quinta-feira, 29 de junho de 2017

LUTERO: A IMPRENSA COMO SERVA DA RELIGIÃO

O primeiro escritor a conduzir com êxito um movimento intelectual mediante o recurso à imprensa foi Lutero (bem, pelo menos no chamado “mundo ocidental”).

As famosas 95 teses (1517) estavam disponíveis em toda a extensão do sacro império romano alemão em duas semanas.

A primeira edição de “À nobreza cristã” (1520), com quatro mil exemplares, esgotou-se em uma semana.

Lutero digeriu manuais de oratória do período clássico (como De orare, de Cícero). Surfou na onda do humanismo sem jamais mergulhar em suas águas. Eis um exemplo:

“Pois, é melhor que se arruíne a literatura do que a religião, se a literatura não quiser se colocar a serviço da religião” (Carta de Lutero a Nicolau von Amsdorf, 1534).



Jones F. Mendonça

terça-feira, 27 de junho de 2017

TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO

São evidentes as relações entre o substantivo e o verbo em nosso idioma: O verbo “comer”, por exemplo, está para o substantivo “comida”, assim como o verbo “escovar” para o substantivo “escova”. Em diversos idiomas a coisa funciona assim.

Com o hebraico bíblico não é diferente. Mas algumas dessas relações causam certa estranheza. Um exemplo: o substantivo “vestido” (= “pano para cobrir”) e o verbo “falsear” vêm de uma mesma raiz (BGD). “Vestido” é grafado como BeGeD e “falsear” como BaGaD. Mas que ligação poderia haver entre as duas palavras?

Uma boa pista aparece em Jr 12,1: “Por que prosperam tranquilamente todas as VESTES (beged) DE FALSIDADE?” (bagad).

A relação parece ser a seguinte:

- O verbo BaGaD indica uma “ação de cobrir com tecido” (ou de ocultar, e, por conseguinte, de falsear, enganar, etc.).
- O substantivo BeGeD indica “aquilo que serve para cobrir” (ou simplesmente, “tecido”, “veste”, “roupa”, etc.).

A questão foi levantada ontem, em salada de aula pelo Lucas Bernardes, enquanto discutíamos o que seriam as “vestes sujas” do sacerdote Josué em Zc 3,3. O dicionário Strong traduz - em sua primeira opção - BeGeD como “engano” e não como “vestes”. Caso seguíssemos o conselho do Strong, o texto seria traduzido assim: “Josué estava vestido de ENGANOS SUJOS”!

Moral da história: traduzir textos, sobretudo textos antigos, jamais poder ser uma atividade mecânica. É preciso compreender a cabeça, o mundo no qual estava inserido o escritor do texto.



Jones F. Mendonça

REFORMA, POLÍTICA E PODER

Talvez seja algo decepcionante para você, mas ninguém sabe ao certo se Lutero afixou mesmo suas 95 teses na porta da igreja de Wittemberg. E mais: As teses foram escritas em latim, idioma pouco conhecido da maior parte dos alemães do século XVI. São românticas as imagens mostrando um Lutero irado pregando teses incendiárias na porta da igreja de Wittemberg diante de um público inflamado.

Certo mesmo é que as teses foram enviadas a Roma e acabaram nas mãos do teólogo papal Silvestre Mazzolini. Mazzolini, que era dominicano, viu as teses como um ataque à teologia tomista-escolática, tão querida dos dominicanos e desprezada por agostinianos como Lutero. Não sabe o que é uma teologia tomista-escolástica?

Os dominicanos escolásticos acreditavam ser possível expor os dogmas de fé - como o “mistério da trindade” - usando a lógica aristotélica. Lutero detestava isso. Em sua tese 49, dirigida aos escolásticos (escritas ANTES das famosas 95 teses), o monge agostiniano dá as razões de seu descontentamento: 
Se uma fórmula silogística [amplamente empregada pelos escolásticos] subsistisse em questões divinas, o artigo sobre a Trindade seria conhecido, em vez de ser crido.
Trocando em miúdos: o estopim da Reforma está na disputa entre dominicanos e agostinianos. Os príncipes alemães, ávidos pela tomada das terras da igreja, aproveitaram-se da situação. E só então a Reforma de fato aconteceu.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 23 de junho de 2017

PROTESTANTISMO E PROTESTO

Dizer que o termo “protestante” nasceu a partir das críticas de Lutero à venda de indulgências e outros abusos da igreja é um equívoco. Na verdade o termo surgiu como reação de alguns príncipes alemães contra a dieta imperial de Espira, que proibia as práticas luteranas. E isso só aconteceu em 1529, doze anos depois das 95 teses de Lutero!


Jones F. Mendonça

terça-feira, 20 de junho de 2017

MEIA JORNADA

Bobinho sofria de angústia da alma. Decidiu buscar ajuda no velho sábio da montanha. Separou botas, cordas, capacete, mochila, mosquetões e iniciou a escalada. Era inverno. Fazia muito frio. O vento deslizava assoviando entre os flocos de neve.

Não foi uma subida fácil: pouco oxigênio, avalanches constantes, dedos congelados, fadiga intensa. Venceu o desânimo. Entre uma parada e outra observava o alvo infinito. Aproveitava para refletir sobre seus medos mais profundos. Vez por outra seu olho apertava uma lágrima.

