quarta-feira, 25 de junho de 2014

JERUSALÉM: DIVA DE PIERCING EM EZEQUIEL 16

Em Ezequiel 16 Jerusalém é comparada a uma menina recém-nascida abandonada pelos pais, mais tarde acolhida, cuidada e embelezada com as mais finas jóias e vestes por Javé, Deus de Israel, até que atinja a idade adulta. 

O processo de transformação do bebê abandonado em uma belíssima mulher é detalhadamente descrito pelo profeta. De acordo com a NVI (Nova Versão Internacional), no verso 12 a mulher recebe “um pendente”, brincos nas orelhas e uma linda coroa na cabeça (NVI): 
dei-lhe um pendente, pus brincos em suas orelhas e uma linda coroa em sua cabeça.

A dúvida que fica é: onde foi colocado esse “pendente”? Uma rápida consulta ao texto hebraico revela que a NVI omitiu a expressão “al-appekh”:


Uma tradução literal ficaria assim:

Dei uma argola/anel/pendente sobre teu nariz...

Os tradutores da NVI parecem ter censurado o piercing da moça (omitiram “sobre teu nariz”). Estranho é que em Gn 24,47 esses mesmos tradutores não ocultaram o local no qual foi posto um pendente em Rebeca: 
“Então coloquei o pendente em seu nariz (hanezem al-appah) e as pulseiras em seus braços”.

A construção do texto é basicamente a mesma, o que muda é a presença do artigo antes de “pendente” (hanezem = “o pendente”) e o sufixo pronominal de 3ª p. sing. fem. anexado à palavra nariz (appah= nariz dela).

A ACF (Almeida Corrigida e Fiel) faz algo igualmente curioso. Em Ez 16,12 traduz “pendente na testa”, mas em Is 3,21 traduz por “joias do nariz” (venizmey haaf – no construto). Mais uma vez as palavras são as mesmas: “pendente/argola/anel” (nezem) e “nariz” (af), o que muda é a forma como o texto foi construído.

Quem entende o que vai pela cabeça desses tradutores?


Jones F. Mendonça

terça-feira, 17 de junho de 2014

JOÃO CRISÓSTOMO E A PITONISA DE DELFOS

Para consultar os deuses, os gregos empregavam um método curioso. Uma sacerdotisa virgem, sentada sobre um tripé colocado acima de uma fenda, era afetada pelos os vapores saídos da rocha. Os gases faziam com que a mulher balbuciasse palavras em estado de transe, que eram interpretadas pelos sacerdotes. Há quem pense que o transe era provocado pelos gazes tóxicos aspirados pela pitonisa. Mas João Crisóstomo (347-407) tinha uma opinião diferente:
A pitonisa era uma mulher que se sentava sobre o tripé de Apolo, mantendo as pernas abertas; em seguida, um sopro maléfico surgia de baixo e, infiltrando-se através de seus órgãos genitais, levava essa mulher ao delírio, e ela com o cabelo desgrenhado dava início ao bacanal espumando pela boca (João Crisóstomo, Homilia XXIX sobre I Coríntios).
Se os gases de fato tiveram algum papel no transe da pitonisa é possível pensar em duas hipóteses: Ou ele era desencadeado pelo sopro vulcânico que atingia os órgãos sexuais da mulher reprimida por longos anos de castidade forçada ou o reprimido era João Crisóstomo, que se concentrou nas pernas abertas da mulher e não no gás inalado por sua boca e  nariz. Estou mais inclinado à segunda hipótese. 

O que a arqueologia pode nos dizer a respeito da pitonisa de Delfos? Leia no The Bible History Daily.  


Jones F. Mendonça

domingo, 15 de junho de 2014

MISOGINIA TERTULIANA II

Pois delinquem contra Ele as que martirizam a cútis com maquiagem, mancham suas bochechas de vermelho, perfilam os olhos de preto. Com efeito, a elas desagrada a obra de Deus; nelas próprias repreendem e refutam o artífice de todas as coisas. Inculpam-se, pois, quando corrigem, quando acrescentam, tomando esses aditamentos do artífice adversário, isto é, do diabo.

Contra a participação feminina nos cultos em De praescriptione  haereticorum, 41.
Estas mulheres heréticas – ousadas que são! Não têm nenhuma modéstia; são audaciosas a ponto de ensinar, travar debates, realizar exorcismos, efetuar curas, e talvez até batizar.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 11 de junho de 2014

PEDRO ABELARDO, O “SIC ET NON” E A TEOLOGIA CRÍTICA

Quem lê o “Sic et non” do teólogo escolástico Pedro Abelardo (1079-1142), tem a nítida noção do equívoco de se atribuir aos teólogos dos séculos XVII e XVIII a introdução da dúvida e do questionamento na reflexão teológica. Influenciado pela filosofia de Aristóteles, Abelardo dá passos significativos em direção ao que mais tarde será chamado de crítica bíblica.

