sexta-feira, 23 de agosto de 2024

LUTERO, OS "FILHOS DE DEUS", OS INCUBUS E OS SUCUBUS


1. A narrativa bíblica presente no capítulo seis do Gênesis – a união dos “filhos de Deus” às “filhas dos homens” – recebeu ao longo da história três explicações básicas: 1) os “Filhos de Deus” são os descendentes de Adão pelo tronco de Seth (benditos); as “Filhas dos homens” são descendentes Adão pelo tronco de Caim (malditas); 2) Os “Filhos de Deus” são seres angelicais; as “filhas dos homens” são humanas; 3) Os “Filhos de Deus” são homens poderosos da antiguidade, precursores das uniões poligâmicas com as “filhas dos homens”, mulheres dotadas de grande beleza.

2. A proposta nº 1 aparece nas Preleções sobre o Gênesis, produzidas por Martinho Lutero entre 1535-1545 (Commentary on Genesis, Vol. 2: Luther on Sin and the Flood). O monge agostiniano entende que o texto aponta para duas violações: 1) Os descendentes de Adão gerados por Seth (“Filhos de Deus”) desejaram as descendentes de Adão geradas de Caim, as “cainitas” (“Filhas dos homens”); 2) O texto revela um ímpeto maligno: desejar tantas mulheres quantas pudessem tomar (poligamia). Lutero faz essa interpretação inspirado na opinião de Nicolau de Lyra, teólogo que viveu entre os séculos XIII e XIV (1270-1349).

3. O reformador rejeita a interpretação judaica que vê os “Filhos de Deus” (bney ha-elohim) como sendo seres angelicais expulsos da corte celeste e convertidos em “demônios”. Para o reformador, tal interpretação não passa de “balbucios judaicos”. A razão: o reformador acredita – reproduzindo crendices medievais muito populares – que demônios podem sim assumir forma humana e até mesmo seduzir e se relacionar sexualmente com homens e mulheres, mas nega que esse tipo de relação seja capaz de gerar filhos tal como indicado no capítulo seis do Gênesis: “quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos” (Gn 6,4).

4. Seguem trechos das Preleções sobre o Gênesis: “Mas quanto aos demônios lascivos e prostitutas (íncubos e súcubos), eu não nego — não, eu acredito! — que um demônio pode ser um lascivo ou uma prostituta, pois ouvi homens citarem suas próprias experiências. [...] Quando o diabo está na cama, um jovem pode pensar que tem uma garota com ele, e uma garota que tem um jovem com ela; mas que qualquer coisa possa nascer de tal concubinato, eu não acredito. Muitas feiticeiras foram, em um momento ou outro, submetidas à morte na fogueira por conta de suas relações com demônios”.

5. Assim, embora reconheça ser possível a relação sexual entre homens/mulheres e demônios masculinos/femininos (íncubos e súcubos), Lutero rejeita veementemente que o capítulo seis do Gênesis trate desse tipo de relação. Para ele, como já foi dito, o texto condena 1) a união entre os descendentes de Seth e de Caim; 2) as uniões poligâmicas. Problemas: 1) O Antigo Testamento jamais condena as uniões poligâmicas; 2) A expressão “bney ha-elohim”, traduzida por “filhos de Deus” sempre indica membros da corte celeste, como Jó 1,6: “No dia em que os Filhos de Deus (bney ha-elohim) vieram se apresentar a Yahweh…”.



Jones F. Mendonça

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