sexta-feira, 24 de junho de 2011

APONTAMENTOS DE HERMENÊUTICA: A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA NA ERA MEDIEVAL

São Gregório (1797), de Francis-
co de Goya e Lucientes. Museu
Romântico de Madrid.
Anterior (apontamentos de hermenêutica: Santo Agostinho e São Jerônimo).

Passando por Agostinho e Jerônimo e a entrando definitivamente na Idade Média, a primeira grande figura que se destacou como intérprete da Bíblia foi Gregório Magno (540-604), considerado último dos grandes Pais Latinos e o primeiro Papa medieval[1].  Eleito em 590, o Papa Gregório Magno (ou Gregório, o Grande) acreditava que o enigma e a alegoria seriam formas que Deus toma para mostrar o homem a verdade[2]. Apesar disso, buscou enfatizar a necessidade do equilíbrio entre o método literal e alegórico:
se entendemos tudo ao pé da letra, perdemos o critério. Se cremos que tudo é alegoria espiritual, somos igualmente presas de indiscrição tola. Mas ler as páginas dos santos pregadores, e algumas vezes na história em conformidade com o sentido literal e outras vezes investigar o sentido espiritual da letra[3].
Quando alegorizava, Gregório era tão criativo quanto Orígenes. No seu comentário ao livro de Jó, por exemplo, os três amigos são os hereges, os sete filhos de Jó são os 12 apóstolos, as 7.000 ovelhas são pensamentos inocentes, os 3000 camelos são as concepções vãs, as 500 juntas de bois são virtudes e os 500 jumentos são tendências lascivas[4].

A interpretação alegórica foi uma tendência predominante na Idade Média, com raras exceções. É possível citar pelo menos três nomes que contribuíram para o abandono do sentido espiritual das Escrituras:

Rashi[5] (1040-1105) - principal representante do movimento exegético medieval francês, exerceu grande influência sobre as interpretações judaica e cristã. Apesar de não negar que o texto bíblico pode possuir vários significados, deu ênfase à interpretação literal (peshat) do texto[6].

Tomás de Aquino (1225-1274) - célebre teólogo dominicano, também privilegiou o sentido literal das Escrituras. Mas da mesma forma que Rashi, não rompeu definitivamente com a tradição. Na sua magistral “Suma Teológica” afirmou que: “A primeira significação, segundo a qual as palavras designam certas coisas, corresponde ao primeiro sentido, que é o sentido histórico ou literal”[7]. Mas a seguir comenta: “A significação pela qual as coisas significadas pelas palavras designam ainda outras coisas é o chamado sentido espiritual [que] por sua vez [...] se divide em três sentidos diferentes [...] sentido alegórico, [...] sentido moral [...] sentido anagógico”[8].

Nicolau de Lira (1279-1340) – Rejeitou a Vulgata e voltou-se para os textos em hebraico. Ainda que não abandonado os quatro sentidos das Escrituras, deu decidida preferência ao sentido literal, insistindo que os outros sentidos deveriam estar fundamentados no literal. Influenciado por Rashi e Tomás de Aquino, acabou influenciado Lutero, que fez amplo uso dos seus comentários[9].  O reflexo do pensamento de Nicolau de Lira em Lutero podem ser resumidos numa frase muito conhecida na época que dizia: “Si lyra non lyrasset, Lutherus non saltasset”[10] (Não tivesse Lira tocado sua lira, Lutero não teria dançado).

Notas:
[1] SCHÜLER, Arnaldo. Dicionário enciclopédico de teologia, p. 313.
[2] LÓPEZ-CASANOVA, Arcádio. Quaderns de Filologia: estudis literalis, vol. V, p. 224.
[3] S. GREGORIO MAGNO, Homilias sobre Ezequiel, Libro I, hom. 3,4, em PL 76, 807; ed. P. GALLARDO – A. MELQUÍADES, o. c. p. 262 apud LEDESMA, Juan Pablo. El “De itinere deserti” de San Idelfonso de Toledo, p. 156.
[4]Paul Lee Tan, The interpretaion of Prophecy, 37-38 apud GARLAND, Anthony Charles, A testimony of Jesus Christ, volume I, p. 60.
[5]Acrônimo de Rabbi Shlomo Ben Itzakh.
[6] GOÑI, Carlos. Introducción general a la Bíblia, p. 462.
[7]AQUINO, Tomás. Suma Teológica, Prima Pars, qu. I, art. 10, p. 154.
[8]Id. ibid.
[9]D’AUBIGNÈ, Jean Henri Marle. History of the reformation in the sixteenth century, p. 66. 
[10]COCHRAN, John. Catalogue of manuscripts, in different languages on theology, english and... Harvard College Library, 1829, p. 136. 



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