Para solucionar o problema da “aparente contradição nos ditos do santos padres e das Escrituras”, Abelardo apresenta as seguintes soluções: 1) um falso documento foi atribuído de forma equivocada a algum santo (trata-se de um livro apócrifo) ou os copistas cometeram erros; 2) o texto não foi bem compreendido; 3) os erros cometidos pelos santos padres foram corrigidos em textos escritos num período posterior; 4) alguns termos não devem ser interpretados literalmente, pois apenas expressam uma opinião comumente aceita. Abaixo trechos do Sic et non [1]: 
1) Quando nos são apresentadas algumas afirmações dos santos como opostas entre si ou distantes da verdade, convém que examinemos atentamente, para não sermos enganados por falsas atribuições de obras, ou por corrupção do texto. A maior parte dos escritos apócrifos traz o nome de santos como autores, a fim de, com isso, ganhar autoridade; e alguns textos até mesmo da Bíblia foram corrompidos por erro dos copistas (p. 118); 
2) Se, pois, nos escritos dos santos, parece que algo não condiz com a verdade, então é piedoso, conforme a humildade e devido pela caridade [...], que creiamos que esta passagem do texto não foi fielmente interpretada ou foi corrompida, ou nós não a conseguimos compreender (p. 119);
 3) Julgo também que se deve dar não menos atenção ao fato de que os textos tomados dos escritos dos padres podem ser daqueles que por eles foram retratados em outro lugar, tendo sidos corrigidos após terem conhecido a verdade, tal como o fez Santo Agostinho em muitos casos (p. 119); 
4) ...nos Evangelhos constata-se que algumas coisas são ditas mais segundo a opinião dos homens que segundo a objetividade da verdade. Foi o caso, por exemplo, de Maria, mãe do Senhor, quando, segundo o costume e a opinião popular, chamou a José de pai de Cristo (Lc 2,48) (p. 121).

Abelardo finaliza: “se consta, pois, que nem mesmo os profetas e os apóstolos estiveram todos livres do erro [como o Pedro dissimulado em Gálatas], que há de admirar se em tão inúmeros escritos de santos padres haja algumas coisas erradas, devido aos motivos apontados?”.  Mas ao defender a autoridade das Escrituras e dos textos dos primeiros padres expondo explicações para “supostas contradições”, Abelardo põe em relevo questões espinhosas, abrindo precedentes perigosos para a ortodoxia.  

O método de Abelardo para a busca da verdade consiste na confrontação de textos divergentes pelo questionamento (quaestio) e pelo debate e disputa de ideias (disputatio) sob a direção do mestre, a quem cabia a conclusão: 
Depois de colocar estas questões [os pontos de 1 a 4 expostos acima], gostaríamos agora de, como nos propusemos, reunir as sentenças divergentes dos santos padres das quais nos recordamos. Esperamos que estas sentenças, devido às dissonâncias que aparentam ter, suscitem algumas perguntas que provoquem os jovens leitores ao exercício supremo de procurar a verdade, e pela procura os tornem mais sagazes. [...] É que duvidando chegamos à procura, e procurando chegamos à verdade [...] (p. 129).

O retorno às fontes (ad fontes) feito sob a direção de humanistas com Lourenzo Valla e Erasmo de Roterdã e o livre exame e o abandono da alegoria por Lutero, no período da Reforma, dá novo impulso ao surgimento de um método de interpretação bíblica desvinculado da autoridade eclesiástica e cada vez mais comprometido com a razão. Em 1678, com a publicação da História Crítica do Antigo Testamento, por Richard Simon, o uso da inteligência para encontrar o sentido objetivo da Escritura finca definitivamente suas raízes no terreno da pesquisa bíblica. A razão, agora livre das rédeas da ortodoxia, inicia sua impiedosa cavalgada. Mas em pleno século XXI o homem ainda parece preferir a certeza do dogma, que a dúvida suscitada pela razão.   

Nota:
[1] DE BONI, Luis Alberto. Filosofia medieval: textos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, pp. 116-129.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 4 de junho de 2014

DE CULTU FEMINARUM: MISOGINIA TERTULIANA

Tertuliano em De cultu feminarum I,1,1-2: 
Não percebeis que sois, cada uma de vós uma Eva? A maldição de Deus contra esse vosso sexo perdura até mesmo em nossos tempos. Culpadas, deveis suportar suas agruras. Sois o portão do diabo; profanastes a árvore fatídica; fostes vós as primeiras a trair a lei de Deus; enternecestes com vossas lisonjas aquele contra quem o diabo não triunfou pela força. Com demasiada facilidade destruístes a imagem de Deus, Adão. Vós é que sois merecedoras da morte, por vossa causa, o Filho de Deus teve de morrer. 
Et Euam te esse nescis? Viuit sententia Dei super sexum istum in hoc saeculo: uiuat et reatus necesse est. Tues diaboli ianua; tu es arboris illius resignatrix; tu es diuinae legis primadesertrix; tu es quae eum suasisti, quem diabolus aggredi non ualuit; tuimaginem Dei, hominem, tam facile elisisti; propter tuum meritum, id est mortem,etiam filius Dei mori habuit.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 3 de junho de 2014

TEOLOGIAS: RETA DOUTRINA, PENTECOSTAL, NEOPENTECOSTAL

A fé, no protestantismo histórico, se expressa no conhecimento da doutrina, daí a expressão “protestantismo de reta doutrina” cunhada por Rubem Alves. Nesse sentido, bom cristão é quem domina com maestria as sagradas letras, quem conhece os artigos de fé, quem defende a sã doutrina contra os “filhos de Satanás”.

No pentecostalismo o bom cristão é aquele que passa pela experiência do Espírito.  O que conta mais não é o saber, mas o experimentar. A letra – gostam de dizer – mata, mas o Espírito vivifica. Só quem passou pela experiência do batismo do/no Espírito detém uma “unção especial”, tem os charismas potencializados. É “crente plus”.

Entre os neopentecostais crente mesmo é quem dá resultado. Pastor ungido é aquele que acrescenta muitas ovelhas ao rebanho. Crente bom é aquele que é fiel no dízimo, que faz faxina no templo sem cobrar, que vota no candidato do bispo. O Deus verdadeiro é aquele que “alarga as fronteiras” dos que depositam seus bens aos pés dos sacerdotes na “sala do tesouro”. 

