I - Introdução
A figura do demônio despertou ao longo da história ora um sentimento de medo, ora de fascinação. Na idade média causou pânico na população, que via em fenômenos triviais a atuação desses seres[1]. Magos modernos tais como Aleister Crowley e Dion Fortune ensinavam ser possível controlar os demônios caso se conseguisse o conhecimento e a conversação do anjo guardião, “a capa mais profunda do subconsciente, o ego definitivo, o mais autêntico ‘eu’”[2]. Para os ocultistas, anjos e demônios não têm existência objetiva, mas são realidades psíquicas.
A figura do demônio surge em várias culturas, podendo ser chamados, dentre outros nomes, de galla, na religião sumeriana; gênios, na mitologia árabe; larvas, na crença popular latina e demônios na tradição cristã. No Antigo testamento surgem inicialmente como serviçais de Yahweh (p. ex. 1Sm 16,14 e 1Sm 19,9). Mais tarde, após o exílio babilônico, os judeus interpretaram o demônio como sendo um opositor de Yahweh (compare 2Sm 24,1 com 1Cr 21,1). No Novo Testamento são inúmeras as passagens onde encontramos Jesus exorcizando demônios. Eles podiam causar doenças físicas (Mc 9,25) e oprimir mentalmente as pessoas (Mt 17,15), pondo-as à margem da sociedade. Na tradição cristã os demônios foram interpretados como sendo anjos que se rebelaram contra Deus juntamente com Satã, o príncipe dos anjos rebeldes (Mt 12,24).
II. O demônio no Antigo Testamento
Na literatura vétero-testamentária a expressão mais comum para designar o demônio é “espírito maligno” (ruah rah). O livro de Samuel enfatiza que esse espírito era da parte de Yahweh (1Sm 16,14), ou Elohim, (16,15). Foi após ser possuído por este mesmo espírito que Saul começou a profetizar (18,10). Fica evidente nesses textos que tal espírito obedecia às ordens de Yahweh e não uma entidade que se opunha a Ele. O primeiro livro dos Reis nos dá um outro exemplo. Para induzir Acabe a partir para uma batalha em Ramote-Gileade, Yahweh aceitou os serviços de um espírito mentiroso (ruah sheqer) que se apresentou diante dEle na corte celeste (1Rs 22,21-22).
III. O demônio na literatura apócrifa judaica
Na literatura apócrifa judaica são freqüentes as citações aos chamados “espíritos malignos”. O Livro de Tobias menciona a existência de um demônio chamado Asmodeu (Tb 3,8), responsável pela morte de sete homens que haviam sido dados em casamento a uma mulher chamada Sara. O Livro de Enoch fala de duzentos anjos que se rebelaram contra Deus, relacionando-se sexualmente com as mulheres humanas:
“A Miguel, igualmente disse o Senhor: Vai e põe a ferros Samyaza, e os seus sequazes, que se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas”[3].
Tal relacionamento teria produzido gigantes com 3000 côvados (cerca de 1.500m!) insaciáveis por comida, que após acabarem com todas as provisões dos homens, passaram a buscar nos seres humanos sua fonte de alimento[4]. Além de responsáveis pelo surgimento dos gigantes, os anjos rebeldes teriam ensinado os homens a produzir armas de guerra, a consultar os astros e todo o tipo de transgressão.
No mundo grego-romano a idéia que se tinha dos demônios era bem diferente. Eles eram as “almas humanas divinizadas pela morte”[5], nos diz Fustel de Coulanges. Os latinos davam outros nomes às almas humanas desencarnadas, chamavam-nas manes, lares, larvas ou gênios. Se o mane era bom chamavam-no lar ou gênio; se era mau, era chamado de larva. Cícero afirmava que o termo latino lares correspondia ao termo grego demônio: “Àqueles que os gregos chamam demônios, damos-lhes o nome de lares”[6]. Concluímos assim que na mentalidade greco-romana os demônios eram almas de pessoas mortas que vagavam pela terra, podendo ser até mesmo benéficas ao ser humano.
Mas como uma alma se tornava má na mentalidade greco-romana? Fustel de Coulanges nos responde mais uma vez:
“A alma que não possuísse sua sepultura, não tinha morada, e permanecia errante. Em vão aspiraria ao repouso que amava, depois das agitações e do trabalho desta vida; permanecia condenada a errar sempre, sob a forma de larva ou de fantasma, sem jamais se deter, sem jamais receber as oferendas e os alimentos de que tanto necessitava” [7].
