá aquela olhada pela esquerda.





Jones F. Mendonça

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

AINDA TIBERÍADES [GEOGRAFIA BÍBLICA]

Tiberíades, capital da Galileia a partir de 20 d.C., sede do governo de Herodes Antipas, tetrarca da Galileia na época da crucificação de Jesus. O lago à esquerda é o Mar da Galileia (ou lago de Tiberíades, ou lago de Genazaré). A foto contempla o sul do lago.



Jones F. Mendonça

sábado, 21 de novembro de 2015

TIBERÍADES [GEOGRAFIA BÍBLICA]


"Depois disso, passou Jesus para a outra margem do mar da Galileia ou de Tiberíades" (Jo 6,1).

Tanto o mar da Galileia como a cidade construída na margem ocidental do lago receberam o nome em honra ao imperador Tibério (14-37 d.C.).

A ilustração foi produzida por Balage Balogh.

Tiberíades no Google Maps: 





Jones F. Mendonça

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MUSONIUS RUFUS E PAULO DE TARSO: CASAMENTO E HOMOSSEXUALIDADE NO PENSAMENTO ESTOICO

Leio atentamente textos a respeito do pensamento de Musonius Rufus (o filósofo nada escreveu. Seu pensamento foi preservado por seus discípulos), filósofo estoico romano do primeiro século que ensinou em Roma por volta de 80. São particularmente interessantes suas observações a respeito da relação entre pessoas do mesmo sexo, da finalidade e modelo ideal de casamento, temas igualmente abordados por Paulo de Tarso em suas epístolas. Em relação ao adultério e a relação sexual entre homens ele disse o seguinte: 
Todas as relações sexuais que envolvem adultério são ilegais. Igualmente intoleráveis são as de homens com homens, porque é uma coisa monstruosa e contrária à natureza (A indulgência sexual, discurso XII).
A passagem (especialmente o “contrário à natureza”) lembra Paulo aos romanos: 
Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens (Rm 1,26-27).
Rufus também escreveu sobre a importância de uma vida pautada na doação mútua:   
“O marido e a mulher [...] devem estar juntos no propósito de fazer uma vida em comum [...], além disso, [...] nada [deve ser considerado] peculiar ou privado para um ou outro, nem mesmo seus próprios corpos” (A indulgência sexual, discurso XII).
Mais uma vez são nítidos os pontos de contato com a epístola aos romanos: 
“com amor fraterno, tendo carinho uns para com os outros, cada um considerando o outro como mais digno de estima” (Rm 12,10).
Leia os ensinamentos de Musonius Rufus  aqui e aqui



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

CHEVITARESE NO STBC

Divulgando: amanhã (10/11/15, às 19:00h) o professor e historiador André Chevitarese ministrará palestra no Seminário Teológico Batista Carioca (STBC). O professor é especialista em história antiga grega, romana, judaísmo helenístico e paleocristianismo. A entrada é FRANCA.

O endereço: Rua Ferreira Borges 54 - 1º andar (auditório da PIB de Campo Grande) Próximo à Rodoviária de Campo Grande, RJ.

Aguardo você lá!



Jones F. Mendonça

sábado, 7 de novembro de 2015

HUNEFER NO TRIBUNAL DE OSÍRIS

O papiro de Hunefer, ricamente ilustrado e produzido na XIX dinastia (1310 e 1275), mostra o julgamento de um escriba de Tebas (o defunto Hunefer) no tribunal de Osíris, divindade associada à vida no além. Os detalhes da gravura são explicados em apenas 7 minutos num vídeo produzido pela ONG Khan Academy.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

REFORMA E ARTE CRISTÃ

A relação dos primeiros reformadores com obras de arte religiosa não foi boa. Para Karlstadt os “ídolos de óleo” seriam “invenção do demônio”. Zwinglio, querendo purificar as igrejas, baniu delas os órgãos e os corais. Lutero teve uma posição mais cautelosa: 
Os homens podem sucumbir diante do vinho e das mulheres. Vamos então proibir vinho e abolir as mulheres? O sol, a lua e as estrelas foram adorados. Vamos então arrancá-los do céu?.
Reconhecendo o valor didático das imagens, Lutero encomendou esta tela (“Lei e graça”) a seu amigo Lucas Cranach, em 1529:



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

BOBINHO E AS JAULAS MEDIEVAIS

Zé Bobinho vai ao cinema ver “Noé” e “Moisés” pensando que lá estarão Lagoinha cantando aos prantos e Malafaia pregando aos berros. Trata-se apenas de um filme, mas ele pensa que é culto. Irrita-se porque a arca não tem as medidas do Gênesis e Moisés não é gago como nas linhas da Torá. Imagina que é evangelismo, mas é apenas “película do capital” em 3D.

No final de semana foi fazer prova do ENEM. Pensava encontrar citações de São Paulo e dos Evangelhos, como se o exame fosse classe de catecúmenos, primeira comunhão ou profissão de fé. Bobinho não se dá conta de que já saímos do medievo, que universidade não é catedral, que a ciência não é mais serva da religião. Quer jogar dados medievais no tabuleiro da modernidade.

Com saudade de chãos mais sólidos e castelos menos fluidos, Bobinho tem revelado certa simpatia por movimentos radicais, autoritários, misóginos, xenofóbicos e até mesmo violentos. Revela-se disposto a trocar liberdade por segurança, asas por clausuras coletivas. Mostra-se incapaz de articular sua fé no confuso movimento de “sacralização do profano” e “profanação do sagrado”.

Haverá esperança para Bobinho?



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

ENEM SOB CENSURA

Ano de 2016. Os responsáveis pela elaboração das provas do ENEM encontram-se diante de um grave dilema. Sentem-se desconfortáveis em inserir citações de Karl Marx nas provas após os protestos nas redes sociais. Tudo porque o filósofo teria traído sua esposa com a empregada, vivido às custas de um burguês e perdido três de seus filhos para o suicídio. Deram-se conta de que boa parte do povo não consegue distinguir a vida acadêmica da vida pessoal. Uma pena.

