terça-feira, 24 de agosto de 2021

OS BATISTAS

1. Assim que tomou conhecimento da ruptura de Lutero com a Igreja, um diabo sentado na orelha de Henrique VIII, rei da Inglaterra, começou a cochichar tentações. Como não tinha vocação para asceta, deixou-se levar pelos conselhos: rompeu com o Papa, apropriou-se das terras da igreja e inventou sua própria versão do cristianismo, a igreja anglicana. Sua decisão foi aprovada pelo parlamento, que pelo Ato de Supremacia elevou o rei ao status de chefe da Igreja da Inglaterra. De quebra casou-se com Ana Bolena.

2. Mas o protestantismo carregava em seu DNA o germe da dissidência. Não demorou e um grupo separatista cismou de não aceitar essa coisa de ter um rei humano como líder supremo da Igreja. Destacam-se nesse movimento os puritanos. O pensador político e historiador francês Alexis de Tocqueville chegou a dizer que “o puritanismo não era apenas uma doutrina religiosa, mas correspondia em muitos pontos às mais absolutas teorias democráticas e republicanas”. Acha um exagero? Tudo bem, vamos chamá-los de “protodemocratas”, como preferia J. Miller.

3. Os batistas, membros da denominação protestante surgida no século XVII, acolheram com força essas ideias democráticas puritanas. Levavam a sério essa coisa de “liberdade de consciência”. Thomas Helwys, um dos fundadores da denominação, rejeitava veementemente que o rei interferisse nos assuntos da igreja. Seu espírito de tolerância certamente deixaria muitos batistas modernos no chinelo. Palavras dele: “que haja, pois, heréticos, turcos ou judeus, ou outros mais; não cabe ao poder terreno puni-los de maneira nenhuma”. Isso no século XVII!

4. Bem, o tempo passou. Muitos batistas foram podando seus galhos mais viçosos em um processo lento e contínuo. Assim, é com imenso desprazer (mas não com espanto) que vejo batistas participando desse movimento que está aí: espírito antidemocrático, intolerante, intoxicado com uma boa dose do rigorismo puritano, raiz podre do movimento. 


Jones F. Mendonça

O AFEGANISTÃO EM 5 PONTOS CURTOS

1. O elemento chave para se compreender a origem do radicalismo islâmico NO AFEGANISTÃO (*) deve ser buscado em 1979, ano em que os estadunidenses foram enxotados da sua embaixada em Teerã, após o sucesso da revolução islâmica.

2. O Afeganistão era governado por comunistas aliados da União Soviética, que assumiram o poder em 78, após um golpe de Estado. Mas a imposição do comunismo goela abaixo acabou suscitando uma rebelião maciça, apoiada pela religião, o islamismo.

3. Redes islâmicas com características heterogêneas, mas unidas por laços muito fortes e inspiradas na revolução iraniana, apelaram à jihad islâmica com o objetivo de expulsar os invasores infiéis. A luta era percebida como uma reafirmação de identidade perante a descaracterização cultural imposta pelos comunistas.

4. Em 79 o exército vermelho invadiu o país precipitando uma resistência maciça dos afegãos. É neste momento que nascem os famosos mujahidins, grupos militantes armados. Os mujahidins, tal como conhecemos, surgem como reação à intervenção soviética.

5. Os EUA entram depois, armando esses grupos contra seus rivais soviéticos. Assim, podemos dizer que a União Soviética criou o monstro e os EUA lhe forneceu os dentes. É, portanto, filhote de duas bestas...

* O fundamentalismo islâmico nasceu no Egito, pela iniciativa dos Irmãos Muçulmanos, após a Primeira Guerra Mundial e o colapso do império turco-otomano.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

SOBRE A “TEOLOGIA NEGRA”


1. Caso você dê uma pesquisada rápida no Google, vai encontrar livros produzidos pela teologia ortodoxa protestante com os mais diversos títulos: teologia da glória, teologia da cruz, teologia da Reforma, teologia sistemática, teologia Imago Dei, teologia disso, teologia daquilo...

2. São, todas elas, teologias “de cima”, ou seja, estão interessadas em esmiuçar os atributos divinos, em produzir formulações teológicas capazes de exprimir com a maior exatidão possível a natureza das coisas celestes. Esse tipo de obsessão esteve na mira dos teólogos por cerca de dois mil anos.
 
3. Na segunda metade do século XX um grupo de pastores negros resolveu produzir o que mais tarde foi denominado “teologia negra”, ou seja, refletiram sobre a perversidade que é o racismo e sobre como as Escrituras podem contribuir para combater este mal (certamente será uma leitura seletiva, como são todas as outras). Não raro são ouvidos protestos como “não precisamos de uma teologia negra, mas de uma teologia bíblica”.
 
4. A teologia negra tem data de nascimento: 31 de julho de 1966. Na época os ortodoxos que adoravam formulações teológicas impecáveis – como a Convenção Batista do Sul dos EUA – apoiavam a escravidão e os proprietários de escravos. A retratação e as declarações de arrependimento só vieram em julho de 1995!

5. A ortodoxia racista tem memória curta (e arrependimento tardio).
 
Imagem: O Comitê Nacional de Homens da Igreja Negros comprou um anúncio de página inteira no The New York Times para publicar seu "Black Power Statement", propondo uma abordagem mais agressiva para combater o racismo usando a Bíblia como inspiração.



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A TEOLOGIA COMO PATOLOGIA

1. Durante quase dois mil anos, boa parte dos teólogos cristãos justificaram o sofrimento dos judeus a partir da leitura das Escrituras. A lista começa no século II, com Irineu e Tertuliano. No século IV é repetida por Cirilo, bispo de Jerusalém, segue com Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho.

2. No decorrer da Idade Média o pensamento se manteve o mesmo: judeus estão pagando pela crucificação de Cristo (gostavam de citar Mt 27,25). Lutero, no século XVI manteve o velho e perverso antijudaísmo, visível, por exemplo, em seu texto “Os judeus e suas mentiras”, publicado em 1543. Não demorou e esse antijudaísmo se converteu em racismo, em antissemitismo.

3. A primeira manifestação positiva que conheço em relação aos judeus veio do avô presbiteriano do ex-presidente estadunidense George W. Bush. Em 1844 ele publicou um curioso livro intitulado “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”. A obra pode ser encontrada na Amazon ao custo de US$23,90.

4. George Bush (avô) era um restauracionista. A obra defendia – antes mesmo da criação do sionismo(!) – o retorno dos judeus à terra de Israel. Acreditava que na Terra Santa boa parte dos judeus se converteria ao cristianismo. Outro texto importante veio de Karl Barth: “A questão dos judeus e sua resposta cristã”, de 1949.

