Em linhas gerais o Antigo Testamento apresenta um Deus antropomorfo. Ele assovia (sharaq - Is 7,18), dorme (yashen - Sl 44,23), desperta como um valente excitado pelo vinho (yaqatz - Sl 77,65), passeia pelo jardim do Éden (halakh - Gn 3,8), é guerreiro valente (’iysh milhamah - Ex 15,3), cavalga sobre um querubim (vayyirkav al-keruv - Sl 18,11), sente ciúmes (qanna’ – Ex 20,5) e até se arrepende (naham - Gn 6,6). O deus babilônico Marduk também era descrito assim:
Eu glorifico
ao Senhor muito sábio, o deus razoável, Marduk,
que se
irrita de noite, mas se acalma pela manhã...
Como a
tormenta de um ciclone, envolve tudo com sua cólera,
depois seu
fôlego se faz benévolo, como o zéfiro da manhã.
Inicialmente
sua ira é irresistível, sua raiva, catastrófica,
mas depois
seu coração se amansa, sua alma se recupera.
Os céus
não suportam o choque de seus punhos,
mas a
seguir sua mão se apazigua e socorre o desesperado...
É tomado
pela cólera, e os sepulcros se abrem,
mas quando
perdoa, restabelece as vítimas da carnificina...[1].
Foi-se
o exílio, vieram os persas e depois os macedônios com a difusão da cultura
grega, que mesclada com as culturas locais deu origem helenismo. Não tardou
muito até que os judeus (inicialmente por Fílon), e depois os cristãos, vestissem
Yahweh com os trajes do Olimpo. Deus tornou-se sumo bem, imutável, sem forma e
destituído de qualquer sentimento. Tiago, já com sua alma totalmente helenizada
(ou platonizada), declara:
Toda boa
dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do pai das luzes, em quem não
há mudança, nem sombra de variação (Tg 1,17).
Na
patrística e na Idade Média as doutrinas cristãs foram elaboradas com os
requintes da filosofia grega. Filósofos como Platão e Aristóteles teriam sido
cristãos antes mesmo de Cristo ter posto seus pés na terra. O trem da teologia
cristã seguia o seu curso, ora nos trilhos de Platão, ora nos trilhos de
Aristóteles. E assim foi...
Em
setembro de 1517 Lutero rompeu com Aristóteles ao publicar suas 97 teses contra
a escolástica (um mês antes das suas famosas 95 teses contra as indulgências).
Platão, sob a ótica de Agostinho, voltava ao cento do cenário teológico. Coube
a Calvino sistematizar a nova teologia que incendiava a Europa. Ao defender a soberania
absoluta de Deus ele precisou encontrar uma explicação para as passagens
veterotestamentárias que apresentavam um Yahweh antropomorfo como Marduk,
Quemós, Mot, Resheph, etc. Nas suas Institutas o teólogo francês argumentou que
quando Deus é apresentado com características humanas devemos entender que tais
descrições não expressam verdadeiramente como Deus é em si, mas como nós o
sentimos (Livro I, XVII, 13). Em suma, são elementos da natureza humana
projetados em Deus.
Caso
Calvino tivesse levado adiante suas idéias a ponto de confessar que no Novo
Testamento o mesmo fenômeno ocorre, teria antecipado Feuerbach em cerca de três
séculos e confessado que teologia é antropologia: o homem deposita em Deus o
que lhe pertence. No mundo helenizado
Deus não é projeção da natureza humana, mas dos seus anseios mais profundos:
eternidade, verdade, bondade, imutabilidade, etc. Eis o erro de Calvino: achar
que o conceito de Deus da Nova Aliança é mais puro, mais belo, mais verdadeiro
que o da Antiga Aliança.
Admitir
que o Deus que os homens veneram e anunciam é projeção humana não torna
inválida a religião nem prova que Deus não existe, mas abre espaço para o
diálogo, para a tolerância, para a compreensão do outro. É preciso admitir: o discurso sobre
Deus sempre será, no fundo, um discurso sobre o homem.
Nota:
[1]
Fiz uma tradução livre do espanhol. Lambert, 1960,
342 s. apud BOTTÉRO, Jean. Lá religión más antigua:
Mesopotâmia,
2001, p. 135.
Jones F. Mendonça