Resumindo: Protestantismo histórico: creio porque é verdadeiro. Pentecostalismo: creio porque experimentei. Neopentecostalismo: creio porque dá resultado.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 30 de maio de 2014

ETERNO RETORNO

Lá do alto viu Paulo de Tarso atravessando mares e arriscando a vida pelo Crucificado. Conheceu Clemente Romano, Orígenes, Cipriano, Agostinho. Examinou com atenção os textos de Boécio, Anselmo, Erígena, Alberto, chamado “o Magno”. Acompanhou a igreja entusiasmada com a philosophia aristotelico-tomisticaeObservou a atuação dos guardiões da ortodoxia. A queima de hereges, o incêndio de livros, o falso zelo pela castidade, os pecados do clero.

Viu Occam escrever tratados sobre a separação entre o Estado e a Igreja. Riu dos textos sarcásticos de Erasmo contra o papa. Viu Lutero divulgar suas 95 teses contra as indulgências e leu seus textos anunciando a tão sonhada liberdade. Examinou as Institutas, as confissões doutrinárias, o catecismo da Reforma, a guerra religiosa que queimou hereges que não seguiam a cartilha protestante. Lamentou a morte de camponeses, de judeus, de huguenotes, de católicos, de Servetto. Tudo igual.

Viu nascer pietistas e puritanos zelando pela simplicidade e pureza. Batistas e presbiterianos cultivando um espírito democrático. Estava lá, quando Pentecostais, portando o fogo do Espírito, reuniram multidões num gozo celeste. Frequentou cultos neopentecostais, prometendo dinheiro no bolso e carro novo. Acompanhou o crescimento dos “sem igreja”, decepcionados com a institucionalização da fé.

Observou tudo isso sentado em seu trono celeste. Após cerca de dois mil anos viu-se abatido por um profundo tédio. Pediu a São Jerônimo uma folha de papel, uma caneta, e tratou de escrever poemas.  Multiplicou-os com seu poder e lançou-os na terra sob o estrondo de raios e trovões. Mas era tarde demais. Não conseguiam ler poesia. Foram cegados pela ortodoxia. 


Jones F. Mendonça

sábado, 24 de maio de 2014

LETRAS FÚNEBRES

Enfiaram-lhe adentro dos orifícios do corpo pequenos dogmas infalíveis. Belas letras escritas em ouro no elegante idioma dos latinos. As letras sacras foram parar no estômago, entraram na corrente sanguínea, na pele, nos cabelos, no cheiro que exala de seu corpo vil. Converteu-se, enfim, à doutrina ortodoxa. Por fora, um santo. Por dentro, apenas letras fúnebres...



Jones F. Mendonça

SERVETTO, CASTELLIO, CALVINO E O "CONSELHO DOS SANTOS"

Na Europa do século XVI viveu um espanhol errante chamado Miguel de Servetto. Nome de anjo, fama de diabo, era visto como herege pelos teólogos-protestantes-de-reta-doutrina de Genebra.

Miguel cria que o Pai era um somente. Entendia que o Filho e o Espírito eram aspectos diversos de uma mesma pessoa. Rejeitava o credo Atanasiano segundo o qual "não devemos confundir as pessoas nem dividir a substância". Para piorar cismou de dizer que a Palestina é uma terra seca, aparentemente contrariando o texto que diz que por aquelas bandas o leite e o mel brotam da terra.

Calvino subiu nas tamancas: “se aparecer por aqui, não permitirei que saia vivo!” O infeliz acabou capturado e conduzido ao Conselho de Genebra, formado por um tipo de gente capaz de tudo para preservar suas doutrinas de papel.

O nome completo da vítima: Miguel de Servetto. A alcunha do algoz: Calvino. A data: 1553. O tipo de execução: as chamas. Se alguém levantou a voz contra isso? Sim, Sebastian Castellio, um herege que tinha a compaixão - mas não a "sã doutrina" - no coração.


Jones F. Mendonça


terça-feira, 20 de maio de 2014

O BEIJO

Tendas rubras que se abrem são os lábios.
Balizas de marfim são os dentes.
A língua é tapete.
Tudo é convite.


Jones F. Mendonça

CONTRA O IDEALISMO

Desde Platão os homens pensam que o mundo é fruto das ideias (idealismo). Todos os projetos humanos sairiam de sua cabeça, do “mundo das ideias”. O erro do idealismo: confundir causa com efeito. O remédio proposto por Marx: compreender que as ideias é que são fruto do mundo e não o contrário. Trata-se de um remédio bem amargo, é verdade.


Jones F. Mendonça

sexta-feira, 16 de maio de 2014

PINTANDO EM NUVENS

O sujeito evangélico usa uma frase do católico G. K. Chesteston para defender a ortodoxia. Esquece-se, todavia, que o protestantismo foi considerado uma heresia cristã pela cúria romana no século XVI. Questão: a tese do pensador católico defendendo a ortodoxia também é legítima quando empregada pelos “hereges”? 

Defender a ortodoxia é como pintar em nuvens. Isso porque ortodoxia e heresia são conceitos do tipo gelo de lago no início da primavera, frágeis que só...



Jones F. Mendonça

PANDEMIA, LEGIÃO E CARDUME

Quem tenta interpretar o mundo a partir de seu próprio mundo incorre em grave erro: toma o particular como se fosse o geral. Transforma endemia em pandemia, vê soldado como se fosse legião, sardinha como se fosse cardume. Remédio: observar o mundo de cima. Ah, mas subir dá tanto trabalho...