Depois dos protestos de Bolsonaro e Feliciano, a filósofa francesa Simone de Beauvoir também acabou banida. Em sua ficha constam muitas imoralidades, tal como o triângulo amoroso com Sartre e Olga Kosakiewicz. Simone também é acusada de delitos graves como roer unhas, faltar às missas e, o pior: só tomar banho aos sábados. Um absurdo!

Após pequeno burburinho alguém sugeriu o nome de Martinho Lutero, mas foi imediatamente advertido de que - apesar de sua posição firme (e até “virtuosamente violenta”) contra os camponeses insurgentes de 1524 – o reformador foi um rebelde! Sua ousadia ao desafiar o papa, maior autoridade religiosa da época, pode ser um estímulo à indisciplina dos jovens. Há ainda aquele texto de 1543 incentivando a queima de sinagogas... “Um perigo esse Lutero!”, gritariam os fundamentalistas milenaristas pró-Israel.

Um jovem professor negro anunciou com entusiasmo o nome de Luther King. A indicação, infelizmente, logo perdeu força. Gravações feitas pelo FBI – explicou um jovem doutor - revelaram que o líder batista teve amantes. Além do mais, como Lutero, pode ser visto como má influência para a juventude, pois sua trajetória é marcada pela rebelião contra as leis do Estado.

Um professor de cabelos grisalhos propôs um personagem que teria uma ficha totalmente limpa: Jesus Cristo. Mas o nome também trazia problemas. Sua mãe casou-se grávida (Jesus não se enquadra no padrão familiar proposto pela bancada evangélica, já que teve pai ilegítimo), andava na companhia de gente considerada a “escória da sociedade” (como os sírios e haitianos de Bolsonaro) e foi definido como subversivo pelas autoridades religiosas (“subversivo” não é adjetivo adequado às pessoas de boa família). Para piorar, é bem conhecida sua condenação num tribunal presidido por Pôncio Pilatos, autoridade divinamente constituída.

O ENEM 2016 acabou cancelado por falta de santos.


Jones F. Mendonça

ÉDEM PERDIDO

"Bom era no meu tempo", frase que já era repetida no Antigo Egito, anunciada aos filhos em Persépolis, recitada aos jovens em Roma, proclamada aos mancebos do século XXI.


Utopia do pretérito perfeito.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

CANTARES E OS JARDINS DE ENGADI

O livro bíblico de Cantares, com sua descrição calorosa da relação carnal entre um homem (Sholomoh?) e uma mulher (Shulamit), sempre foi visto com reservas pelos doutores do judaísmo e do cristianismo. Não foram poucas as tentativas feitas para suprimir o embaraço despertado por sua leitura.  

O rabino medieval Rabi Shlomo Yitzaki (1040-1105), por exemplo, interpretou o saquinho de mirra entre os seios de Sulamita (Ct 1,13), como sendo uma alusão à shekhinah (presença) de Deus entre os querubins da arca da aliança. Trocando em miúdos: o saquinho de mirra representaria a presença de Deus e os seios os dois querubins.

Para Cirilo de Alexandria (378-444 d.C.), os seios representam, respectivamente, o Antigo e o Novo Testamento, entre os quais está Cristo. Justo de Urgel, bispo de Valencia (século VI), identificou os seios com os doutos professores da igreja (!), e o pseudo-Cassiodoro pensou que o versículo se refere à crucificação de Cristo, que é mantido em eterna lembrança entre os seios do crente (!). Será?

Bem, deixemos de lado as leituras alegóricas e atentemos para um detalhe: no v. 13 o amado é comparado a um saquinho de mirra junto ao corpo da mulher: “entre seus seios”. Seria de se esperar que o “cacho de cipro florido” (nova metáfora para o amado, v. 14), fosse situado em outra parte do corpo da mulher, mas o ele é colocado “entre os [ou nos] jardins de Engadi”, um oásis nas proximidades do Mar Morto.

Então talvez os “jardins” não sejam exatamente jardins...


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

SOBRE ALEGORIAS E CRÍTICAS TEXTUAIS MEDIEVAIS

O professor Joy Schroeder passa boa parte do seu tempo livre em cafés, traduzindo comentários bíblicos medievais do latim para o inglês. Alguns dos comentários mais curiosos destacados pelo professor podem ser lidos num artigo publicado no The Bible and Interpretation.

Chamou minha atenção uma interpretação alegórica antijudaica feita pelo monge místico medieval Rupert de Deutz (c. 1075 – c. 1129) a respeito do corvo enviado para fora da arca por Noé (para ele o corvo representa os judeus!?) e alguns ensaios de crítica textual (costuras, variações estilísticas, contradições aparentes, e discrepâncias verbais).

O link já traduzido aqui.

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

JOHN WYCLIF: SEXO, RELIGIÃO E POLÍTICA

No século XIV, diante do desejo de não mais recolher tributos ao papa, um teólogo inglês chamado John Wyclif foi contratado pelo rei João de Gante como “peculiares regis clericus” (clérico a serviço especial do rei) a fim de preparar uma defesa contra o envio dos tributos. Com muita astúcia, Wyclif saiu-se com essa: 
O papa não pode pedir este tesouro a não ser por meio de esmolas... Uma vez que toda a caridade principia em casa, seria obra não de caridade, e sim de loucura canalizar as esmolas do reino para o exterior [nessa época o papa residia na França, inimiga da Inglaterra] quando o próprio reino está necessitado delas.
Vendo-se sem saída diante da recusa da Igreja em atender ao pedido, Wyclif recomendou a independência da Inglaterra. Sua proposta soou tão escandalosa à época que os conselheiros do rei recomendaram que não mais fizesse declarações sobre o assunto. Mas as sementes de suas ideias brotaram e fincaram raízes.