5. Até o século XIX todos faziam coro dizendo: “judeus estão pagando pela crucificação de Cristo”. Depois disso a coisa se inverteu: “o exército de Israel é o exército de Deus”. Ontem usavam e abusavam das Escrituras para justificar a dor e o sofrimento dos judeus. Hoje é abusada e usada para justificar seu triunfo (e a derrota dos muçulmanos!). Trata-se de uma teologia bipolar, doentia.

6. A pergunta que se impõe diante de nós, hoje, é: que tipo de pessoas os "teólogos" da atualidade estão ferindo, lançando na lama da agonia, no sheol do desespero, em nome das "Santas Escrituras"? A lista não seria pequena...

 

 Jones F. Mendonça

quarta-feira, 21 de julho de 2021

“RUTZ”, O VERBO CASAMENTEIRO

O verbo hebraico “rutz” (רוץ = correr) aparece dez vezes no livro bíblico de Gênesis. Em seis desses dez casos ele surge associado aos casamentos de Rebeca (4 vezes) e Raquel (2 vezes). Veja:

REBECA1) o servo de Abraão corre ao encontro de Rebeca para lhe pedir água (24,17); 2) Rebeca corre em direção ao poço para obter água (24,20); 3) Rebeca corre para anunciar à sua família que o servo é um enviado de seu parente (24,28); 4) Labão, irmão de Rebeca, corre para recepcionar o servo de Abraão (24,29);

RAQUEL 5) Após ser beijada por Jacó, Raquel corre para anunciar a seu pai, Labão, o encontro que teve com Jacó, seu primo (29,12); 6) Labão corre  ao encontro de Jacó para encontrá-lo e acolhê-lo em sua casa (29,13).

O que parece todos tinham muita pressa para casar. :)



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 12 de julho de 2021

"LEGEND OF DESTRUCTION": UM FILME SOBRE A 1ª GUERRA JUDAICA



A cidade de Jerusalém no tempo de Jesus era uma região muito instável. As sucessivas humilhações diante do poderio das nações estrangeiras – Assíria, Babilônia, Pérsia, Macedônia e Roma – deixava grupos judaicos mais piedosos com os nervos à flor da pele, esperançosos e ansiosos pela intervenção divina em favor de seu povo, realizada pela ação de seu Messias, o Ungido. Em 66 d.C. uma grande revolta judaica se impôs contra as tropas imperiais romanas. Roma reagiu com força e enviou seus soldados a Jerusalém, que a sitiaram. A revolta foi esmagada em 08 de setembro do ano 70 pelas legiões romanas comandadas pelo general Tito. Você poderá ver tudo isso e muito mais em “Legend of Destruction”, o novo filme de Gidi Dar.



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 28 de junho de 2021

ISRAEL FINKELSTEIN E AS TRADIÇÕES DO NORTE

Neste vídeo, o arqueólogo israelense Israel Finkelstein fala sobre o Reino do Norte no contexto do século VIII a.C., época em que são situados reis como Jeroboão II e profetas como Amós e Oseias. O século VIII também é marcado pela invasão assíria, que conquista Samaria e cobra tributo a Acaz, rei de Judá. O arqueólogo vê nas narrativas heroicas presentes no livro de Juízes, na história de Jacó, nos traços positivos atribuídos ao rei Saul e nos ciclos de Elias e Eliseu elementos que os ligam ao Norte. Uma das perguntas que Finkelstein busca responder é a seguinte: como e quando as tradições do Norte foram incorporadas às tradições do Sul? Ah, uma informação importante: embora o áudio esteja em inglês, é possível adicionar legendas em português. Assista a todos os vídeos aqui.


Jones F. Mendonça



MÁRIO LIVERANI E O ÊXODO

1. Na opinião de Mário Liverni o Êxodo possui um fundo histórico que pode ser rastreado, por exemplo, em trechos mais antigos do livro do profeta Oseias que ele data para o século VIII: “Efraim [Israel do Norte] voltará para o Egito, na Assíria comerão alimento impuro” (Os 9,3). A Assíria aqui, segundo Liverani, aparece como um “Novo Egito”. No passado estiveram sob controle egípcio; agora serão subjugados pelos assírios. Guarde isso.

2. A memória preservada por Oseias, para Liverani, não diz respeito à narrativa do Êxodo tal como conhecemos: saída sob a liderança de Moisés com sinais e prodígios, etc. Embora diga que Javé tenha usado um profeta (נביא) para tirar Israel do Egito (Os 12,13), nenhuma menção ao nome de Moisés, aos sinais miraculosos, ao Mar Vermelho, ao Sinai aparecem no texto. O assiriólogo entende que Oseias apenas está fazendo menção à época em que Israel vivia sob controle egípcio na Canaã no período do Bronze recente (algo que está bem documentado).

3. O autor cita textos – como as Cartas de Amarna – que empregam expressões como “fazer sair”, “fazer voltar”, “fazer vir” (ele chama de “código motor”), como indicação de libertação da influência de uma potência estrangeira. A narrativa do Êxodo, tal como a conhecemos, seria o resultado de reelaborações (séculos VII ao V), com a finalidade de legitimar a pose da terra, na medida em que a “Saga dos Patriarcas” fornecia uma legitimação insuficiente, situada em um passado muito remoto, sem jamais mencionar a posse de toda a terra, mas apenas de alguns lugares símbolo, como túmulos e árvores sagradas.

4. Assim, a narrativa do Êxodo, somada à narrativa da conquista armada, sob a liderança de Josué, cumpriria o papel de legitimar de forma mais contundente a posse da terra. Você lê a exposição completa do assunto em “Para além da Bíblia”, de Mario Liverani (Loyola, 2008, p. 339-343).

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de junho de 2021

MÁRIO LIVERANI E AS 12 TRIBOS DE ISRAEL

Mario Liverani reserva uma seção de seu “Para além da Bíblia” para falar sobre as doze tribos de Israel. Inicialmente o assiriólogo italiano destaca o caráter artificial do número doze, rejeitando, por exemplo, a tese da anfictionia de Martin Noth (seguida por von Rad), que supôs um modelo de organização tribal semelhante ao que existiu nas antigas sociedades gregas e itálicas.