Jones F. Mendonça

terça-feira, 13 de maio de 2014

NÃO HÁ DRAGÕES ALÉM DO HORIZONTE

Fala-se aqui e ali do aumento da imoralidade. Trata-se de uma tese sem fundamento. Quem vasculha os alfarrábios da história sabe que a pedofilia e a relação homoafetiva já eram aceitas na antiga sociedade grega. Não se dão conta de que há uns poucos anos meninas de 14 anos eram casadas contra a sua vontade no Brasil com homens bem mais velhos (o Decreto nº. 181/1890 fixou a idade mínima de 14 anos para as mulheres). Era uma espécie de prostituição infantil aceita pelo Estado e pela sociedade em geral. O que mudou mais não foram os atos, mas os olhos de quem vê (o sensacionalismo de Datena e o moralismo de Malafaia ajudam a embaçar os olhos).

Caso lessem com atenção os livros de história veriam que as guerras do passado matavam muito mais, que os reis da antiguidade degolavam seus filhos com medo de traição, que em terras ditas “civilizadas” as crianças eram tratadas como animais de estimação, que os atletas gregos competiam nus, que se um indivíduo professasse a religião “errada” era lançado aos leões ou tinha seus bens confiscados. Dessem uma olha dos arquivos televisivos da década de 80 veriam que as roupas daquela época mostravam muito mais o corpo do que hoje (quem se lembra do short Suzi?). O erro dos moralistas precipitados: analisar a história do mundo a partir de um tempo particular. Olham para o umbigo pensando que estão contemplando o universo. Um remédio para os olhos e para o cérebro: desligar a TV.  



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 12 de maio de 2014

PSICOLOGIA DE BOTECO

O sujeito é comunista: tem inveja dos ricos. O sujeito é capitalista: tem ódio dos pobres. O sujeito vive sorrindo: esconde uma tristeza profunda. O sujeito vive triste: tem medo de ser feliz. O sujeito rejeita o sistema de cotas: é racista. O sujeito apoia o sistema de cotas: é petralha. O sujeito faz academia: compensa sua baixa auto-estima fortalecendo o corpo. O sujeito troca a malhação pelos livros: compensa sua baixa auto-estima fortalecendo a mente. O sujeito gosta de carro grande: tem pênis pequeno. O sujeito gosta de carro pequeno: esconde um ego grande. O sujeito é religioso: é neurótico. O sujeito é ateu: alimenta um desejo de negação. O sujeito é homossexual: foi violentado na infância. O sujeito é heterossexual: no fundo é gay.

A psicologia barata transforma todos em loucos, como no famoso conto de Machado de Assis...


Jones F. Mendonça

sábado, 3 de maio de 2014

SOMOS TODOS POLÊMICOS

“Todos viemos do pó e a ele retornaremos”: perspectiva judaico-cristã. “Todos seremos comidos pelo bicho da terra”: versão vulgar. “Todos somos deuses”: percepção hindu. “Todos temos a centelha divina”: perspectiva gnóstica. “Todos somos filhos das estrelas”: concepção científica. “Todos temos um ancestral comum”: perspectiva darwinista. “Todos somos macacos”: Perspectiva do Neymar. No fundo (cada qual com sua crença) todos querem dizer a mesma coisa: todos somos iguais.


Uns fizeram uso político. Outros viram uma oportunidade para ganhar uns trocados. E deu essa polêmica toda...


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 30 de abril de 2014

CONFLITO NA PALESTINA

Enquanto peças russas e euro-americanas dançam no tabuleiro de xadrez na Ucrânia, o líder da Autoridade Palestina (AP), Mahmoud Abbas, dá as suas cartas de forma muito racional e pragmática num conflito que já dura mais de meio século. Sua recente declaração, em três idiomas (árabe, hebraico e inglês), reconhecendo que o holocausto nazista foi o maior crime da história moderna revelou seu empenho em avançar nas negociações. Para quem não sabe (ou não se lembra), na tese de doutorado defendida em sua juventude (1984), Abbas sugeriu que o número de judeus mortos no holocausto poderia ser menor que um milhão e questionou a existência de câmaras de gás para matar judeus.  

Outro passo importante dado pelo líder palestino foi ter promovido a reconciliação entre o Hamas (Gaza) e o Fatah (Cisjordânia). O primeiro grupo, qualificado como terrorista por muitos países, deu carta branca para Abbas negociar. O Hamas ainda não declarou reconhecer o Estado judeu ou que irá abdicar do terrorismo, mas não tenho dúvidas de que o líder da AP se empenhará nessa tarefa (que provavelmente não será fácil e nem rápida).

Para quem não confia na disposição de Abbas em fazer concessões, lembro que ele aceitou a permanência de tropas israelenses no vale do Jordão por cinco anos após a criação de um Estado palestino, sendo substituída, numa transição, por forças da OTAN. Todo esse movimento de Abbas requer uma contrapartida do governo israelense sob risco de se tornar um Estado de apartheid, como declarou recentemente o secretário de Estado americano John Kerry.  

A negociação pelo processo de paz entre palestinos e israelenses tem sido marcada ora pelo enrijecimento da liderança palestina (negação do holocausto, não reconhecimento do Estado de Israel, terrorismo, etc.), ora da liderança israelense (ataques militares violentos e desproporcionais, ampliação de assentamentos judaicos, políticas de repressão, etc.). É bem difícil ser otimista na solução desse conflito, mas se todas essas barreiras foram transpostas restará aos negociadores a difícil tarefa de demarcar as fronteiras. Este talvez seja o desafio mais espinhoso.