Cerca de duzentos anos depois, aproveitando-se do êxito da reforma de Lutero, um rei  levou a cabo a proposta de Wycliff. Henrique VIII confiscou os bens da igreja, casou-se de novo (ignorando recomendações do papa) e criou seu próprio clero. E foi assim que nasceu a igreja anglicana.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 6 de outubro de 2015

LEGEM MOSI

Por fim o Nazareno diz à multidão enquanto risca a terra com o dedo: “aquele que não tem pecado atire a primeira pedra”. E então Zé Bobinho, filho de Bar Hanan, grita lá do fundo: “vai defender bandida, né, Jesus!”

Saindo dali Bobinho fez discípulos que até hoje vivem entre nós (dizem que Bobinho fez mais discípulos que o próprio Jesus).



Jones F. Mendonça

PIA DESIDERIA, DESIDERIA CARNIS

Passa da terceira hora e os santos de Jerusalém descem a Jericó. No caminho, ferido ao chão, jaz um viajante estrangeiro sírio-fenício fugindo da calamidade que assola sua terra. Um estimado sacerdote, guardião da moral e dos bons costumes, passa ao longe e resmunga com desdém: “Escória da sociedade! Que a salvação e o divino auxílio escondam de ti o rosto”.

Em seguida, assobiando deslumbrante canção e exibindo alvas vestes, surge um levita servidor do templo. Ao confundir o agonizante estrangeiro com um assaltante do deserto, o levita profere esta atroz maldição inspirada no Deuteronômio: “Deus te fira com a loucura, a cegueira e a demência. Que a desgraça te alcance como espetáculo aos teus olhos” (Dt 28,28.34). E finaliza: “bandoleiro bom é bandoleiro morto”.

Parece uma história de 2000 anos, mas foi ontem, é hoje, será amanhã. Sempre em nome da santa piedade e dos mais elevados valores da religião. 



Jones F. Mendonça

sábado, 3 de outubro de 2015

JESUS EM CINCO FASES (FASE III)

Falei aqui e aqui a respeito da primeira e da segunda fase da pesquisa sobre o Jesus histórico a partir da proposta de Gerd Theissen (a pronúncia é "Guertáissen"), que divide a pesquisa em cinco fases (“O Jesus histórico, um manual”, Loyola, 2004, 651 páginas). No post de hoje falarei um pouco sobre a terceira fase.

O otimismo em reconstruir a personalidade legitimadora de Jesus e de sua história, marca da segunda fase, deu lugar ao que Theissen chama de “colapso da pesquisa sobre a vida de Jesus” (p. 24). O autor apresenta três estudiosos que contribuíram para o fim desse otimismo:

1. Albert Schweitzer (1875-1965), teólogo e médico que deu nome a um conhecido hospital no Rio de Janeiro, desvelou o “caráter projetivo das imagens das vidas de Jesus”, demonstrando que cada imagem do Jesus da teologia liberal revelava não sua face genuína, mas um ideal ético considerado mais digno de almejar (leia aqui a obra "The quest of historical Jesus", escrita por Schweitzer).

2. Wilhelm Wrede (1856-1906), em sua obra “O segredo messiânico e o Evangelho de Marcos” (1901), apontou o caráter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida de Jesus. Para ele o Evangelho de Marcos seria expressão da dogmática da comunidade pós-pascal projetada sobre a vida intrinsecamente não-messiânica de Jesus (as fontes teriam interesse teológico e catequético). O “segredo messiânico” (cf. 1,34; 1,44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,26) seria um recurso literário de Marcos com o objetivo de explicar à comunidade cristã primitiva por que Jesus só foi reconhecido como messias após sua crucificação. Com isso desaba a confiança na possibilidade de distinguir a partir de duas fontes entre a história de Jesus e a imagem do Cristo pós-pascal (leia uma crítica à teoria de Wrede aqui).

3. Karl Ludwig Schmidt (1891-1956) demonstrou o “caráter fragmentário dos evangelhos” ao argumentar que a tradição de Jesus consiste em “pequenas unidades” e que o quadro cronológico e geográfico “da história de Jesus” foi criado secundariamente pelo evangelista Marcos. Dessa forma a busca pela reconstrução da personalidade de Jesus a partir da sequência das perícopes revelou-se impossível. Mesmo as pequenas unidades, apontava a história das formas, são determinadas primariamente por necessidades da comunidade e apenas em segundo plano por recordações históricas.

Uma solução para o pessimismo quanto à possiblidade de reconstruir a figura de Jesus, sem que isso comprometesse os dogmas de fé centrais do cristianismo, foi apresentado por Rudolf Bultmann (1884-1976). Na opinião de Bultmann, mais importante exegeta da teologia dialética, o fator decisivo não era o que Jesus havia feito e dito, mas o que Deus tinha feito e dito na cruz e na ressurreição. A mensagem dessa ação de Deus, o “querigma” neotestamentário, não tem por objeto o Jesus histórico, mas o “Cristo querigmático”, ou seja, o Cristo anunciado pela igreja cristã primitiva.   



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

JAVÉ E OS DRAGÕES

Quando um fiel inserido no ambiente judaico cristão quer ler o relato de como mundo se formou certamente abrirá sua Bíblia nos primeiros capítulos do Gênesis. Em Gn 1,1-2,4a lerá o relato que destaca a criação do universo (cosmogonia) e em Gn 2,4b-25 outro relato destacando a criação do homem e da mulher (antropogonia). Mas estes não são os únicos relatos da criação presentes na Bíblia hebraica.

Salmos, Isaías e Jó contém resquícios de relatos da criação conhecidos pelos hebreus antes da redação do Gênesis, oriundos do ambiente cananeu. Vejamos: 
Sl 74,12-17 Tu porém, ó Elohim, [...] 13 dividiste o mar com teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas; 14 tu esmagaste as cabeças do Leviatã dando-o como alimento às feras selvagens; 15 Tu abriste fontes e torrentes, tu fizeste secar rios inesgotáveis; 16 o dia te pertence, e a noite é tua, tu firmaste a luz e o sol, 17 tu puseste todos os limites da terra, tu formaste o verão e o inverno.
Textos descobertos no século XX em Ugarit, Síria, revelaram que este texto do Salmo é um resumo de um mito da criação cananeu que descreve Baal, deus da tempestade, derrotando Yam, o deus do mar e seus ajudantes.