Evidências desse caráter artificial poderiam ser facilmente percebidas a partir de uma análise atenta às diversas listas tribais – com quantidades e nomes diferentes – extraídas de alguns textos. Veja:

 ·  Jz 5 (Cântico de Débora) → 10 tribos (séc. IX): Efraim, Makir, Benjamim, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gile’ad, Dan, Asher e Neftali;

 · Dt 33 (Bênçãos de Moisés A) → 10 tribos (séc. VIII): José, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali e Judá;

 ·  Dt 33 (Bênçãos de Moisés B) → 12 tribos (séc. VII): Efraim, Manassés, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali, Judá e Levi.

 ·  Ez 48,1-29 → 12 tribos (séc. VI): Efraim, Manassés, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali, Judá, Simeão.

 ·  Ez 48,1-29 → 12 tribos (séc. VI): José, Benjamin, Zebulon, Isaacar, Ruben, Gad, Dan, Asher, Neftali, Judá, Levi e Simeão.

Ele sugere que os levitas eram originalmente um “grupo funcional”, elevado ao status de tribo pelos sacerdotes pós-exílicos (neste caso, teríamos treze e não doze tribos). Outra questão que ele levanta diz respeito à tribo de Simeão, situada nos limites fronteiriços de Judá: a tribo teria sido inserida artificialmente na região com a finalidade de afirmar que a perda de territórios mais ao sul não tinha refletido sobre Judá. O deslocamento de Dan da região mais central (na Shefelah) para o extremo norte (Jz 18) teria a finalidade de afirmar direitos sobre um território apenas transitoriamente incluído no reino de Israel.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 28 de maio de 2021

CALVINISMO E ESTOICISMO

1. Em suas Institutas, Calvino rejeita a acusação, já feita a Agostinho, de que a doutrina da Providência seja uma versão cristã “do dogma do destino estoico” (Livro I, XVI, 8 ).

2. Ele não nega certas semelhanças entre as duas doutrinas, mas insiste que a Providência estoica aparece relacionada à Natureza/Razão Universal, diferentemente da doutrina que ele prega, segundo a qual “Deus é árbitro e moderador”.

3. Daí ele conclui: “afirmamos que não só o céu e a terra, e as criaturas inanimadas, são de tal modo governados por sua providência, mas até os desígnios e intenções dos homens, são por ela retilineamente conduzidos à meta destinada”.

4. E aqui, claro, devem ser inseridos os desígnios pecaminosos do primeiro casal. Meio louco isso, não?


Jones F. Mendonça

FÍLON E A MAMADEIRA FÁLICA

1. Fílon foi um sábio judeu que viveu no primeiro século antes da era cristã, em Alexandria, no Egito. O judaísmo professado por Fílon era fortemente influenciado pela filosofia grega e, de maneira geral, pela cultura dos gregos.

2. Em “Leis III, 31”, Fílon trata, dentre outras coisas, a respeito do comportamento das mulheres em público. Ele diz, por exemplo, que uma mulher jamais deve se meter em uma briga na qual se envolveu seu marido.

3. A razão é a seguinte: imagine – ele diz – que coisa chocante seria, se essa mulher, ao tentar separar os corpos que brigam, agarrasse no órgão genital de um dos homens. Sim, é isto mesmo o que você leu.

4. Quem quiser entender essa obsessão por mamadeiras fálicas, por torres fálicas da Fiocruz, deve começar a cavar por aqui...

Leia "Leis Especiais" de Fílon aqui (e divirta-se):


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de maio de 2021

RECURSOS BÍBLICOS ONLINE E GRATUITOS

Mark Hoffman publicou em seu Blog – Biblical Studies and Technological Tools – uma lista contendo uma série de recursos bíblicos online e gratuitos. A lista, publicada em 14 de abril de 2021, é uma atualização de uma relação postada em 2018. Ele destaca que para um estudo mais aprofundado será preciso pagar por softwares com o Acordance, o Logos ou o OliveTree. Aos interessados na lista, cliquem aqui.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 10 de maio de 2021

GÊNESIS, ESTOICISMO, ALEGORIA E MORAL ASCÉTICA

1. Qualquer pessoa que leia bem, com atenção, perceberá que a falta cometida pelo primeiro casal, tal como registrado no Gênesis, é o orgulho, o desejo pela autonomia absoluta ou, como dizia Jacques Le Goff, a tentativa de “despossuir Deus de um de seus atributos mais determinantes”. Um leitor judeu no século IV a.C., por exemplo, entenderia que para não cometer o mesmo erro, deveria se submeter à Torah, a palavra de Javé entregue a seu povo escolhido.

2. Embora nem o AT nem o NT sugiram que o pecado original foi um pecado de ordem sexual, essa novidade foi introduzida bem rápido produzindo uma verdadeira diabolização do sexo e da mulher. Parte dessa postura vem do estoicismo e do neoplatonismo, como se pode ver nas Confissões e na Cidade de Deus de Agostinho de Hipona. O que também ajudou os padres nessa tarefa foi a exegese alegórica, que facilmente podia transformar a digestão do fruto proibido em cópula sexual.

3. Essa obsessão pelos chamados “pecados sexuais”, pela desclassificação da mulher, ainda ecoa com força na retórica evangélica fundamentalista de nosso tempo. A negação do sexo, do corpo e, portanto, da vida, foi intensivamente denunciada por Nietzsche na segunda metade do século XIX. Rubem Alves, que era bom leitor do filósofo, resumiu essa postura ascética dizendo que para esses religiosos “negar o mundo é o mesmo que negar a vida”.

4. Essa teologia não seria tão danosa caso se contentassem em negar sua própria vida, tal como faziam os anacoretas dos primeiros séculos. Mas querem enjaular os outros, subtrair dos outros a opção de escolha, de autorrealização. É, portanto uma teologia DE morte e PARA a morte.


Jones F. Mendonça

DOMICIANO E O APOCALIPSE

Boa parte dos comentários sobre o Apocalipse diz que Domiciano – imperador romano que governou entre 81 a 96 d.C. – foi um grande perseguidor dos cristãos. A fonte usada para atestar essa grande perseguição vem de Eusébio, autor de “A história da Igreja”, obra do IV século. A tradição foi ampliada por Osório (falecido em 420) e acabou aceita como fato histórico até mesmo em determinados círculos acadêmicos. Mas de acordo com Mark Wilson, em texto publicado no Biblical Archaeology Society, há boas razões para duvidar dessa história.