Jones F. Mendonça

A DOR

Carne em agonia candente,
desafinado acorde.
Aguçado gládio da alma,
lamento em tom menor.



Jones F. Mendonça

terça-feira, 22 de abril de 2014

SÓCRATES E A POPOZUDA DO FUNK

Um pouco atrasado, mas lá vai:

Antônio Kubitschek é professor de filosofia numa escola de Brasília. Ele elaborou uma prova e inseriu uma questão colocando a funkeira Valesca Popozuda como “pensadora contemporânea”. A ideia era provocar os alunos. Como qualquer bom professor queria que refletissem. A polêmica explodiu no Facebook. Alguns viram a questão como uma ameaça à moral e aos bons costumes. Outros como uma afronta aos ilustres intelectuais de nosso tempo. Outros ainda como uma clara evidência do baixo padrão do ensino público no Brasil.

O julgamento foi precipitado e preconceituoso. Interpretaram a questão sem levar em conta a didática do professor, a matéria que estava sendo lecionada, o tipo de aluno e a intenção por trás do exercício proposto. Aliás, seu objetivo foi muito bem explicado numa entrevista que quase ninguém viu (ou quis ver). E pensar que Sócrates, um dos maiores pensadores da antiguidade, filosofava no mercado popular de Atenas com semelhante deboche e bom humor. Seu destino? Morreu envenenado com um cálice de cicuta após ter sido acusado de “perverter os jovens”. A mesma acusação e sentença foram dadas ao nosso ilustre professor de Brasília. A diferença é que hoje o julgamento e a “cicuta” são administrados via Facebook.



Jones F. Mendonça

domingo, 20 de abril de 2014

DEUS SOBRE DEUSES

El, Sin, Baal, Elohim,
Deus otiosus, deus lua, deus plúmbeo, deus plural.
Yahweh da tormenta, dos raios e trovões,
voando sobre querubins em alvas brumas.
Deus sobre deuses, henoteísmo mascarado pelas letras do tempo.


Jones F. Mendonça

CASTELLIO X CALVINO: TOLERÂNCIA E FANATISMO RELIGIOSO

Leia aqui
São bem conhecidos os embates entre Lutero e Erasmo, mas poucos conhecem os conflitos entre Calvino e Castellio, considerado o primeiro a elaborar um tratado de tolerância religiosa no período da Reforma. Sebastian Castellio foi amigo pessoal de Calvino até que passou a criticar a doutrina da predestinação e os rígidos preceitos morais de Genebra. 

Vendo como absurdo o apoio de Calvino à condenação de Serveto, escreveu em março de 1554 o tratado De haereticis na sint persequendi? (Os hereges devem ser perseguidos?). Não via razão para condenação dos hereges à morte uma vez que considerava que a Bíblia contém passagens difíceis, que constantemente deixam margens para dúvidas. Parafraseou Eclesiastes 3,2 assim: “há um tempo de dúvida e um tempo de fé; há um tempo de conhecimento e um tempo de ignorância”.

Theodore Beza, escolhido por Calvino para elaborar uma resposta, reagiu dizendo que a tolerância religiosa é impossível para aqueles que aceitam a inspiração das Escrituras. Castellio voltou à luta em Contra libellum Calvini. Mais tarde, em seu De arte dubitandi (A arte de duvidar”), antecipou-se a Descartes, colocando a dúvida como elemento fundamental na busca da verdade.

Castellio combateu o fanatismo religioso como nenhum outro de seu tempo. Sua postura lança por terra a tese que justifica os discursos de ódio de Lutero dirigidos aos judeus e a condenação de Serveto à fogueira pelo conselho de Genebra como sendo atitude normal naquele tempo. Com uma voz extraordinariamente dissonante Castellio morreu na miséria aos 48 anos (1563). Calvino, em seu conhecido fanatismo, declarou que a morte prematura de seu opositor fora o resultado de uma sentença divina...



Jones F. Mendonça

quinta-feira, 17 de abril de 2014

RASHI E A TERRA DE ISRAEL

Rashi comentando Gn 1,1: 
Rabi Yitzhaq disse: [Deus] poderia ter começado a Torá apenas com "Este mês será para vós" (Êx 12,02), que é a primeira mitzvah (preceito) ordenado a Israel. Então, qual é a razão para que [Deus] inicie com "No princípio"? 

Ele então explica:
Por causa da [ideia expressa no verso]: "[Deus] declarou ao seu povo o poder das suas obras, a fim de lhe dar a herança das nações" (Sl 111,6). Assim, se as nações do mundo dizem a Israel: “Vocês são ladrões, tendo conquistado as terras das sete nações [por força]”, [Israel] pode lhes dizer: “Toda a terra pertence ao Santo Abençoado; Ele a criou e a deu a quem ele quis. Por Sua vontade Ele deu [aos cananeus sete nações], e por Sua vontade a tomou deles e a deu para nós.”

Convencido?(!)

Mais comentários de Rashi aqui.



Jones F. Mendonça

ALEGORIA EM JUSTINO E NO TALMUDE

Interpretar as Escrituras alegoricamente era a última moda nos primeiros séculos, tanto entre os judeus como entre os primeiros padres. Ex 17,11-12, por exemplo, foi interpretado de maneira bastante curiosa por Justino Mártir em “Diálogo com Trifão”: 
Quando o povo [de Israel] fazia a guerra contra Amalec [...] Moisés orava a Deus com as mãos estendidas. Hur e Aarão as sustentavam o dia todo, para que elas não se abaixassem por causa do cansaço. [...] Moisés orava dessa forma, mas porque ele formava o sinal da cruz, pois era o nome de Jesus que comandava a batalha (Diál. 90,4-5).