Em Is 27,1 e Jó 26,12-13 a luta entre o deus de Israel e os monstros mitológicos (“Leviatan, serpente escorregadia”; “Leviatan, serpente tortuosa”, o “Monstro que habita o mar”, “Rahav” e “Yam”) inquietam leitores desavisados:

Is 27,1 Naquele dia, punirá Javé, com a sua espada dura, grande e forte, a Leviatã, serpente escorregadia (Leviatan nahash bariah), a Leviatã, serpente tortuosa (Leviatan nahash aqalaton), e matará o monstro que habita o mar (hataniyn ’asher bayam). 
Jó  26,12-13 Com seu poder aquietou o Mar (Yam), com sua destreza aniquilou Rahav. 13 O seu sopro clareou os Céus e sua mão traspassou a Serpente escorregadia (nahash bariah).
Descrições semelhantes podem ser encontradas nos mitos ugaríticos: 
Quando você matou Litan, a serpente fugitiva, aniquilou a serpente sinuosa, o potentado de sete cabeças (SMITH, Mark S. The origins of monotheism, p. 33).
O relato de Gênesis, ao invés de se inspirar no mito cananeu, busca na Mesopotâmia elementos para a elaboração de seu relato da criação. O redator israelita atua como uma espécie de C. S Lewis, usando mitologia estrangeira para incutir teologia israelita na mente do povo (C. S. Lewis usou mitologia nórdica em seu “As crônicas de Nárnia” para incutir teologia cristã).

A luta entre divindades e monstros não se restringe aos cananeus (Baal versus serpentes marinhas) ou babilônios (Marduk versus Tiamat). Na mitologia grega, Zeus mata Typhon; na mitologia nórdica Thor mata Jörmungandr; na mitologia hindu, Indra mata Vrtra; na mitologia eslava, Perun mata Veles; e na mitologia hitita; Tarhunt mata Illuyanka.

Até hoje a luta entre heróis e monstros poderosos que ameaçam a ordem fazem sucesso hipnotizando multidões. O tema é muito bem explorado, por exemplo, nas trilogias de J. R. R. Tolkien (“O senhor dos anéis” e “Hobbit”). Quem não se lembra da batalha travada entre o mago Gandalf e o demônio Balrog na ponte Khazad dûn? Ou do confronto entre Bard e o dragão Smaug, morto com uma flecha negra após um certeiro disparo feito de uma torre prestes a ruir?



Jones F. Mendonça 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

SUBTERRÂNEOS DO INCONSCIENTE

Afundou-as no esconderijo da derme,
na confusão das memórias,
sob escudos impérvios,
em quietude abismal.

Mas era memória viva,
agonia explosiva,
lembrança ativa,
prisão em convulsão.

Ao toque do sino,
sob branda brisa,
expandiu fronteiras
com o vigor de mil sóis.


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A HISTÓRIA POLITICAMENTE INCORRETA DA REFORMA PROTESTANTE

Zé Bobinho toma emprestada uma coleção das obras de Lutero. Pensa consigo mesmo: “o reformador deve ter linguajar e retórica magníficas, dignas de serem imitadas nos púlpitos”. Senta-se confortavelmente numa almofada e inicia sua leitura.

Com os olhos estatalados e o dedo lambuzado de saliva vai folheando páginas ao acaso. Percebe então que sob a pena de Lutero os nomes de seus desafetos vão ganhando novas formas. O teólogo católico [John] Eck se transforma em Dreck (sujeira) ou Dr Sau (porca); Muntzer é alterado para Murnarr (tolo); Cochlaeus converte-se em Rotslöffel (colher de meleca); o duque de Braunschweig é tratado como Hanswerst (palhaço); papistas como “asnos” e a igreja romana como “prostituta”.

Ainda atordoado Bobinho apanha outra obra e se depara com esta confissão do reformador: “Nunca progrido melhor na oração, pregação e redação do que quando me enfureço. De fato, a ira... aguça o espírito e caça as tentações” (WA TR 2, 455, nº 2410).

Bobinho fecha o livro perplexo após se dar conta  de que o "rapá", o "malandro" e o "funicar" de Malafaia são insignificantes perto das expressões ainda mais toscas empregadas pelo reformador alemão.




Jones F. Mendonça

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

TRIBALISMO E SECTARISMO NO ORIENTE MÉDIO

Khaleb Diab, escritor e jornalista belga-egípcio, contesta a tese de que a instabilidade no Oriente Médio deve-se às suas fronteiras artificiais e aos diversos grupos sectários que os colonizadores foram incapazes de conter. Ele explica: 
Não há um país na Europa cujos limites não são artificiais, cujas fronteiras do passado não se sobrepõem com as de seus vizinhos e cuja população não é uma mistura confusa de povos.
E conclui: “O tribalismo é o sintoma, e não a causa, dos males do Oriente Médio”. Dentre as diversas causas, estariam a incompetência dos governantes, a dominação estrangeira,  a pobreza, etc. Ele destaca que a grande diferença é que a Europa têm conseguido conter esse “tribalismo” (como o nacionalismo, as tensões raciais e religiosas, etc.) e o Oriente Médio, ao contrário, tem, fracassado.

Leia o texto completo no Al-Jazeera:



Jones F. Mendonça

O EXEMPLO QUE VEM DO LÍBANO

Um quarto da população do Líbano - país com economia pequena - é formada por refugiados sírios. Eu disse um quarto! O país recebeu mil vezes mais refugiados que a Inglaterra. Então, como assim a Europa vai entrar em colapso com a chegada de refugiados?