Jones F. Mendonça

SOBRE MEMÓRIA, IDENTIDADE E SAUDOSISMO

1. O saudosismo está na moda. Mania de achar que carro bom era o Fusca, tênis bacana era o Kichute, futebol de verdade era aquele jogado no terreno baldio em declive, brinquedos educativos eram aqueles feitos com lata velha e embalagens de Yakult. Talvez seja necessário convocar os psicólogos ou antropólogos para explicar as razões que motivam parcela da população a idealizar o passado dessa maneira. Ao que parece, no fundo sentimos saudades da alegria de ganhar um tênis novo, de poder jogar futebol no fim da tarde com os amigos, do carro que cabia no bolso de nossos pais, que nos levava e trazia da casa de nossos avós enquanto a chuva noturna fazia caminhos reluzentes no para-brisa.
 
2. O que chamamos de “memória”, já dizia Jöel Candau, “é muito mais um enquadramento do que um conteúdo”. Seria muita ingenuidade imaginar que nossas experiências são memorizadas, conservadas e recuperadas em sua integridade. A memória não é algo que pode ser acessado do mesmo modo como recuperamos uma foto ou um arquivo perdido em um computador. Apegamo-nos ao passado porque tememos a perda de nossas referências e a diluição de identidades. Sem lembranças, acerta de novo Candau, “o sujeito é aniquilado”. O medo da fragmentação nos faz inventar um passado idílico no qual possamos nos agarrar.

3. Bem, não precisamos ser tão duros com os saudosistas. Mas podemos ao menos pedir um pouquinho de noção da realidade.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 3 de maio de 2021

SEXO, MALDIÇÃO E INFERTILIDADE NA BÍBLIA

O livro de Números (5,21-22) registra a seguinte maldição dirigida pelo sacerdote à mulher adúltera: “que o Senhor faça decair a tua coxa e inchar o teu ventre”. Do jeito que a tradução ficou na maioria das Bíblias, é difícil compreender do que se trata essa maldição. Uma tradução mais exata seria: “Que o Senhor faça falhar o teu sexo e inchar(?) o teu útero”. O sentido é claro: a mulher se tornará estéril por conta de sua falta.

A palavra hebraica traduzida erroneamente por “coxa” é “yarekh” (ירך), termo usado para indicar os órgãos sexuais masculino e feminino. Isso fica muito claro, por exemplo, em Gn 46,26, texto que contabiliza sessenta e seis pessoas como tendo saído “da coxa” de Jacó. Ora, elas não saíram “da coxa”, mas "do sexo", referindo-se ao sêmen que saiu de seu órgão sexual. Em Gn 24,2 o juramento de um servo é feito colocando-se a mão sob o “sexo” de Abraão. Juravam, como hoje, a respeito de coisas que consideravam valiosas...


Jones F. Mendonça

UMA PALAVRA, TRÊS SIGNIFICADOS: ZELO, CIÚME, INVEJA

O verbo hebraico “qana’” (קנא) significa literalmente “sentir grande ardor”, uma espécie de paixão, de desejo ardente por algo/alguém. Quando essa paixão é direcionada a algo considerado precioso, a tradução mais adequada é “ter zelo”. Quando é direcionada a uma pessoa (esposa, marido, etc.) indica “ter ciúme”. Quando essa paixão se direciona a algo considerado valioso que pertence a outra pessoa, o sentimento que se tem em vista é “ter inveja”. Três exemplos:

1. “E o Senhor teve qana (ZELO) por sua terra” (Jl 2,18).

2. “Quando o homem tiver qana (CIÚME) da sua mulher...” (Nm 5,30).

3. “Todas as árvores do Éden – as que estavam no jardim de Deus – tinham qana (INVEJA) dele” (Ez 31,9).



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 12 de abril de 2021

SOBRE O "AMOR AO PRÓXIMO" EM LV 19,18

Há uma discussão antiga a respeito da correta tradução do termo hebraico “רע”, geralmente traduzido por “próximo”, em Lv 19,18: “ame o teu próximo como a ti mesmo”. Richard Elliot Friedman e Jacob Milgrom, por exemplo, defendem que a palavra designa tanto o israelita com o estrangeiro. Hector Avalos, em artigo publicado recentemente no The Bible and Interpretation, pensa que ambos estão errados. De acordo com Avalos “apesar da aparente postura acolhedora e pró-imigrante, Lv 19,18 na verdade é parte de uma atitude colonialista e patriarcal para com os estrangeiros encontrada tanto em Levítico como em outras tradições bíblicas”.

Aos interessados, leiam aqui e aqui.



Jones F. Mendonça

SOBRE AS RESTRIÇÕES ALIMENTARES NO LEVÍTICO

Lendo uma coletânea de ensaios publicados em “The Book of Leviticus: composition and reception” (Brill, 2003), editado por Rolf Rendtorff e Robert A. Kukler, acabei conhecendo o trabalho da antropóloga britânica Mary Douglas. No capítulo 3 de “Pureza e perigo” (Perspectiva, 1976), ela reflete sobre “as abominações do Levítico”. Desde o judaísmo rabínico uma série de tentativas foi elaborada para explicar as (estranhas) restrições alimentares presentes no livro: os animais fariam mal à saúde, a proibição visaria impedir que os israelitas acolhessem costumes estrangeiros, etc. Mary Douglas desenvolveu uma tese diferente e inovadora. De forma básica, ela defende que as restrições precisam ser lidas à luz do relato sacerdotal da criação (Gn 1,1-2,4b). Aos que têm interesse no assunto, acho que vale dar uma conferida.



Jones F. Mendonça

domingo, 4 de abril de 2021

CHRISTUS PARADOX: SOBRE REPRESENTAÇÕES DO CRISTO NA CRUZ

1. Na história da arte cristã, o Cristo crucificado foi retratado de duas formas elementares: o Christus Victor (Cristo vitorioso) e o Christus Patiens (Cristo sofredor). O primeiro foi moldado a partir da teologia dos chamados Pais da Igreja, e enfatizava a vitória de Cristo sobre a Cruz, o pecado, a morte e as forças destrutivas do mal. O segundo ganhou força a partir do final da Idade Média, influenciado pela teologia de Anselmo de Cantuária, teólogo do século XI. A ideia era apresentar Cristo como “homem de dores”, exaltando seu corpo flagelado e, portanto, o elevado preço que pagou para resgatar a humanidade do pecado.
 
2. Um exemplo do Christus Victor pode ser visto na tela “Ressurreição”, de Matthias Grünewald, exposta no Museu Unterlinden, França. A tela mostra na extremidade direita um colorido Cristo ressurreto em ascensão acima do túmulo. O esquife está aberto, os guardas desmaiados, a figura de Cristo aparece cercada por um grande halo resplandecente em contraste com a escuridão do céu noturno. Com os braços estendidos mostrando as feridas em suas mãos, Cristo parece esboçar um singelo e sereno sorriso em seu rosto. Uma visão gloriosa.
 