A exegese judaica desse mesmo texto, expressa no Talmude, não fica atrás: 
E acontecia que, quando Moisés mantinha as mãos levantadas, Israel prevalecia [...]. Mas, poderiam as mãos de Moisés vencer ou perder a batalha? Na verdade, isto é para mostrar-lhes que, enquanto Israel olhava para o alto e submetia o coração ao seu Pai nos céus, ele prevalecia, mas caso contrário, ele caía (Mishná Rosh Hashaná3,8). 



Jones F. Mendonça

AS RODAS NA VISÃO DE EZEQUIEL

Suporte de bronze com esfinge encontrado em Chipre (1250-1100 a.C.). Lembra a visão de Ezequiel:
Então olhei, e eis quatro rodas junto aos querubins, [...] E cada um tinha quatro rostos: o primeiro rosto era rosto de querubim, o segundo era rosto de homem... (Ez 10,9.14).

Muitas esfinges no Museu Britânico aqui.


Veja no Museu Britânico.


























Jones F. Mendonça

A “LUA DE SANGUE”, O TALMUDE E O FIM DO MUNDO

Na madrugada de anteontem (14/15 abr) boa parte do mundo pôde contemplar a “lua de sangue”, fenômeno que irá se repetir ao longo de dois anos, formando uma tétrade que no atual ciclo coincide com os feriados judaicos da Páscoa e Tabernáculos (2014/15). 

Para alguns, trata-se apenas de mais um belíssimo fenômeno astronômico que pode ocasionalmente coincidir com festas judaicas simplesmente porque essas celebrações geralmente ocorrem em dias de lua cheia, quando também há eclipses (ver: Salmo 81,2-5; Sirácida 43,6). Para outros o aparecimento da lua escarlate sinaliza o fim dos tempos, como sugere este texto do Talmude:    
Nossos rabinos ensinaram: Quando o sol está em eclipse, é um mau presságio para os idólatras; quando a lua está em eclipse, é um mau presságio para Israel [...]. Se a sua face está vermelha como o sangue, a espada está chegando ao mundo (Talmude Soncino, Sucá 29a).

A “Lua de sangue” também aparece nos livros bíblicos do profeta Joel e do Apocalipse. 
“O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia de Yahweh” (Joel 2,31);
“e o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua toda tornou-se como sangue” (Ap 6,12). 

Está com “medinho”?

Leia o trecho do Talmude aqui:



Jones F. Mendonça

sábado, 12 de abril de 2014

HALLELUJAH


ALELUIA

Agora eu soube que havia um acorde secreto
Que David tocava, e que agradava o Senhor.
Mas você não se importa realmente com música, não é?

Funciona assim, o quarto, o quinto.
A menor queda, a maior elevação.
O rei confuso compondo Aleluia.

Aleluia, Aleluia.
Aleluia, Aleluia.

Sua fé era forte, mas você precisava de provas.
Você a viu se banhando no telhado.
A beleza dela e o luar arruinaram você.

Ela te amarrou numa cadeira da cozinha,
Ela destruiu seu trono, e cortou seu cabelo.
E dos seus lábios ela tirou a Aleluia.

Aleluia, Aleluia.
Aleluia, Aleluia.

Você diz que eu tomei o nome em vão.
Eu nem sequer sei o nome.
Mas se o fiz, bem, realmente, o que é isso para você?

Há uma chama de luz em cada palavra.
Não importa qual você ouviu.
O sagrado ou o sofrido Aleluia.

Aleluia, Aleluia.
Aleluia, Aleluia.

Eu fiz o meu melhor, não era muito.
Eu não podia sentir, então eu tentei tocar.
Eu disse a verdade, eu não vim enganar você.

E mesmo que tudo deu errado,
Eu ficarei diante do Senhor da Canção,
Com nada na minha língua senão Aleluia.

Aleluia, Aleluia.
Aleluia, Aleluia.

Aleluia, Aleluia.
Aleluia, Aleluia ...



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 11 de abril de 2014

UM ATRASO DE NASCENÇA...

Gostaria de ter escrito isso, mas é do Manoel de Barros:

Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas
mais que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
é maior do que o mundo.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 9 de abril de 2014

O NOÉ DE GREG RUTH


Mais arte inspirada em Noé, aqui e aqui


Jones F. Mendonça

NOÉ NA SALA ESCURA

O sujeito vai ao cinema ver Noé. Imagina que assistirá a uma homilia cristã. Esquece-se (ou não sabe) que o Noé do Gênesis é personagem de três grandes religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Isso sem falar nas correntes não ortodoxas que sempre caminharam à sombra dessas três grandes religiões, tais como a Cabalah (judaísmo) o gnosticismo (cristianismo) e o sufismo (islamismo). 

Aronofsky foi criativo. Pôs na tela dos cinemas um Noé enriquecido por diversas tradições, especialmente as judaicas. Se você quer pipoca e diversão, emocione-se na sala escura. Mas se você quer apenas o Noé da sua tradição religiosa, volte-se para a Torá, ou para o catecismo, ou para o Corão. 


