Moisés com as tábuas da Lei - Guido Reni (1624). Até o he- braico nas tábuas é anacrônico. |
Desde o século XVII, com o advento da crítica bíblica, alguns eruditos perceberam que o Pentateuco não pode ter sido obra de um único autor (na verdade, tal desconfiança é bem mais antiga). Até mesmo leitores menos atentos estranham o relato da morte de Moisés, no final do Deuteronômio. Teria o patriarca escrito o relato de sua própria morte antes de ter expirado no monte Nebo na margem oriental do Jordão? Pouco crível, não acha? Mas não é só isso.
O
capítulo 11 de Gênesis narra a saída de Abrão de “Ur dos Caldeus”. Há um
anacronismo aí. Ur, na segunda metade do segundo milênio era, talvez, “Ur dos
sumérios” e não “Ur dos caldeus”. A expressão “Ur dos caldeus” pressupõe a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja,
babilônicos, que só ocorreu no final do século VII a.C. Tal anacronismo mostra
que o autor do versículo deve ser situado numa época bem mais recente que a
vivida por Moisés. É claro que a presença do anacronismo não constitui prova
contra a existência de Moisés ou a uma possível contribuição sua para a obra.
Apenas mostra que esse conjunto de livros conheceu um processo redacional.
Sempre será possível dizer (mas não provar) que um personagem chamado Moisés
foi o autor de um substrato que deu origem ao atual Pentateuco.
Outro
anacronismo aparece no capítulo 12 do mesmo livro. O relato diz que após chegar
a Canaã Abraão edificou um altar em Siquém e que “nesse tempo os cananeus estavam na terra” (v.6). O texto é
contado na perspectiva que alguém que já vivia na terra, obviamente após o
assentamento do povo na região. O mesmo tipo de anacronismo ocorre no capítulo
21, ainda no livro de Gênesis: “E morou Abraão na terra dos filisteus por longo tempo”. É bem atestado que
os filisteus chegaram à costa de Canaã por volta de 1200 a.C. Ora, se o
patriarca viveu na metade do segundo milênio, como pode ter morado na
“terra dos filisteus” se eles ainda não haviam migrado para lá? Mas uma vez a
perspectiva é a de que já está na terra. Esse redator, lógico, não pode ter
sido Moisés.
Além
dos anacronismos há ainda outros detalhes que chamam a atenção de um leitor
mais cuidadoso. No Pentateuco o nome divino aparece ora como Yahweh, ora como
Yahweh Elohim. O monte no qual Moisés recebeu a lei ora aparece como Sinai, ora
como Horebe. Jetro, sogro de Moisés, também ganha nomes diferentes ao longo da
narrativa. Ainda mais embaraçoso é notar que um mesmo tipo de situação se
repete diversas vezes: Abraão mente para o faraó a respeito da condição Sara,
sua mulher, apresentada como sua irmã (Gn 12,14-17). O mesmo Abraão mente a
respeito da condição de Sara, agora com Abimeleque, rei de Gerara (Gn 20,1-3).
Isaque, filho de Abraão, também vai a Gerara e faz o mesmo em relação à Rebeca,
sua mulher (Gn 26,1-7). Coincidência? Sim, é possível. Mas entre o possível e o
provável há um grande abismo. Penso que tantos problemas requerem uma solução
mais plausível.
Um
tipo de duplicação particularmente interessante ocorre em Gn 6 e 7. Acho que é
o melhor exemplo que posso apresentar a fim de que o leitor perceba que a obra
não pode ser atribuída a um só autor. Em Gn 6,19 Yahweh ordena que Noé coloque
na arca “dois animais de cada
espécie, um macho e uma fêmea”. Em 7,2, “de todos os animais puros, sete pares,
o macho e sua fêmea e apenas um
casal dos animais que não são puros”.
Como se pode ver, o segundo relato (que conflita com o primeiro) reflete a
preocupação do redator em distinguir animais puros dos impuros. Indício de uma
intervenção sacerdotal? É o que parece.
Desde
Julius Wellhausen os pesquisadores
têm buscado apresentar hipóteses que sejam capazes de explicar como o
Pentateuco foi formado. Em linhas gerais as hipóteses podem ser reduzidas a
três: um escrito básico (relato que
foi crescendo ao longo dos séculos por meio de reelaborações e acréscimos), fontes (documentos independentes que
foram costurados em determinadas ocasiões até formarem um único bloco) e círculos narrativos (relatos orais com
sua própria história de crescimento, que mais tarde ganharam a forma escrita e foram
unidos por um redator final). Nenhuma dessas hipóteses é capaz de resolver
satisfatoriamente todos os problemas envolvidos na formação do Pentateuco. O
processo de formação desse conjunto de livros parece ter sido bem mais complexo
do que imaginava Wellhausen.
Mas
a ausência de um modelo que explique satisfatoriamente como se deu a formação
do Pentateuco não implica no reconhecimento da autoria mosaica (já vi muita
gente fazendo isso, acredite), apenas revelam o quão difícil é reconstruir a história de composição do texto dos primeiros cinco livros da Bíblia. Para finalizar, fica como sugestão de leitura a obra: "Introdução ao Pentateuco", de Louis Jean Ska (Loyola, 2003, 304 páginas).
Jones F. Mendonça
Um detalhe curioso são os "pedaços soltos" na narrativa. Por exemplo, quem era Melquizedeque, que aparece com importância no texto, sem estar vinculado a nenhuma genealogia? Por que Caim deixou descendentes como Jubal, Jabal e Tubalcaim que são citados como ancestrais de certas profissões, se estes seriam mortos no Dilúvio? Será que em alguma versão a linhagem de Caim sobreviveu?
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