Informações oficiais sobre os refugiados no Líbano aqui:


Jones F. Mendonça

EM NOME DOS VALORES CRISTÃOS: MORTE AOS INFIÉIS

De acordo com o evangelho de Marcos (7,11) os fariseus encontraram um bom argumento para negar um pouco de solidariedade aos pais. Diziam que seus bens haviam sidos consagrados a Deus (corban). Ah, quanta piedade!

Parte da liderança europeia (e cristã brasileira) aprendeu a lição direitinho. Diz que deve rejeitar os refugiados - em sua maioria muçulmanos - para preservar os valores cristãos. Ao fechar suas portas revela que tais valores já se esgotaram. Ou sequer existiram...



Jones F. Mendonça

ZÉ BOBINHO E OS REFUGIADOS

Zé Bobinho, desinformado que só, grita aos quatro ventos que os refugiados sírios devem migrar para países do Oriente Médio e não para a Europa, "bastião dos mais nobres valores cristãos".

Mas o que Bobinho não sabe é que 95% dos 4 milhões de sírios que deixaram o país estão justamente em apenas cinco países do Oriente Médio: Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito. A informação é da Anistia Internacional.

Bobinho não aprende. Continua interpretando o mundo pelas lentes blogs apologéticos cristãos como o Genizah, Júlio Severo e Braulia Ribeiro.



Jones F. Mendonça

JESUS FALAVA GREGO?

Boa parte dos estudiosos aceita o aramaico (língua aparentada com o hebraico) como sendo o idioma falado por Jesus. Mas para G. Scott Gleaves, professor na Universidade Faulkner, Alabama, a língua mais falada e escrita na Palestina do primeiro século era o grego: 
Ao contrário dos estudos atuais, acho que o grego era mais amplamente utilizado, tanto na forma escrita como oral, por Jesus, seus discípulos e os judeus que habitavam Palestina do primeiro século.
 Aos interessados no tema, leiam aqui:



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

BRAULIA RIBEIRO E SUA TEOLOGIA DA INDIFERENÇA

Nas extremidades do cabo de força que atravessa a Síria há dois pilares principais de potências militares: a) Russia e Irã apoiam o ditador Bashar al-Assad; b) EUA e alguns países europeus depositam suas fichas nos rebeldes que querem derrubá-lo. Esses dois principais grupos de interesse agem, de forma bastante simplificada, do seguinte modo:

Grupo 01 (Rússia/Irã) - Embora seja um ditador sanguinário, Assad mantém um governo laico que sempre protegeu minorias religiosas, tais como cristãos, drusos, alawítas e xiitas. A Rússia marca sua presença na Síria no porto de Tartus, sua única base naval no Mediterrâneo. O Irã age no país armando o Hezbollah, grupo paramilitar libanês.

Grupo 02 (EUA/Europa) - EUA e Europa, ávidos pela queda do ditador, estão dispostos inclusive a apoiar rebeldes extremistas para alcançar seus interesses. A pergunta é: sem Assad a vida na Síria será melhor ou seu destino será semelhante ao da caótica Líbia depois da queda de Kaddafi pela intervenção militar da NATO em 2011?

No meio dessa disputa está o povo, que atravessa desertos e mares na esperança de encontrar uma terra segura para viver. Quem atribui a culpa pelo conflito a apenas um país, religião, governante ou grupo armado ignora ou finge ignorar os diversos fatores que fizeram da Síria uma canoa à deriva num oceano em revolta.

Ontem, enquanto lia (com embrulho no estômago) texto escrito pela missionária ex-presidente da missão JOCUM no Brasil, Braulia Ribeiro (Título: “Não tenho culpa pela tragédia do menino sírio”), deparei-me com esta frase referindo-se aos refugiados sírios: “vão se entrincheirar em guetos culturais e exigir a prática legal da Lei Sharia” [para quem não sabe, a Lei Sharia é a lei islâmica]. Mais adiante diz: “O culpado único desta tragédia é o islamismo em todas as suas formas, radicais ou não” (destaque para “radicais ou não”).

É claro, óbvio, que a Europa precisa ter cuidado com refugiados que atravessam suas fronteiras, sejam eles muçulmanos, cristãos, budistas, etc. Mas Braulia trata todos os fugitivos da guerra como se fossem fundamentalistas defensores de um Estado governado pela lei islâmica. Enxerga o conflito como se fosse o resultado de um agente apenas: o islamismo. Tem visão atomizante e reducionista do mundo. Revela uma percepção manca da realidade.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

SOBRE CRISTÃOS INCESTUOSOS E COMEDORES DE CRIANCINHAS

Nos primeiros séculos os cristãos foram acusados pelos romanos de comer a carne e beber o sangue de criancinhas. Encontraram até texto bíblico provando a prática: “se não comerdes a carne do filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6,53).

Os romanos, ignorantes (e com boa dose de maldade) a respeito dos costumes cristãos, entenderam a expressão “filho do homem” como sendo uma referência às crianças. Resultado: cristãos comem a carne e bebem o sangue de crianças. Havia ainda outra acusação injusta: tratar a própria mulher como “irmã” foi entendido como evidência de que praticavam incesto.

Ontem os cristãos foram vítimas da ignorância dos romanos. Hoje, quando fazem declarações preconceituosas (e, em muitos casos, com boa dose de maldade) a respeito de adeptos de outras religiões, agem com a mesma perversidade de seus antigos algozes.

Ter um pouquinho de consciência histórica e bom senso não faz mal a ninguém.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

A PAIXÃO DE CRISTO EM QUATRO IMAGENS


Como pequeno passatempo coleciono imagens do Cristo nos momentos mais dramáticos da paixão. Interessa-me o modo como como essas cenas foram sendo representadas ao longo da história. Abaixo quatro imagens particularmente interessantes:

1. Amuleto com a representação do Cristo crucificado numa gema de jaspe vermelha e verde datada para o II-III século. A cena da crucificação é rara nos primeiros séculos do cristianismo. Eram mais comuns as cenas mostrando seu triunfo sobre a morte.  