Finalmente chegou ao topo. Uma pequena placa trazia o seguinte recado: “Rejeitei a ascese. Abandonei a clausura. Mudei-me para os trópicos”. Mas Bobinho não sabia ler. Ficou sentado esperando o velho sábio retornar com um remédio pronto para a sua dor.

Tivesse escalado outras montanhas. Tivesse enfrentado com mais força seus medos mais profundos. Mas deteve-se no meio do caminho. Morreu de frio na solidão das alturas.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 14 de junho de 2017

NÃO É SAUDADE, É DESEJO!

Gn 3,16, na Almeida Revista e Atualizada (ARA), é traduzido tal como consta abaixo:

E à mulher disse... o teu DESEJO (teshuqah) será para o teu marido.

Bem, se “teshuqah” é “desejo”, então por que em Cantares 7,10, em meio a declarações quentíssimas, “teshuqah” aparece traduzida - na mesma Almeida - deste jeito:

Eu sou do meu amado, e ele tem SAUDADES (teshuqah) de mim.

Assim não dá...



Jones F. Mendonça

ZOROASTRISMO COM ALMUT HINTZE

Antes de ser islamizado, no século VII d.C., o Irã professava o zoroastrismo, religião caracterizada pelo dualismo ético, cósmico e teogônico. 

Caso você tenha interesse pela religião dos persas e o eco de suas crenças na tradição judaico-cristã, sugiro uma visita à página de Almut Hintze no Academia.edu. Destaque para: “O Salvador e o Dragão na Escatologia Iraniana e judaico-cristã”

Hintze é Professora de Zoroastrismo na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.  


Coisa fina. Acesse aqui


Jones F. Mendonça

VENTRES QUE GEMEM

O capítulo 2 de Lamentações possui 22 versos, cada um iniciando com uma consoante do alfabeto hebraico: álef, bet, guímel, dálet... Beleza que só pode ser contemplada no idioma original.

Mas a qualidade do lamento bíblico tem outros tons. A dor pela destruição de Jerusalém, no século VI a.C., é expressa nos seguintes termos (tradução bem literal):

“De lágrimas consomem-se meus olhos, 
de tremor minhas entranhas
por terra derrama-se meu fígado” (Lm 2,11).

É nas entranhas, pelo uso de expressões literalmente viscerais, que a dor, a excitação, a angústia, a ansiedade encontram lugar na poesia hebraica.

A amada de Cantares, excitada pela presença do amado à porta, diz extasiada:

“minhas entranhas (ou ventre) gemeram por amor dele” (Ct 5,4).

Ventre que geme na força desejo.



Jones F. Mendonça

sexta-feira, 9 de junho de 2017

AS DUAS FACES DE Z(S)EDECIAS

A relação entre o profeta Jeremias e o rei Zedequias, nos capítulos 37-40 do livro do profeta Jeremias (versão hebraica), foi relatada de forma diferente na versão grega das Escrituras (chamada de Septuaginta ou simplesmente LXX).

Na versão grega o nome do rei é grafado como Sedecias e a história é contada nos capítulos 44-47. Outra diferença é que na LXX Sedecias é retratado com uma face mais cruel e opositora a Jeremias. Seu nome raramente aparece no texto.

Leia aqui o ensaio completo, por Shelley L. Birdsong, no The Bible and Interpretation.



Jones F. Mendonça

quarta-feira, 7 de junho de 2017

ZÉ BOBINHO, LUTERO E O PAPA

Zé Bobinho, empolgado com os 500 anos da Reforma e desejando polemizar contra os católicos, dispara a seguinte tese de Lutero contra as indulgências: 
Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que as dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro a Basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres? (Tese 86).
Bobinho imagina, em sua leitura apressada, que Lutero está criticando o papa. Mas é preciso ler a tese em seu contexto.

A Tese 81 explica que perguntas como estas, “perspicazes”, com teor “calunioso” e que “ofendem a dignidade do papa”, são feitas por leigos, enganados pelos gananciosos e mal intencionados pregadores de indulgências.

Enfim, Lutero está dizendo que, por culpa dos pregadores de indulgências, o papa está sendo caluniado com acusações falsas, tais como aquela que ele relata na tese 86.

Críticas ao papa só começam após da reação negativa da cúria romana às suas teses. Leia as 95 teses de Lutero aqui (a partir da pg. 22). 



Jones F. Mendonça

terça-feira, 6 de junho de 2017

DAS INIMIZADES INVENTADAS

1. Numa carta escrita no século XI os rabinos de Jerusalém lembram a “misericórdia que Deus tivera com seu povo” quando permitiu que o “Reino de Ismael” [árabes muçulmanos] conquistasse a Palestina.

2. Para a maioria dos judeus da era medieval era mais aceitável a conversão forçada ao islamismo que ao cristianismo.

3. Maimônides, um dos mais célebres sábios judeus, escreveu boa parte de suas obras - como o famoso “Guia dos perplexos” – em árabe.

E você caindo nesse papo de que judeus e árabes muçulmanos são inimigos “desde a fundação do mundo”.



Jones F. Mendonça