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 7 de abril de 2014

GNOSE E CABALA NO NOÉ DE DARREN ARONOFSKY

Muita gente estranhou a cena do filme Noé que retrata Adão e Eva em corpos resplandecentes. Vejamos:

Irineu expondo a doutrina dos gnósticos, em “Contra as Heresias”, século II d.C.:

Adão e Eva, no princípio, tinham corpos leves, luminosos, como que espirituais, porque é assim que foram criados... [então] descobriram que estavam nus e que tinham corpos materiais, conheceram que traziam em si a morte e se tornaram pacientes, sabendo que este corpo os envolvia temporariamente (Contra as Heresias, I, 30,9).
Zohar ou Livro do Esplendor, século XIII d.C.:
Quando Adão morava no jardim do Éden, estava coberto por uma veste celestial, que é a veste de luz celestial [...] luz daquela luz, que era usada no jardim do Éden (Zohar, II, 229.b.).
Não parece estranho se pensarmos que o diretor produziu o filme bebendo em fontes pouco ortodoxas. 

Se o diretor quisesse retratar o nascimento de Noé, poderia muito bem ter se inspirado no livro apócrifo de Enoque (século II a.C.): 
seu corpo era branco como a neve e vermelho como uma rosa, os cabelos de sua cabeça eram como a lã e os seus olhos como os raios de sol (I Hen 106,2).
O texto lembra a descrição de Jesus em Ap 1,14. Mas foi escrito quase três séculos antes...



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O NASCIMENTO DE JESUS NUMA CAVERNA: JUSTINO, PROTO-EV TIAGO E ORÍGENES

Neste semestre estou lecionando teologia patrística. Como o Blog também funciona para mim como uma espécie arquivo, irei postando aos poucos alguns textos do período patrístico que considero relevantes para a compreensão do cristianismo ortodoxo e movimentos tidos como heréticos. No post de hoje três registros que situam o nascimento de Jesus numa gruta. Todos os três documentos são do segundo século:

Justino, em “Diálogo com Trifão”:
uma vez que José não encontrou um alojamento naquela aldeia [Belém], tomou como aposento uma determinada caverna que havia por perto; e enquanto eles estavam ali Maria deu à luz ao Cristo e colocou-o numa manjedoura. E foi neste lugar que os Magos que vieram da Arábia o encontraram (Dial., 78).

Orígenes escrevendo sua defesa do cristianismo contra o cético Celso: 
No que diz respeito ao nascimento de Jesus em Belém, [...] para ter a evidência adicional de outras fontes [além dos profetas e dos Evangelhos], que ele saiba [referindo-se a Celso] que em conformidade com a narrativa do Evangelho sobre o seu nascimento, é mostrada em Belém a caverna onde ele nasceu, e a manjedoura na gruta onde ele estava envolto em cueiros. E esta visão é muito conhecida na região. Mesmo entre os inimigos da fé é dito que nesta caverna nasceu Jesus, que é adorado e venerado pelos cristãos (Contra Cels., 1,51).

Proto-evangelho de Tiago (também conhecido como “Nascimento de Maria: revelação de Tiago”): 
José descobriu uma gruta por perto e introduziu Maria. Deixou seu filho com ela, indo ele mesmo à procura de uma parteira hebréia da região de Belém [...]. Quando chegaram à gruta [José e a parteira que ele encontrou], pararam, e eis que uma nuvem luminosa a encobria. [...] De repente, a nuvem retirou-se da gruta e dentro dela brilhou uma luz [...] que começou a dissipar-se até aparecer o menino para tomar os seios de sua mãe (Protev 18.1; 19,2).

É também neste último escrito que Maria é apresentada como virgem antes, durante e depois do parto (o dogma da Imaculada Conceição só foi definido em 1854). Após a parteira anunciar que uma criança havia nascido de uma virgem, a incrédula Salomé, como Tomé, duvida e põe o dedo na “natureza” de Maria. Assim que constata o milagre Salomé tem sua mão afetada por um castigo divino que é curado assim que pega o menino nos braços (Cf. Protev., 20).

Um trecho bem curioso nesse evangelho sugere que o autor acreditava que anjos podem engravidar mulheres humanas (inspirado em Gn 6?).  Mas este é um tema para o próximo post.


Jones F. Mendonça

quarta-feira, 2 de abril de 2014

ACERCA DO CIRCO E DO SEXO ENTRE OS PRIMEIROS PADRES

Você pode ler Lutero em “Obras selecionadas”, mas o “selecionadas” já diz muita coisa. Você pode ler a respeito dos chamados pais apostólicos ou dos apologistas nos livros sobre cristologia, eclesiologia ou teologia fundamental, mas o caráter apologético de tais obras também sugere que se trata de uma seleção. Não quer ler um teólogo com as lentes de outro teólogo? Então arregace as mangas e se debruce sobre as obras originais. Com certeza terá muitas surpresas (com direito a muitas risadas).

Tertuliano condenando a participação dos cristãos nos espetáculos públicos romanos (neste trecho ele condena o teatro):
Pensais ainda que o uso de máscaras seja aprovado por Deus? Pergunto-vos. Se ele proíbe toda a espécie de simulacros, quanto mais não proibirá que se desfigure a sua imagem? Não, não: o autor da verdade não poderia aprovar nada de falso. Se ele condena todas as espécies de hipocrisia, perdoaria a um ator, que imita a sua voz, a sua idade, o seu sexo? Que finge estar apaixonado ou encolerizado? Que chora lágrimas falsas, e emite falsos suspiros? (De spetaculis, 23).

Clemente de Alexandria e a sexualidade do cristão (inspirado no estoicismo): 
O casamento é o desejo da procriação e não a ejaculação desordenada do esperma que, aliás, é contrária tanto à lei quanto à razão (Pédagoge, II, 10).