2. Este Cristo crucificado (Crucifixo Gero), do final do século X, retrata Cristo não como vencedor da morte, mas como homem nas profundezas da humilhação, tema que se torna comum apenas a partir do século XII. Foi talhado em madeira para o arcebispo Gero (969-976).

3. Esta tela medieval (“Cristo coroado de espinhos”, por Fra Angelico, 1438-1439.), ao invés de destacar a dor física, valoriza a angústia do Crucificado. Os olhos avermelhados e a expressão facial transmitem com extrema intensidade o horror e a agonia da crucificação. Remete um observador familiarizado com os Evangelhos ao texto de Mc 13,34: “minha alma está triste até a morte”.

4. A última imagem é uma escultura, “O Cristo torturado” (1975), do artista brasileiro Guido Rocha. Sua história como perseguido político na época das ditaduras latino americanas certamente deixou marcas na obra. 


Jones F. Mendonça

sábado, 5 de setembro de 2015

40 MAPAS QUE EXPLICAM O ORIENTE MÉDIO

Está com dificuldade para entender todos os conflitos no Oriente Médio? Que tal esta página recheada de mapas e informações:

http://www.vox.com/a/maps-explain-the-middle-east


Jones F. Mendonça

OS HEBREUS E O PINGOLIM

Por Marc Chagall
Algo curioso no universo linguístico hebraico é o uso de eufemismos para designar o órgão sexual masculino.

Em Ex 28,42 o “pingolim” é chamado de “carne” (basar); em Lv 18,6 é tratado de forma genérica como “partes íntimas” (ervah); em 2Rs 18,28 aparece como “pé” ou “perna” (reguel); em Dt 23,1 vem como “tubo” (shofkha); em Is 57,8 como “mão” (yad) e em Hb 2,15 como “me’or (nudez).
No judaísmo tardio (era cristã) surgiram novos eufemismos, tais como “face interior” (panin mata shel); “órgão” (evar); “dedo médio” (ama) ou simplesmente “dedo” (etzba).

No que diz respeito a palavra reguel (pé) com sentido de pênis, é possível que Rute, quando chega de mansinho perto do Boaz embriagado e descobre seus pés tenha na verdade tirado a roupa dele e se deitado. Outra possibilidade é que Rute tenha "se descoberto" aos pés dele (e não "os pés dele") e deitado (neste caso não haveria eufemismo). O verso 8 parece reforçar a segunda tese. A versão tradicional "descobriu os pés dele e se deitou" não faz qualquer sentido.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

SANDICE NO BAILE DE MÁSCARAS

A guerra na Síria já matou, por baixo, 200 mil pessoas desde seu início em 2011. Imagine o monte de tripas e sangue que já mancharam aquela terra. Então a mídia mostra o corpo de um menino morto. Um apenas. E o mundo acorda.

Zé Bobinho está indignado. Resolveu escrever uma carta ao presidente dos EUA. Exige que o governo envie tropas à Síria e acabe com Bashar al-Assad, aquele “ditador sanguinário”.

Tolice, sua esposa, também faz intensa campanha. Quer que os marines americanos destruam com suas poderosas bombas o Estado Islâmico, aquele grupo de fanáticos religiosos ensandecidos.

De Zé Bobinho e Tolice nem sabem onde fica a Síria. Nunca leram com profundidade sobre as razões do conflito.  Não entendem absolutamente nada a respeito de como funciona o mundo.

É sandice travestida de compaixão.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O ALEGORISTA, A HIENA E O PEDERASTA

Pseudo-Barnabé, autor cristão de uma epístola escrita no final do século I, tenta explicar as razões da restrição à carne de lebre e de hiena, como prevista (apenas a da lebre) nos livros bíblicos de Levítico e Deuteronômio (Lv 11,6; Dt 14,7). Saiu-se com esta: 
Também "não comerás a lebre". Por que razão? Isso quer dizer: não serás pederasta, nem imitarás aqueles que são assim. Porque a lebre, a cada ano, multiplica seu ânus. Ela tem tantos orifícios quanto o número de seus anos. Também "não comerás a hiena". Isso quer dizer: não serás nem adúltero, nem homossexual, e não te assemelharás àqueles que são assim. Por que razão? Porque esse animal muda de sexo todos os anos e torna-se ora macho, ora fêmea (Epístola de Barnabé, X).
Ao final vem a explicação de seu método de interpretação: “Moisés, tendo recebido tríplice ensinamento sobre os alimentos, usou linguagem simbólica. Eles [os judeus], porém, o entenderam sobre os alimentos materiais, por causa do desejo carnal”.

A história da dupla sexualidade das hienas é conhecida desde a antiguidade. Aristóteles (alguns séculos antes do pseudo-Barnabé) já havia demonstrado em De generatione animalium e Historia animalium (Arist. Ga 3.6, 757a7-12) que tal percepção não passa de uma ilusão de ótica.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A CRISTOLOGIA DE RATZINGER COM FABRÍCIO VELIQ

Nesta entrevista ao programa Religare, Fabrício Veliq fala da cristologia de Ratzinger; de seu embate contra a teologia da libertação (que usa como princípio hermenêutico a "perigosa" filosofia marxista); da relação entre história, razão e fé (fala de Bultmann, portanto); da discussão entre o Jesus da fé versus Jesus histórico (fala de Reimarus, de Strauss, de Albert Schweitzer, de Käsemann, de Ebeling, de Joachim Jeremias, de Theissen e de Crossan); e de fideísmo. 




Jones F. Mendonça

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

A EVOLUÇÃO DA SABEDORIA EM QUATRO ESTÁGIOS

Quando colocados lado a lado, textos de Provérbios e Eclesiastes - ambos classificados como textos sapienciais - revelam contrastes visivelmente desconcertantes. Se por um lado Pv 14,11 diz convicto que “a casa dos ímpios será destruída, a tenda dos homens retos prosperará” (Pv 14,11), Jó  21,7 lança uma declaração pra lá de inquietante: “Por que os ímpios continuam a viver,  e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (Jó 21,7). A comparação entre outros textos sapienciais revela mais contrastes. Os sábios mais antigos, inclinados a perceber a sabedoria como qualidade quase secular (Pv 30 e 31,1-9 tem autoria estrangeira!) dão lugar a escritores que passam a vê-la como qualidade especificamente religiosa e israelita (como em Eclo e Sab, livros deuterocanônicos do século II a.C).