3. Ao lado do Christus Victor, o Christus Patiens fez e ainda faz muito mais sucesso nas representações artísticas e no imaginário religioso cristão. A ênfase, neste caso, recai sobre a dor, as chagas, o sofrimento, a violência sofrida na cruz, um dos mais cruéis e humilhantes instrumentos de execução romana. É um erro pensar que o Cristo sofredor só ganhou destaque na teologia católica. Lutero, no debate de Heidelberg, de 1518, propôs a sua “teologia da cruz”, buscando relacionar os sofrimentos de Cristo aos sofrimentos do cristão. O Cantor Cristão (p. ex. hinos 84 e 94) está repleto de canções que exaltam o sofrimento de Cristo na Cruz.

4. O exemplo mais notável de como a representação de Cristo como homem de dores ainda agrada fiéis pertencentes tanto ao ambiente católico como protestante é o sucesso do filme “A Paixão de Cristo” (Mel Gibson, 2004), obra se propôs a fazer uma reconstrução dramática dos sofrimentos de Jesus, desde a traição, até a crucificação. O principal crítico de cinema do New York Times, Anthony Oliver Scott, chegou a classificar a obra como “paradoxo sadomasoquista”. Para o filósofo, sociólogo, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj Žižek, o filme tem o sabor e as cores de uma obra fundamentalista e deixa de fora elementos de uma experiência cristã genuína.
 
5. Em sua obra “Christus Victor”, publicada em 1951, o teólogo sueco Gustaf Aulen critica a valorização da representação do Cristo sofredor, do “Cristo morto”, promovida por Anselmo, em detrimento da imagem do Cristo vitorioso. Aulen, como Anthony Oliver Scott e Slavoj Žižek, acharia o filme “A Paixão de cristo” um verdadeiro show de horrores (eu também acho). Quem estiver interessado em ler um pouco mais sobre o assunto, sugiro um artigo meu publicado em 2018 na revista UNITAS, publicação semestral eletrônica de acesso livre da Faculdade Unida de Vitória.

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

AS TEOLOGIAS “DE CIMA” E AS TEOLOGIAS “DE BAIXO”

1. Por mais de dois mil anos predominou entre os teólogos cristãos – tanto católicos como [mais tarde] protestantes – o método dogmático-dedutivo de fazer teologia. Isso significa que toda reflexão partia do dogma, nascido como desdobramento da interpretação das Escrituras. No centro das reflexões apareciam temas como a Trindade, a eleição, a eucaristia, a soberania divina, etc. É o que se vê, por exemplo, na Suma Teológica de Tomás de Aquino e nas Institutas de Calvino.

2. A partir do século XX alguns teólogos desenvolveram um novo método de fazer teologia. Ao invés de tomar como ponto de partida o dogma, submeteram suas reflexões à exigência de uma teologia contextualizada, que parte de baixo, dos problemas humanos concretos. Na década de 60, por exemplo, os teólogos da libertação passaram a produzir uma teologia preocupada com a situação de indivíduos oprimidos, sobretudo os que viviam nos chamados países do Terceiro Mundo.

3. Assim, passaram a utilizar um método cujo foco não eram mais as formulações dogmáticas inspiradas nas Escrituras, mas ao contrário, a realidade histórica, a experiência concreta, interpretadas à luz das Escrituras não apenas para compreender a realidade, mas para mudá-la. Não veem o humano como uma alma encarcerada num corpo e que precisa ser salva, mas como um corpo que tem fome, frio e sede. E que também – é claro – se angustia com a finitude de sua existência.

 

Jones F. Mendonça

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O CRISTO, A CRUZ, AS MÃOS


Em "A descida da Cruz", de Jean Jouvenet, quem rouba acena são as mãos: 1. Mãos que descem o corpo da cruz (acima); 2. Mãos que abrem a mortalha (abaixo); 3. Mãos que fazem preces (direita); 4. Mãos que choram (esquerda). 



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

SOBRE O "ÊXODO HISTÓRICO"

Apesar da falta de evidências materiais (e do ceticismo de alguns arqueólogos), Richard Elliott Friedman defende a presença de um núcleo histórico no relato bíblico do Êxodo. Por trás da narrativa, tal como lemos no segundo livro do Pentateuco, um núcleo mais antigo refletiria uma migração de levitas (um grupo pequeno) do Egito para a região do Levante. Isso explicaria:

1. A ausência no nome “Israel” e referências ao Templo na Canção do Mar (a canção seria muito antiga, talvez pré-israelita, preservada por sacerdotes levitas oriundos do Egito);

2. Ausência da tribo de Levi na Canção de Débora (os levitas, nesse tempo, ainda não haviam chegado à terra ou eram apenas um grupo de sacerdotes);

3. Nomes egípcios dados a levitas, como Hophni, Hur, Merari, Mushi, Fineias e Moisés.

4. A tentativa, por parte das fontes atribuídas a sacerdotes levitas (E, P e D), de identificar divindades adoradas pelos patriarcas (sob o epíteto "El") com o recém-chegado YHWH (Cf. Ex 3; 6).

5. Paralelos arquitetônicos entre o Templo/arca da aliança e elementos do culto egípcio (a circuncisão também era praticada no Egito).

6. A ênfase das fontes levíticas E, P e D em ordenarem que não se deve maltratar estrangeiros.

Lei ao texto completo no TheTorah.

 

Jones F. Mendonça

sábado, 2 de janeiro de 2021

JOSÉ COMO CONTO SAPIENCIAL

1. Em seu comentário ao livro de Gênesis (1949), von Rad destacou o “notável parentesco” da história de José com a sabedoria antiga. José é representado na história como uma espécie de manifestação concreta das virtudes exaltadas no livro de Provérbios: é paciente, piedoso, sábio, foge da mulher estrangeira, não retribui o mal com o mal, etc. Seria a história de José um conto sapiencial?

2. Em ensaio publicado em “The Book of Genesis” (Brill, 2012, p. 232-261), Michael V. Fox acolhe parcialmente a tese de von Rad (vê afinidade entre o relato e a tradição sapiencial), mas entende que a história não tinha a finalidade de instruir discípulos nas diversas virtudes da sabedoria. Sua principal intenção seria enfatizar “a desgraça e a reabilitação de um servo”, ensinando que os sábios também estão sujeitos às vicissitudes da vida (cf, Ecl 9,11).


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

JÓ E A TEOLOGIA DA RETRIBUIÇÃO

1. Sofar de Naamat olhou para o Jó moribundo e disse assim: “Não sabes que o júbilo dos ímpios é efêmero e a alegria do malvado só dura um instante?” (20,4-5). E acrescentou, olhando de forma desdenhosa as feridas de Jó: “Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio” (v. 29).

