sexta-feira, 30 de março de 2012

CALVINO E FEUERBACH: O DEUS QUE APARECE NO ESPELHO

Em linhas gerais o Antigo Testamento apresenta um Deus antropomorfo. Ele assovia (sharaq - Is 7,18), dorme (yashen - Sl 44,23), desperta como um valente excitado pelo vinho (yaqatz - Sl 77,65), passeia pelo jardim do Éden (halakh - Gn 3,8), é guerreiro valente (’iysh milhamah - Ex 15,3), cavalga sobre um querubim (vayyirkav al-keruv - Sl 18,11), sente ciúmes (qanna’ – Ex 20,5) e até se arrepende (naham - Gn 6,6). O deus babilônico Marduk também era descrito assim:

Eu glorifico ao Senhor muito sábio, o deus razoável, Marduk,
que se irrita de noite, mas se acalma pela manhã...
Como a tormenta de um ciclone, envolve tudo com sua cólera,
depois seu fôlego se faz benévolo, como o zéfiro da manhã.
Inicialmente sua ira é irresistível, sua raiva, catastrófica,
mas depois seu coração se amansa, sua alma se recupera.
Os céus não suportam o choque de seus punhos,
mas a seguir sua mão se apazigua e socorre o desesperado...
É tomado pela cólera, e os sepulcros se abrem,
mas quando perdoa, restabelece as vítimas da carnificina...[1].

Foi-se o exílio, vieram os persas e depois os macedônios com a difusão da cultura grega, que mesclada com as culturas locais deu origem helenismo. Não tardou muito até que os judeus (inicialmente por Fílon), e depois os cristãos, vestissem Yahweh com os trajes do Olimpo. Deus tornou-se sumo bem, imutável, sem forma e destituído de qualquer sentimento. Tiago, já com sua alma totalmente helenizada (ou platonizada), declara:
Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de variação (Tg 1,17).
Na patrística e na Idade Média as doutrinas cristãs foram elaboradas com os requintes da filosofia grega. Filósofos como Platão e Aristóteles teriam sido cristãos antes mesmo de Cristo ter posto seus pés na terra. O trem da teologia cristã seguia o seu curso, ora nos trilhos de Platão, ora nos trilhos de Aristóteles. E assim foi...

Em setembro de 1517 Lutero rompeu com Aristóteles ao publicar suas 97 teses contra a escolástica (um mês antes das suas famosas 95 teses contra as indulgências). Platão, sob a ótica de Agostinho, voltava ao cento do cenário teológico. Coube a Calvino sistematizar a nova teologia que incendiava a Europa. Ao defender a soberania absoluta de Deus ele precisou encontrar uma explicação para as passagens veterotestamentárias que apresentavam um Yahweh antropomorfo como Marduk, Quemós, Mot, Resheph, etc. Nas suas Institutas o teólogo francês argumentou que quando Deus é apresentado com características humanas devemos entender que tais descrições não expressam verdadeiramente como Deus é em si, mas como nós o sentimos (Livro I, XVII, 13). Em suma, são elementos da natureza humana projetados em Deus.

Caso Calvino tivesse levado adiante suas idéias a ponto de confessar que no Novo Testamento o mesmo fenômeno ocorre, teria antecipado Feuerbach em cerca de três séculos e confessado que teologia é antropologia: o homem deposita em Deus o que lhe pertence.  No mundo helenizado Deus não é projeção da natureza humana, mas dos seus anseios mais profundos: eternidade, verdade, bondade, imutabilidade, etc. Eis o erro de Calvino: achar que o conceito de Deus da Nova Aliança é mais puro, mais belo, mais verdadeiro que o da Antiga Aliança.

Admitir que o Deus que os homens veneram e anunciam é projeção humana não torna inválida a religião nem prova que Deus não existe, mas abre espaço para o diálogo, para a tolerância, para a compreensão do outro. É preciso admitir: o discurso sobre Deus sempre será, no fundo, um discurso sobre o homem.

Nota:
[1] Fiz uma tradução livre do espanhol. Lambert, 1960, 342 s. apud BOTTÉRO, Jean. Lá religión más antigua: Mesopotâmia, 2001, p. 135.


Jones F. Mendonça

2 comentários:

  1. Jones, como você vê Deus?
    Você acha que a bíblia diz algo de verdade sobre ele (sua verdadeira essência, não as projeções humanas)?

    Você acha que há alguma religião que tenha um conceito de Deus mais correto, ao seu ver?

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