A crença em aparições de almas errantes era tão presente na mentalidade do povo que até mesmo os discípulos de Jesus pensaram ser ele um fantasma (φαντασμα) enquanto caminhava sobre as águas do Mar da Galiléia (Mt 14,26). Não havia na mentalidade primitiva a idéia de um outro mundo, onde as almas descansariam ou pagariam pelos seus pecados. O homem “uma vez sepultado, nada tinha a esperar, nem recompensas, nem suplícios”[8]. A pessoa morta continuava sua existência junto aos seus parentes, no túmulo, sendo alimentada em rituais que visavam lhe proporcionar descanso e paz. A crença no Tártaro (lugar de condenação) e nos Campos Elíseos (lugar de descanso e paz) só foi incutida mais tarde[9]. No filme “O gladiador” (direção de Ridley Scott, 2000) o personagem principal esperava reencontrar sua família nos Campos Elíseos após sua morte.
V. O demônio na literatura neo-testamentária
O termo daimónion (δαιμόνιον), traduzido por demônio ou simplesmente por divindade (At 17,18), aparece quarenta e seis vezes no Novo Testamento. Apenas seis ocorrências encontram-se fora dos evangelhos. A variante daimon (δαίμων), também traduzida por demônio, surge cinco vezes, duas no Apocalipse e uma em cada um dos sinóticos. Outras duas variantes também ocorrem: daimoniódes (δαιμονιώδης), que a Bíblia de Jerusalém traduz por demoníaco (única ocorrência em Tg 3,15) e daimonízomai (δαιμονίζομαι), referindo-se a uma pessoa influenciada ou atormentada por um demônio (p. ex. Mt 4,24). Apesar do termo demônio ser identificado com o “espírito imundo” (πνευμα ακαθαρτον) em Mc 7,25-26, isso não pode ser feito tão facilmente em relação aos anjos caídos (Ap 12,7-9). As epístolas de Judas e Pedro falam a respeito de anjos que que “deixaram sua própria habitação” (Jd 1,6) e que foram lançados no inferno (2 Pe 2,4), não há uma ligação clara entre eles e os espíritos imundos que possuiam pessoas.
VI. Conclusão
Mas afinal, tais seres maléficos eram reais ou mero produto da mente humana? O psiquiatra metodista Willian Sargant, após viajar por todo o mundo estudando casos de possessão conclui:
“Penso que devo terminar talvez estes longos anos de pesquisa com a conclusão de que não existem deuses, mas apenas impressões de deuses criadas na mente do homem, tão variados são os deuses e as crenças que passaram a existir com a ação da emotividade, da sugestionabilidade aumentada e das fases anormais da atividade cerebral”[10].
Teólogos mais conservadores como Wayne Grudem entendiam que “em algum momento entre Gênesis 1:31 e Gênesis 3:1, houve uma rebelião no mundo angélico que levou muitos anjos a ficarem contra Deus e converterem-se em malignos”[11].
Rudolf Bultmann propôs a desmitificação (ou desmitologização ou desmitização) do Novo Testamento. Com isso ele queria dizer que apenas a essência da mensagem cristã deveria ser preservada, descartando-se tudo aquilo que fosse considerado inaceitável diante das descobertas científicas modernas. Aplicando o método de Bultmann, deveríamos abrir mão de crenças primitivas em anjos ou demônios:
“Toda a concepção do mundo que pressupõe tanto a pregação de Jesus como a do Novo Testamento, é, em linhas gerais, mitológica, por exemplo [...] a idéia de que os homens podem ser tentados e corrompidos pelo demônio e possuídos por maus espíritos”[12].
Carl Jung foi um dos que criticou essa forma de encarar o sobrenatural presente na religião: “A tentativa de desmitificação de Bultmann representa uma conseqüência do racionalismo protestante e leva a um contínuo empobrecimento da simbologia”[13]. Numa linha semelhante parece seguir Paul Tillich. Apesar de descartar a visão tradicional que considera os demônios anjos caídos, ele reconhece o poder desagregador do demoníaco: “a psicologia secular do inconsciente redescobriu a realidade do demoníaco em cada pessoa”[14].