2. Desafiando a teologia da retribuição, segundo a qual o sofrimento só se explica como resultado de alguma falta, Jó respondeu: “Então por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (21,7).

Jó padecia do corpo, mas não do cérebro.


Jones F. Mendonça

O BEIJO NA BÍBLIA

1. Faço investigações a respeito das demonstrações de afeto no Antigo Testamento, particularmente do beijo. É possível encontrar beijos paternos (Gn 31,55), beijos ardentes (Ct 1,2), beijos de reconciliação entre irmãos (Gn 34,4), beijos de despedida no leito de morte (Gn 50,1), beijos entre sogra e noras (Rt 1,9.14) e até beijos entre homens guerreiros (1Sm 20,41).

2. Em minha pesquisa também procurei saber como as versões traduzem tais textos. Para minha surpresa a Bíblia de Jerusalém troca “nashaq” (beijo, em hebraico) por “abraço” quando Jônatas beija Davi (1Sm 20,41 – além de se beijarem, choram copiosamente) e quando Noemi beija suas noras (Rt 1,9.14). Faz isso certamente para evitar que o leitor veja nos versos qualquer indício de relação homoafetiva.

3. Na epopeia de Gilgamesh, uma das histórias mais antigas da terra, o herói Gilgamesh chora amargamente enquanto se despede de seu inseparável amigo Enkidu, morto por derrotar o touro celeste enviado pela deusa Ishtar. Não seria prudente dizer, de forma precipitada, que Enkidu e Gilgamesh (e Davi e Jônatas) desenvolveram uma relação homoerótica. Ao mesmo tempo não é honesto torcer o texto com finalidade moralizante.

4. Quem estiver interessado em ler a história de Enkidu e Gilgamesh em formato HQ, pode encontrar duas obras muito bem ilustradas: “Cânone Gráfico 1” (autores diversos) e “Os melhores inimigos” (Jean-Pierre Filiu). Aos interessados em uma análise da relação entre Enkidu/Gilgamesh; Davi/Jônatas, sugiro: "When Heroes Love: The Ambiguity of Eros in the Stories of Gilgamesh and David", escrito por Susan Ackerman.


Jones F. Mendonça

APOCALIPSES E ANIMAIS FANTÁSTICOS


1. No livro bíblico de Daniel, capítulo 7 (4-7), quatro impérios opressores aparecem representados por animais fantásticos, bestas cujas aparências mesclam características de animais diferentes: leão alado, leopardo policéfalo, etc. No Apocalipse essas bestas ressurgem com um visual ainda mais estranho e sinistro: “a besta que eu via parecia uma pantera: seus pés, contudo, eram como os de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão” (Ap 13,2).

2. Representar forças caóticas ou ameaçadoras como animais fantásticos de aparência híbrida era uma prática muito difundida na Antiguidade. No Egito, por exemplo, uma besta com cabeça de crocodilo, membros anteriores de leão e membros posteriores de hipopótamo era usada para representar Ammit, o devorador de mortos (cf. imagem). Como no livro de Daniel a intenção era realçar a capacidade destrutiva das forças que representavam. 

3. Em contraste às quatro bestas malignas, Daniel apresenta em suas visões noturnas um quinto ser. Este, no entanto, não se parece com uma besta, mas com um “bar enash” (do aramaico “filho do homem”). A expressão reaparece em diversos livros bíblicos do AT (cf. Is 51,12; Jr 51,43; Ez 2,1; etc.) para indicar a humanidade do personagem. No caso de Daniel o propósito é mostrar que o quinto ser é de natureza diferente: tinha aparência humana, não bestial, como os demais. 

4. O domínio deste quinto ser, destaca o texto, não será passageiro nem opressor, mas justo e eterno. A mensagem de Daniel é simples, mas para entendê-la é preciso situá-la corretamente no tempo e no espaço. O Apocalipse releu Daniel e deu novo fôlego às esperanças escatológicas. Reler e ressignificar tradições religiosas é algo que faz parte de qualquer religião. Mas ressignificar não é, como muita gente imagina, uma solução para as leituras fundamentalistas. O fundamentalista também saberá reler... para o mal. 


Jones F. Mendonça

A CAPTURA DE SANÇÃO EM GUERCINO


Repare que nesta tela de Guercino as mãos dão movimento à cena da captura de Sansão, que aparece com os cabelos cortados. Eu contei 12 mãos. A única personagem que não exibe mãos é a moça debruçada sobre a coluna. Quem é ela? Nas representações artísticas da captura de Sansão, Dalila por vezes aparece sendo ajudada por outra mulher. Mas qual das duas é Dalila?


Jones F. Mendonça

JESUS COMO “NOVO MOISÉS” E “NOVO DAVI”

1. É bem conhecida a presença de elementos da vida de Moisés na narrativa da natividade apresentada por Mateus: ambos se estabelecem provisoriamente no Egito, ambos escapam da morte ordenada por um rei, ambos passam um período no deserto relacionado ao número 40, etc. Mas Lucas também retoma antigos temas tradicionais do AT.

2. O terceiro evangelho está repleto de referências ao livro de Samuel, personagem que prepara o caminho de Davi, o ungido (messias) de Javé. Note que em Lucas, a história de João Batista se relaciona com a de Samuel: os dois pertencem a uma família de levitas, tanto a mãe de Samuel com de João Batista são estéreis; Ana e Isabel entoam um cântico com vários elementos em comum.

3. Mas as semelhanças não param por aí: Davi nasce em Belém e é ungido por Samuel; Jesus nasce em Belém e é batizado por João Batista. Assim, João Batista funciona como um “novo Samuel” e Jesus como um “novo Davi” (ou um “novo Samuel”, compare 1Sm 2,26 com Lc 2,40). Caso você tenha interesse em conhecer mais paralelos entre o relato da natividade e histórias do AT, visite o site da Biblical Archaeology Society clicando aqui.

 

Jones F. Mendonça

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O "DEDO MÍNIMO" DE ROBOÃO

1. No Primeiro livro bíblico de Reis (12,10), o rei Roboão aparece dando um recado ao povo, que pede um jugo menos pesado. O rei responde assim: “Meu qoten é mais grosso que a cintura de meu pai!”, ou seja, meu governo vai ser ainda mais rígido que o de meu pai, Salomão.