Buscando explicar a evolução da sabedoria israelita, José Luis Sicre propôs quatro estágios:

1. Humanismo internacional: caracterizado pela escrita voltada para a boa educação e governo, é encontrada na Síria, na Mesopotâmia e no Egito, representada em forma de provérbios, fábulas e poemas. Testemunhos da sabedoria estrangeira aparecem, por exemplo, nas “Palavras de Agur, filho de Jaces, o massaíta” (Pv 30) e nas “palavras de Lemuel, rei de Massá” (Pv 31,1-9).

2. Sabedoria israelita desde as origens até o século VI: Textos genuinamente israelitas. O prólogo de Jotão (Jz 9,8-15), considerado como a crítica mais feroz ao sistema monárquico é um exemplo de texto de sabedoria israelita mais antiga. Outros enfoques desse período, particularmente ligados à corte, são: a) a sabedoria como dom que se pede a Deus (1Rs 3,1-14), b) o governo do povo e a administração da justiça (1Rs 3,5-12.16-28), c) a capacidade de tomar decisões adequadas como a construção do templo (1Rs 5,21), d) o conhecimento enciclopédico (1Rs 5,9-14; 10,-19). São também desse período narrativas com conteúdo sapiencial, como a história de José (Gn 37-) e trechos do livro de Provérbios, principalmente os capítulos 10-29 (textos marcados pelo otimismo/teologia da retribuição/exaltação de virtudes como a modéstia e crítica a faltas como o orgulho).

3. Crise dos séculos V-III: Inserem-se nesse período os livros de e Eclesiastes (Qohelet). Estes livros põem em dúvida a validez dos resultados conseguidos por seus antecessores e se distanciam de seu otimismo, daí a expressão “crise da sabedoria”. Dessa crise brotam duas formas de crítica: a) Crítica que nasce da dor: Jó rejeita a teologia da retribuição de Elifaz (Jó 21,7 contra Elifaz em Jó 15,20-24) e faz questionamentos perturbadores em 21,34 e 9,22-24; b) Crítica que nasce da falta de sentido da vida: O livro chega até mesmo a criticar a sabedoria, declarando que “muita sabedoria, muito desgosto; quanto mais conhecimento, mais sofrimento” (1,18). Ver ainda Ecl 2,24; 3,12.22; 5,17; 8,15; 9,7-10. É possível que esta crise tenha antecedentes remotos, como em Jeremias “Por que prosperam os ímpios e vivem em paz os traidores?” (12,1) contrastando com textos do período anterior: “A casa dos ímpios será destruída, a tenda dos homens retos prosperará” (Pv 14,11); “Na casa do justo há abundância, mas o rendimento do ímpio é fonte de inquietação” (Pv 15,6). A experiência, grande mestre da sabedoria, demonstra que possuir determinadas virtudes não garante o sucesso.

4. Etapa final (século II-): Nesta última etapa são incluídas duas obras: Eclesiástico (ou Sirácida) e Sabedoria de Salomão (apócrifos/deuterocanônicos). A elas deve ser acrescentada uma parte de Provérbios (Pv 1-9). Três pontos se destacam como especialmente interessantes neste período: a) Atitude ante a cultura grega (Sab 2,1-3); b) Importância crescente da história (Eclo 44-50); c) Personificação da sabedoria em três fases: objeto de extremo valor (Jó 28); Mulher que fala em público (Pv 1-9); Personificação/metáfora/hipostase (Eclo 24; Sb 7,22-30). Nos livros anteriores, a sabedoria é uma qualidade quase secular que não conhece fronteiras nacionais; nestes últimos, toma-se uma qualidade especificamente religiosa e israelita (ou judaica, considerando que essas obras são do século II a.C.).


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

ÊXODO 24 E AS TRADIÇÕES JAVISTA, ELOÍSTA E SACERDOTAL

Qualquer pessoa que faça uma leitura atenta de Ex 24 percebe que há algo estranho no texto. A ordem dos acontecimentos é confusa, os personagens parecem mudar de um verso para o outro, os nomes divinos variam entre elohim e Javé, as tábuas da Lei ora são escritas por Javé, ora por Moisés. Ainda mais estranho é perceber que a montanha (“montanha de elohim” ou “Sinai”?) é escalada diversas vezes por Moisés, que é acompanhado por personagens diferentes.

Mas o texto certamente fará mais sentido caso seja entendido como a junção de quatro tradições diferentes a respeito de um mesmo evento preservado na memória do povo. O texto de Ex 24, quando dividido em cores, ajuda o leitor a perceber isso:

Ex 24,1-2 Ele disse a Moisés: "Sobe a Javé, tu, Aarão, Nadab, Abiú e setenta anciãos de Israel, e adorareis de longe. 2 Só Moisés se aproximará de Javé; os outros não se aproximarão, nem o povo subirá com ele [Tradição javista]." 

Ex 24,3-8 Veio, pois Moisés e referiu ao povo todas as palavras de Javé e todas as leis, e todo o povo respondeu a uma só voz: "Nós observaremos todas as palavras ditas por Javé." 4 Moisés escreveu todas as palavras de Javé; e levantando-se de manhã, construiu um altar ao pé da montanha, e doze esteias para as doze tribos de Israel. 5 Depois enviou alguns jovens dos filhos de Israel, e ofereceram holocaustos e imolaram a Javé novilhos como sacrifícios de comunhão. 6 Moisés tomou a metade do sangue e colocou-a em bacias, e espargiu a outra metade do sangue sobre o altar. 7 Tomou o livro da Aliança e o leu para o povo; e eles disseram: "Tudo o que Javé falou, nós o faremos e obedeceremos." 8 Moisés tomou do sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse: "Este é o sangue da Aliança que Javé fez convosco, através de todas essas cláusulas." [Tradição eloísta]

Ex 24,9-11 E Moisés, Aarão, Nadab, Abiú e os setenta anciãos de Israel subiram. 10 Eles viram o elohim de Israel. Debaixo de seus pés havia como um pavimento de safira, tão pura como o próprio céu. 11 Ele não estendeu a mão sobre os notáveis dos filhos de Israel. Eles contemplaram a elohim [“elohim” precedido de artigo] e depois comeram e beberam [Tradição javista].