Fruto de uma alteração da atividade cerebral, anjos caídos, meros seres mitológicos ou realidades psíquicas autônomas capazes de provocar sérios males ao homem? Seja qual for sua origem, os demônios atravessam os séculos causando distúrbios individuais ou coletivos[15]. Se o nosso inconsciente é realmente autônomo, como sustentava Jung[16], poderíamos dizer que os demônios são mais reais do que imagina uma mente aprisionada nos esteios da racionalidade. A linha que separa o real do imaginário é tênue. Negar a existência do demônio (ou demoníaco, como gostava Paul Tillich) seria como negar os efeitos de um câncer “imaginário” que mata aos poucos um pobre moribundo.
Bibliografia:
BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003.
BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia. São Paulo. Novo Século, 2003.
COULANGES, Fustel. A cidade Antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Jonas Camargo Leite. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
COENEN, Lothar; BEYREUTHER, Erich; BIETENHARD, Hans. Diccionario teologico del Nuevo Testamento - Vol II. Salamanca: Sígueme, 1990.
GRUDEM, Wayne. Teología Sistemática. Traduccíon de Miguel Mesías, José Luis Martinez, Omar Diaz de Arce. Miami, FL: Editorial Vida, 2007.
HARK, Helmut. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais. Tradução de Maurício Cardoso. São Paulo: Loyola, 2000.
JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Tradução de Fausto Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
KING, Francis. Magia. Madrid: Ediciones del Prado, 1996, p.12 (Coleção Mitos, Deuses e Mistérios).
KIRST, N.; KILPP, N.; SCHWANTES, M.; RAYMANN, A.; ZIMMER, R. Dicionário hebraico-português e aramaico-português. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 2007.
KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia, o berço da civilização. Tradução de Genolino Amado. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão.Bauru, SP: Edusc, 2002.
PROENÇA, Eduardo de (org.). Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia. São Paulo: Fonte Editorial, 2005.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave lingüística do Novo Testamento Grego. Tradução de Gordon Chown e Júlio Paulo T. Zabatiero. São Paulo: Vida Nova, 1995.
SARGANT, Willian. A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1973.
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
Notas:
[1] Um belo exemplo do quão imaginativa foi a mente medieval em relação à atuação dos demônios pode ser encontrado na obra Malleus Maleficarum, escrita por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger, publicada pela primeira vez em 1487. O documento é uma espécie de manual para identificar bruxas. O livro foi publicado em língua portuguesa pela editora Rosa dos Tempos.
[2] KING, Francis. Magia, 1996, p.12.
[3] Enoch 10,6
[4] Enoch 7,2
[5] COULANGES, Fustel. A cidade Antiga, 1996, p. 17
[6] Cícero, Timeu, II, in COULANGES, Fustel. A cidade Antiga, 1996, p. 17
[7] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, 1996, p.12.
[8] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, p. 13.
[9] COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, p. 13.
[10] SARGANT, Willian. A possessão da mente: uma fisiologia da possessão, do misticismo e da cura pela fé, 1973, p.241.
[11] Tradução livre do autor. No original “en algún momento entre los sucesos de Genesis 1:31 y Genesis 3:1, tuvo que haber una rebelion en el mundo angelical que llevo a muchos angeles a ponerse en contra de Dios y convertirse en malignos”. GRUDEM, Wayne. Teología Sistemática, 2007, p. 430.
[12] BULTMANN, Rudolf. Jesus Cristo e a mitologia, 2003, pp. 13, 14.
[13] Briefe II, p. 211 in HARK, Helmut. Léxico dos conceitos junguianos fundamentais, 2000, p. 100.
[14] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, 2004.
[15] Ficou famoso o caso da possessão coletiva das freiras ursulinas de Loudun (1632), que faziam caretas e balbuciavam palavras ininteligíveis às vistas de turistas curiosos. Inspirado por este caso, o escritor e intelectual inglês Aldous Huxley escreveu sua obra: “Os demônios de Loudun”.
[16] JUNG, Carl G. Psicologia e religião. 1965, pp. 10-41.
Crédito das imagens:
Figura 1:
Aleister Crowley (1875-1947), com suas vestimentas de mago, antes de 1914.
Figura 2:
MEMLING, Hans
Inferno
c. 1485
Óleo sobre madeira, 22 x 14 cm
Musée des Beaux-Arts, em Estrasburgo
Inferno
c. 1485
Óleo sobre madeira, 22 x 14 cm
Musée des Beaux-Arts, em Estrasburgo
sou iper-sencivel
ResponderExcluirinteressante... parabéns!
ResponderExcluirE.S.