2. Ocorre que o significado de qoten é incerto (só aparece novamente em 2Cr 10,10), mas os tradutores geralmente chutam “dedo mínimo”. É que o substantivo qoten possui mesma raiz de qaton, adjetivo que significa “pequeno”, daí imaginaram que a referência seja ao dedo mínimo

3. Quer saber? Eu acho que estão errados. 


Jones F. Mendonça

EXEGESE FUNDAMENTALISTA

Debate entre dois cristãos fundamentalistas sobre a posse de armas. Bobinho, a favor, cita as Escrituras: “cada um conservava sua ARMA na mão direita” (Nee 4,23). Depois menciona uma “profecia” sobre a liberação das armas no Brasil: “Eis que vou fazer voltar as ARMAS” (Jr 21,4).

Tontinho não perde tempo e também apanha sua Bíblia. Abre na Carta de Paulo aos Coríntios e contesta Bobinho: “Na verdade, as ARMAS com que combatemos não são carnais (2 Co 10,4). E então cita o Eclesiastes: “Mais vale sabedoria do que ARMAS” (Ecl 9,18).

Parece piada, mas é a partir de leituras assim que muitos debates se desenvolvem no ambiente religioso de matriz fundamentalista. Aqui posso citar dois nomes: Yago Martins e Augustus Nicodemus.

  

Jones F. Mendonça

A NEGRITUDE EM CANTARES

1. A amada, no livro bíblico de Cantares, diz assim: “sou morena, mas formosa” (1,5). Vale destacar que o “mas” é indicado pela consoante “vav” (uma conjunção), que pode significar “e”, “mas”, “porém”, “então” e até “porque”. Neste caso, a tradução “sou morena E formosa” não estaria errada.

2. Ocorre que no verso seguinte a mesma mulher diz “não olheis que sou morena”. Aqui fica claro que “ser morena” não era uma característica desejável. Essa nova informação sugere que o v. 5 deve de fato ser lido como “sou morena, MAS formosa”. Ela enfatiza que é bela, apesar da tonalidade de sua pele. 

3. Há outra questão no texto. A palavra traduzida por morena é “shahor”. Em Ecl 11,10 (no plural) o termo parece indicar a negritude dos cabelos (de um jovem). Outra palavra de mesma raiz (sharar) parece indicar a pele escura e adoecida de Jó (30,30). Em Ct 5,11 indica a cor de uma ave (um corvo?). 

4. Não é fácil traduzir cores no hebraico. Há quem sugira que a amada tinha pele negra como uma etíope. Mas há um problema com a tese. O v. 6 dá as razões para a pele “enegrecida”: “o sol me queimou” (lit. “o sol me avistou”). E por que o sol a avistou/queimou? Ela explica: “fizeram-me guardar vinhas”. 

5. Em minha opinião “ter a pele escura” (ou seja, bronzeada) era algo mal visto não por uma questão racial, mas por questões sociais. Ela não era negra (sob a perspectiva étnica), mas estava “bronzeada”, “queimada pelo sol”, afinal era “cuidadora de vinhas”. Era alguém – como dizem hoje – “da ralé”. 


Jones F. Mendonça

terça-feira, 10 de novembro de 2020

PROFETAS, IMPÉRIOS E MILÍCIAS

1. Por volta de 705 a.C., com Samaria já conquistada pelos assírios, Judá vive sob enorme pressão. Em Jerusalém Ezequias ensaia a segunda tentativa de se livrar da humilhante relação de vassalagem ao qual seu reino foi submetido no tempo de seu pai, Acaz. O capítulo 7 do profeta Isaías mostra um Acaz pouco confiante na proteção de Javé, deus nacional. Isaías diz: “pede um sinal”. Acaz responde: “não pedirei” (Is 7,11-12). Voltemos a Ezequias.

2. Não havia soluções fáceis para o rei. Os tributos cobrados pela Assíria eram pesados. O povo amargava com altos impostos. Rebelar-se, por outro lado, era coisa bastante arriscada. Uma das soluções mais viáveis era buscar apoio no Egito, grande potência do norte da África. É nesse contexto que o profeta Isaías – contrariado – anda nu descalço, anunciando teatralmente o futuro de seus aliados egípcios: serão levados ao cativeiro assim, peladões (Is 20,4). 

3. Quando Senaqueribe, rei da Assíria, percebeu a rebeldia de Judá, tratou imediatamente de acionar sua poderosa máquina de guerra. O Prisma de Senaqueribe registra os resultados de sua mão pesada: “Sitiei 46 das suas cidades fortificadas [...]. Eu o prendi em Jerusalém, a sua residência real, como um pássaro em uma gaiola”. Isaías diz algo parecido: “Só restou a cidade de Sião como tenda numa vinha, como abrigo numa plantação de melões, como uma cidade sitiada” (Is 1,8). 

4. Os grandes impérios agiam como as milícias do Rio de Janeiro: se você não paga, eles queimam sua Kombi. Ezequias, que não era bobo, certamente não ia querer sua “Kombi” queimada. Então se retrata “Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres” (2Rs 18,14). A assíria, é claro, não deixou barato. O texto de Reis diz que Ezequias pagou 300 talentos de prata e trinta talentos de ouro. Para pagar a vultosa despesa o rei teve que retirar ouro do templo e de seu palácio. 

5. De Laquis, cidade vizinha de Jerusalém, o rei da Assíria mandou o recado: "Confias no apoio do Egito, esse caniço quebrado..." (2Rs 18,21). O povo, condenado a "beber da própria urina e comer do próprio excremento" durante o cerco (v. 27), ainda teve que ouvir insultos em seu próprio idioma: "Dentre todos os deuses das nações, quais os que livraram sua terra da minha mão?" (V. 35). 



Jones F. Mendonça

INDULGÊNCIAS

1. De modo geral não são mal compreendidas as críticas de Lutero às indulgências. Não é difícil encontrar gente dizendo que o monge agostiniano se impôs contra a “venda de terrenos no céu” ou que criticou uma doutrina católica que dava ao Papa o poder de perdoar pecados. Nada mais falso.

2. De acordo com a doutrina católica, as indulgências tinham o poder de perdoar as penas temporais e não os pecados. Explico. As penas temporais eram uma espécie de reparação pelo pecado exigida pela Igreja. Sempre que um fiel se sentisse arrependido pelo pecado (contrição) ele precisava declarar esse pecado ao padre (confissão auricular), que indicava uma tarefa que visava reparar a falta cometida (penitência). 

3. Ocorre que havia um entendimento de que essas penitências (e não os pecados, só perdoados por Deus) podiam ser apagadas pelo papa por meio das chamadas indulgências. Essa indulgência podia ser dada gratuitamente em uma data especial (chamadas de indulgências plenárias) ou por meio do pagamento em dinheiro. Bem, todos sabemos o que acontece quando o dinheiro monta no cavalo da fé... 