Ex 24,12-15a Javé disse a Moisés: "Sobe a mim na montanha, e fica lá; dar-te-ei tábuas de pedra — a lei e o mandamento — que escrevi para ensinares a eles." 13 Levantou-se Moisés com Josué, seu servidor; e subiram à montanha de elohim. 14 Ele disse aos anciãos: "Esperai aqui até a nossa volta; tendes convosco Aarão e Hur; quem tiver alguma questão, dirija-se a eles." 15a Depois, Moisés subiu à montanha [Tradição eloísta]. 

Ex 24,15b-18a A nuvem cobriu a montanha. 16 A glória de Javé pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu durante seis dias. No sétimo dia, Javé chamou Moisés do meio da nuvem. 17 O aspecto da glória de Javé era, aos olhos dos filhos de Israel, como um fogo consumidor no cimo da montanha. 18a Moisés, entrando pelo meio da nuvem, subiu à montanha [tradição sacerdotal].

Ex 24,118b E Moisés permaneceu na montanha quarenta dias e quarenta noites [Tradição eloísta].


Jones F. Mendonça

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

TOLICE E O CORPO

Tolice possui curiosos poderes.
Quer ser nervo: converte tudo em dor.
Quer ser língua: converte tudo em detração.
Quer ser fígado: converte tudo em amargura.
Quer ser mão: converte tudo em agressão.
Quer ser víscera: converte tudo em sordidez.
Quer ser cérebro: converte tudo em depressão.
Quer ser coração: [...]  
Não quer.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 18 de agosto de 2015

NÃO, NÃO HAVERÁ NOVA REFORMA PROTESTANTE

Lutero no leito de morte
É um erro pensar que haverá nova Reforma protestante. Quando Lutero divulgou suas 95 teses contra as indulgências desejava corrigir crenças e práticas que percebia como equivocadas no âmbito do catolicismo popular. Não foi uma repreensão ao Papa ou à Curia romana, mas aos “sacerdotes desajuizados” (Tese 10), aos “apregoadores de indulgências” (Tese 21), aos “ludibriadores do povo” (Tese 24) e aos “bispos, padres e teólogos (Tese 80). Embora tenha uma dimensão moral, o que caracterizou a Reforma foram as críticas de cunho teológico.

Após perder a inocência, Lutero percebeu que a liderança da Igreja endossava as práticas que via como perversão da verdadeira doutrina. O monge agostiniano foi excomungado, adotado astutamente pelos príncipes e a Reforma teve êxito. E o que significa que a Reforma teve êxito? Significa que ao invés de uma igreja apenas, surgiram duas (alguns dias depois, múltiplas!). A primeira submissa ao papado. A segunda embalada pelo livre Exame das Escrituras. Ora, sendo o exame e a interpretação livres, caiu por terra qualquer tentativa de mediação entre Deus e os homens. A cada esquina e a cada segundo foram surgindo novos líderes de novas igrejas alegando agir segundo a orientação Espírito.

Quando alguém anuncia a necessidade de uma nova Reforma fico pensando: em que consiste esse apelo? Se a ideia é condenar os ensinamentos do reformador alemão é preciso lembrar que isso já foi feito no Concílio de Trento pelos católicos (1545-1563). Se a ideia é reafirmar ideias de Lutero basta que o sujeito opte por pertencer a alguma igreja luterana. Se a ideia é criar algo novo, diferente do que ensinam os católicos ou os protestantes históricos, basta que crie uma nova igreja, baseada numa nova doutrina (que tal “A igreja verdadeira”?). Mas se a opção for pela última alternativa, será preciso ter em mente que há muitos, mas muitos fazendo isso. Será apenas mais uma manjubinha no vasto oceano da cristandade.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

MINHA EXPERIÊNCIA COM O KINDLE PAPERWHITE [AVALIAÇÃO]

Há mais de um mês utilizando o Kindle Paperwhite, exponho minhas impressões aos interessados em adquirir um leitor de e-books:

Vantagens sobre o livro impresso:

1. Carregue muitos livros e/ou apostilas num só dispositivo;
2. Envie documentos/livros em PDF/Word por e-mail para o dispositivo com possibilidade de conversão automática (basta escrever “convert” no assunto);
3. Compre livros com apenas um toque na tela e receba sua aquisição em apenas alguns segundos (é possível bloquear a opção “compras” com uma senha);
4. Leia seus livros em ambientes diversos, com muita ou pouca luz. A tela do dispositivo é anti-reflexiva (leia na praia) e conta com iluminação embutida (leia no escuro);
5. Embora o preço do e-book não seja tão mais baixo que o do livro impresso, há promoções de cair o queixo;
6. Use o dispositivo por semanas sem a necessidade de recarga;

Desvantagens:

1. Como o dispositivo tem apenas 7” polegadas, as páginas são reduzidas, o que torna impraticável a leitura de livros ilustrados (para piorar a reprodução é em PB e as imagens tem baixa resolução);
2. A variedade de livros em formato digital ainda é pequena.
3. Até onde sei a ABNT ainda não criou regras para a citação de e-books em trabalhos acadêmicos (o nr de páginas do e-book não segue o do livro impresso).
4. E o mais grave: o Kindle não tem cheiro e nem textura de papel! (essa é piada, claro).


Jones F. Mendonça