Em bom latim: "matrimonium autem est filiorum procreationis appetitio, non inordinata seminis excretio, quae est et praeter leges eta ratione aliena".

Os pais da Igreja (em inglês) aqui

Jones F. Mendonça

quarta-feira, 26 de março de 2014

O MONÓLITO DE KURKH E O REI ACABE DE ISRAEL

Monolito de Kurkh, Museu Britânico
Descoberto em 1861 em Kurkh, Turquia, o monólito foi esculpido por volta de 853 a.C. pelos assírios com o propósito de registrar a vitória de Salmaneser III (858-824) sobre uma liga de 12 reis na região de Qarqar. De acordo com a inscrição os principais líderes dessa liga foram Irhuleni, de Hamate; Hadadezer, de Harã e Acabe, de Israel (citado em 1Rs 16-22). Ao lado da Estela moabita (ou estela de Mesha, 850 a.C.) a descoberta seria uma importante evidência da influência do reino de Israel (do Norte, sob a dinastia dos omridas) na região. 

Na monólito de Kurkh o nome de Acabe aparece grafado como “A-ha-ab-bu KURSir-‘i-la-a-a”, e tem sido geralmente traduzido como “Acabe de Israel”. Mas a identificação de A-ha-ab-bu com Acabe esbarra em alguns problemas. Um deles é que a Bíblia hebraica fala de uma guerra entre Acab e o rei Ben-Hadade (1Rs 20 e 22).
Ora, Ben-Hadade, rei da Síria, ajuntou todo o seu exército; e havia com ele trinta e dois reis, e cavalos e carros. Então subiu, cercou a Samaria, e pelejou contra ela (1Rs 20,1).

Ora, é extremamente improvável que o rei da Damasco tenha empreendido ações bélicas contra um aliado imediatamente após a batalha de Qarqar. Ou A-ha-ab-bu não é Acabe ou a batalha descrita em 1Rs 20 e 22 foi registrada de forma anacrônica (é o que pensa Herbert Donner em “História de Israel e dos povos vizinhos”, p. 305). O silêncio da Bíblia quanto a essa batalha e a incerteza quanto à correta identificação de Sir-‘i-la-a-a com Israel (Israel ou Jezreel?) também enfraquecem a teoria de que a inscrição contenha uma referência a Acabe.  A questão permanece aberta.

Apesar da coalizão entre os reis do corredor Siro-palestino a Assíria avançou até a Cicília, colocando Tiro e Sidon sob seu controle. Após um declínio de poder iniciado em 783 a.C., a Assíria retomou seu vigor com Teglat-Falasar III (745-727 a.C.) que marchou através da Síria e da Palestina chegando até Gaza, na costa do Mediterrâneo. Fracassada a tentativa de impedir o avanço assírio (ver: GuerraSiro-efraimita), Samaria sucumbiu diante das tropas de Salmanasar V (727-722). A população da capital de Israel foi deportada para várias partes do império com Sargão II (722-705), um usurpador assírio que dominou a Babilônia e estendeu suas campanhas até a fronteira com o Egito.



Jones F. Mendonça

sábado, 15 de março de 2014

GITÂ, DE RAUL SEIXAS E O BHAGAVAD-GÎTÂ: NEM DEUS E NEM DIABO

Há quem interprete a música Gitâ, de Raul Seixas, como sendo uma espécie de poema dito pelo próprio Satã. Outros, no entanto, pensam que Raul está se colocando como o próprio Deus. A composição seria uma espécie deboche dirigido aos cristãos.  Mania de perseguição...

Na verdade a canção recebeu inspiração do Bhagavad-Gîtâ (bhagavan - Deus; gita - canção), belíssimo poema hindu que faz parte da epopeia Mahâbhârata. O poema ganhou sua forma atual entre os séculos V e I a.C. e tem como pano de fundo uma batalha entre os membros do clã Kula. Esse dramático cenário é apesentado num diálogo entre Krishna (divindade hindu) e Arjuna (guerreiro perturbado por ter que lutar com seus parentes). O narrador é Sanjaya.

Tanto no Bhagavad-Gîtâ como na letra da música de Raul Seixas aparece a ideia de que todas as coisas existem ou surgem na divindade, mas o divino, não obstante, transcende todas as coisas (metafísica panenteísta).

Seguem alguns trechos do Bhagavad-Gîtâ (em azul) em paralelo com a música de Raul (em vermelho):

16. Eu sou a oblação, o sacrifício, a oferenda aos antepassados, a erva bendita, o hino sagrado, a manteiga purificada, o fogo e também a vítima consumida em holocausto.

Eu sou o seu sacrifício
A placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição

17. Sou pai, mãe, sustentador, avô deste Universo. Sou o objeto do conhecimento, o purificador, a sílaba OM e também o Rik, o Sâma e o Yajur.

Mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio

19. Eu dou o calor, retenho e envio a chuva, sou a imortalidade e a morte, sou o ser e o não-ser, Arjuna.

Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada

32.Sou princípio, meio e fim de todas as coisas criadas, Arjuna; entre as ciências sou a ciência do espírito supremo e sou o argumento Vâda entre os que discutem;

O início, o fim e o meio
Eu sou o início
O fim e o meio
Eu sou o início
O fim e o meio

33.Sou a vogal A entre as letras; o composto copulativo entre as palavras compostas. Sou o tempo infinito, o mestre ordenador, cujas faces estão em toda parte.

Das telhas eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra A tem meu nome
Dos sonhos eu sou o amor


Jones F. Mendonça