Questões
de ordem moral pipocam todos os dias na mídia evangélica: “Vereador quer
impedir que noivas se casem sem calcinha”, “Evangélicos lançam filmes e
produtos sobre sexo”, “Pastores convocam evangélicos a boicotarem o Big Brother”.
Lembrei-me de um texto sobre a moral que postei aqui no Blog em agosto de 2009.
Eis o texto*:
Numa
sala de consultório estão apenas um homem e uma mulher. Ele, um terapeuta. Ela,
uma policial com sérios problemas ligados a área sexual. O consultório é
agradável, com poltronas macias e aconchegantes. Quadros coloridos e um
tapete felpudo dão um ar de informalidade. A policial, cheia de expectativa,
imagina que o terapeuta terá ótimas respostas para o seu problema. Periodicamente
ela vai ao consultório e lhe relata seus segredos mais profundos e íntimos. O
terapeuta, muito atento, ouve com paciência todas as suas queixas e
inquietações. O tempo passa e algo muito natural acontece. A paciente imagina
que o terapeuta é o homem da sua vida. Ele é simpático, a ouve com paciência e
ainda lhe transmite tranqüilidade e segurança. Os entendidos no assunto dizem
que tal fenômeno tem nome, chama-se “transferência”.
Com
o tempo a relação entre o terapeuta e a policial foi ganhando novos
desdobramentos, pois o terapeuta também se sentiu profundamente atraído pela
paciente. Isso o incomodou bastante, a ponto de pedir conselhos a uma médica de
sua confiança. Ela lhe advertiu que a ética médica não permite esse tipo de
relacionamento. Existem normas, regras a serem seguidas. O terapeuta ficou
inconsolado e até pensou em deixar a profissão. O desejo pela paciente o
consumia e um dilema passou a perturbá-lo dia e noite. De um lado os
homens-encarregados-de-criar-as-normas, que lhe diziam: “Enquanto estiver no
consultório você é apenas um terapeuta. Aprenda a se comportar como tal!”. Do
outro lado seu coração que gritava: “tal qual um turbilhão é o amor, não há
garras que o possam conter”. De um lado a norma. Do outro a subversão. Temos aí
um sujeito tripartido. Ele é homem, imoral (já que tem forte tendência a romper
com a moralidade vigente) e terapeuta.
Alguns
amigos da paciente, que aprenderam direitinho as regras criadas pelos
homens-encarregados-de-criar-as-normas, lhe disseram: “será que você não está
confundindo o profissional-do-consultório com o homem-do-consultório?”. A
mulher-policial-paciente ficou muito confusa, sem saber exatamente o que sentia
e tampouco quem era. Como se não bastassem seus problemas de ordem sexual.
Temos aí uma cidadã tripartida. Ela é mulher, moralista (já que tem forte
tendência a não romper com a moralidade vigente) e paciente.
Há
quem acredite na existência de uma moralidade absoluta, como se houvesse em
algum lugar, num cofre distante, um modelo ideal de moralidade. Esse modelo
ficaria lá trancado e sempre que precisássemos de uma certeza, o abriríamos e
todas as respostas nos seriam dadas. Mas na verdade esse padrão normativo é
criado pelos homens-encarregados-de-criar-as-normas. É um ofício importante,
afinal o que seria de nós sem as regras? Até para construir este texto preciso
de regras: regras ortográficas, de sintaxe, de concordância, etc. Não fazendo
uso delas eu certamente não me faria compreender. Na sociedade elas funcionam
como um freio. Na sua ausência correríamos o risco de produzir um mundo
caótico. Mas será que essas normas devem ser seguidas de forma cega e inflexível?
Ter
regras universais, eternas e inflexíveis torna mais fácil a vida de quem não se
acha capaz de suportar as conseqüências de uma decisão errada. Lançar a
responsabilidade pessoal sobre as normas pode trazer muito conforto para tais
indivíduos. Por outro lado, a autonomia demanda responsabilidade. Romper com a
norma padrão tem um preço e são poucos os que têm coragem de arcar com as
conseqüências.
Voltemos
ao caso do homem-bandido-terapeuta e da mulher-policial-paciente. A mulher
tripartida quer carinho, quer ordem e quer cura para os seus problemas
emocionais. O terapeuta tripartido quer paixão, uma aventura bandida e cura
para a paciente. Todas essas divisões tornam o problema muito complexo. Como analisá-lo
sob a ótica de uma regra cega, incapaz de lidar com sistemas complexos?
No
final do episódio a mulher pesou na balança seus valores e entendeu que a ordem
estabelecida era mais importante. Ela armou uma cilada e denunciou o terapeuta
logo após ter sido assediada por ele. Os dois acabaram presos. Ele pelos
moralistas. Ela, por sua própria moralidade.
*Esse
texto é uma análise do episódio “Roma Isenta” do seriado “Picket Fences”
transmitido pela CBS americana na década de 90.
Jones
F. Mendonça
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