4. A igreja queria reformar a basílica de São Pedro e a grana forte arrecadada com indulgências apontou no horizonte como a melhor solução para transformar a basílica na imponente construção que é hoje. Lutero via tudo isso com desprezo e achava que o Papa não sabia desses abusos. Por conta de insatisfações como essa, o reformador escreveu suas famosas 95 teses contras as indulgências. Os teólogos dominicanos do Vaticano não gostaram. O Papa não gostou. E a gente sabe no que deu essa história. 


Jones F. Mendonça

MALAQUIAS E O DISCO SOLAR ALADO



1. Malaquias 4,2, na versão NVI, diz assim: “o sol da justiça se levantará trazendo cura em suas asas”. É muito tentador pensar que a imagem que se evoca é a do sol alado, símbolo usado por antigas potências, como o Egito, a Assíria, a Babilônia e a Pérsia. Esse tipo de representação era tão comum que aparece até mesmo no selo de Ezequias, encontrado em 2015 em Jerusalém (cf. imagem*). Mas será que o texto está mesmo fazendo alusão ao sol alado? Acho que não.

2. Fiz uma tradução bem literal do texto. Ficou assim: “Resplandecerá para vós, tementes de meu nome, o sol da justiça e a cura na sua ORLA/ASA...” (Mal 4,2). A questão talvez possa ser resolvida aqui: a palavra hebraica “canaph” pode ser traduzida tanto por “asa” como por “orla”. Estou mais inclinado a pensar que a ideia transmitida pelo texto é a de que o “sol da justiça” resplandece e “cura” através de seus raios (que saem de sua orla).  

3. Note que o v.1 ameaça os arrogantes com algo que “queima como um forno”. Diz ainda que eles “queimarão como palha” de forma que não lhes restará nem raiz nem ramo. No v. 2 esse calor, representado pelo “sol da justiça”, não queima os que "temem o seu nome", mas traz cura. E de onde sai essa cura? Ora, de “sua orla”, do calor que emana do disco solar e que alcança a terra. Não seria nenhum escândalo o profeta usar o símbolo solar com asas, mas parece que não é este o caso. 

4. É claro que sempre posso estar errado. 

*No selo vem escrito o seguinte: "Pertencente a Ezequias [filho de] Acaz, rei de Judá". O reino de Judá tornou-se vassalo da Assíria sob Acaz e seu filho Ezequias. 


Jones F. Mendonça

SOBRE PRESSUPOSTOS

“A fé cristã afirma a necessidade de abraçarmos, com todo nosso coração, certos pressupostos, que determinarão como interpretamos as Escrituras”[1]. 

Pergunta: de onde vêm os “pressupostos” de Ferreira? Obviamente não podem vir das Escrituras, porque determinam sua leitura. 

Por trás das peles, dos músculos, dos nervos, das tripas, o que a gente enxerga é a "boa" e velha teologia medieval. 

[1] FERREIRA, Franklin. Curso Vida Nova de teologia básica – Vol 7. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 20.


Jones F. Mendonça

ANACRONISMOS REFORMADOS

Embora se diga repetidamente que as “cinco solas” (Sola fide, Sola scriptura, Solus Christus, etc.) são os pilares da Reforma, não existe tal formulação assim, tão arrumadinha, entre os reformadores. Kevin Vanhoozer diz que as cinco declarações latinas só ganharam essa disposição no século XX.

Saiba mais:

VANHOOZER, Kevin J. Biblical Authority after: Retrieving the solas in the Spirit of Mere Protestant Christianity: Grand Rapids: Brazo, 2006, p. 26-27.

SOBRE TEOLOGIAS FRÁGEIS

1. Sofar de Naamat olhou para o Jó moribundo e disse assim: “Não sabes que o júbilo dos ímpios é efêmero e a alegria do malvado só dura um instante?” (20,4-5). E acrescentou, olhando de forma desdenhosa as feridas de Jó: “Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio” (v. 29). 

2. Desafiando a teologia da retribuição, segundo a qual o sofrimento só se explica como resultado de alguma falta, Jó respondeu: “Então por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?” (21,7). 

3. Jó padecia do corpo, mas não do cérebro



Jones F. Mendonça

sábado, 7 de novembro de 2020

WAYNE GRUDEM: "OS BENS SÃO PARA GLORIFICAR A DEUS" (SEI...)

“Tal sistema [o comunismo] é maligno porque permite às pessoas possuir apenas alguns bens e, dessa maneira, as impede de ter a oportunidade de glorificar a Deus pela posse de um bem, de uma casa ou de um negócio” (GRUDEM, Wayne. Negócios para a glória de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 21). 

O trecho “glorificar a Deus pela posse de um bem” e o próprio título do livro: "Negócios para a glória de Deus" foi um pouco demais pra mim... 


Jones F. Mendonça

REBECA NÃO CAI DO CAMELO

1. Investigo a hipótese de que Gn 24,64 descreva Rebeca “caindo do camelo” ao avistar Isaac, homem que lhe havia sido prometido em casamento. Seria aquele tipo de queda causada pela paixão à primeira vista. Será?

2. As versões traduzem o verbo “naphal” por “desceu”, “apeou”, ou “saltou” [do camelo]. De fato o verbo pode ser traduzido por “caiu”, como em Nm 14,32: “vosso cadáver cairá [naphal] neste deserto”. 

3. Mas o sentido primário do verbo não é exatamente “cair”. Uma análise atenta revela que sua função é indicar uma descida súbita [não voluntária ou voluntária]. José, por exemplo, “desce” [com sua cabeça] ao pescoço de Benjamim, para abraçá-lo (Gn 45,14). Uma tradução melhor seria “se lança”. 

4. Eu poderia citar muitos outros exemplos. 2Rs 5,21 expõe um caso muito parecido com Gn 24,64 (Rebeca/Isaac). O texto apresenta Naamã “saltando/se lançando do carro” para encontrar Geazi, que o persegue. Não há qualquer indício, no texto, de que tenha “caído do carro” (2 Rs 5,21). 

5. Minha opinião: na verdade Rebeca não “cai” do camelo (até porque ela se feriria). O texto usa o verbo “naphal” para destacar sua descida súbita. Ela estava ansiosa para conhecer seu pretendente. Assim que tem certeza de que é a pessoa certa, Rebeca coloca o véu (v. 65) e entra com ele numa tenta (v. 67). 

6. Acho que não é preciso dizer o que eles fizeram lá dentro... 


Jones F. Mendonça