segunda-feira, 24 de maio de 2010

O LIVRO DE CRÔNICAS: UMA TEOLOGIA PÓS-EXÍLICA

Por Jones Mendonça

1. Introdução
Na Bíblia hebraica o livro de Crônicas recebe o nome de “sepher dibrê hayyamîm” (livro dos fatos cotidianos, anais). Jerônimo, parafraseando o termo hebraico escolheu o nome “Chronicon totius divinae historiae” (crônica de toda a história divina), título que foi resumido e  adotado por Lutero, permanecendo até hoje em nossas Bíblias. Na Bíblia grega (séc. III a.C.) o livro recebeu o nome de Paralipomena (coisas omitidas ou deixadas de lado). O título foi escolhido provavelmente porque Crônicas acrescenta informações omitidas nos livros de Samuel e Reis. Na Bíblia hebraica foi posto depois de Esdras e Neemias, ocupando o último lugar entre os livros canônicos.  

2. Autoria e data
Escrito após o exílio, Crônicas reconta a história de Israel com claro objetivo de exaltar seus momentos gloriosos. Os judeus atribuem Crônicas a Esdras, mas tal afirmação já não encontra defensores entre os estudiosos modernos. Atualmente o termo “cronista” tem sido usado para se referir ao autor (ou autores) do livro. Há um relativo consenso de que a obra foi redigida no século IV por membros da classe sacerdotal, tendo recebido sua forma definitiva por volta do ano 200 a.C. Muitos estudiosos pensaram que os livros de Crônicas/Esdras-Neemias fossem obra de um só autor. Os defensores dessa teoria, que foi tomada como certa até o final do século XIX, argumentavam que no processo de canonização os livros foram separados por um motivo desconhecido. Em 1934, Adam C. Welch contestou essa posição. Mais tarde, outros estudiosos, como a pesquisadora israelita Sarah Japhet e Hugh G. M. Williamson defenderam a tese de que Crônicas e Esdras-Neemias possuem origem independente[1]. Atualmente não há consenso em relação à unidade redacional dos livros.

3. Estrutura do livro
Neste livro destacam-se quatro grandes blocos: a) 1 Cr 1-9: a história de Adão a Davi, na forma de genealogias e listas; b) 1 Cr 10-29: o reinado de Davi; c) 2 Cr 1-9: o reinado de Salomão; d) 2 Cr 10-36: a história dos reis de Judá.

Na época em que o livro foi escrito havia uma intensa rivalidade entre a comunidade de Jerusalém e a de Samaria, por isso ele enfatiza que apenas o templo construído em Jerusalém por Salomão era legítimo e a dinastia davídica a única abençoada por Deus. Crônicas omite completamente a luta de Davi com Saul, suas várias esposas, a rebelião de Absalão (2Sm 15) e o pecado com Bat-sheba (2Sm 11). Apesar disso são mantidos o fato do recenseamento (1 Cr 21)  do insucesso da primeira tentativa de transferência da arca (1 Cr 15,11-15) e a recordação de que ele foi um homem que derramou sangue (1 Cr 22,7-8; 28,3). Mas se o livro omite, também acrescenta. Eventos que não aparecem em Samuel e Reis, tais como os preparativos de Davi para o templo e seus serviços litúrgicos recebem atenção especial do cronista. Cerca de um terço do primeiro livro  é composto por uma extensa genealogia, iniciada por Adão. As genealogias de Judá e Benjamim são mais desenvolvidas, já que são as tribos que viviam no território de Jerusalém. O desprezo por Saul é notório, apenas um capítulo é dedicado a esse rei (cap. 10). Muitos estranham uma genealogia tão longa no início do livro, mas é preciso compreender que os israelitas estavam recontando sua história com o objetivo de reconstruir sua identidade. Todo o restante do primeiro livro é dedicado aos feitos de Davi. Samaria é sempre vista como reino apóstata, por isso sua história é simplesmente ignorada.

O tratamento dado a Salomão também é diferenciado. O segundo livro de Crônicas começa enfatizando que Deus era com Salomão. O livro não narra, por exemplo, o brutal assassinato dos rivais de Salomão por ocasião da sua assunção ao trono (1Rs 2). Também não relata o luxo, a idolatria e a vida dissoluta que levou no final do seu reinado. Os sacrifícios oferecidos no templo e a instituição dos sacerdotes por Salomão também recebem grande destaque. Fatos inéditos surgem no livro. Os eventos descritos em 2 Cr 8,13-16, por exemplo, não aparecem em Reis.

4. Teologia
Diferenças teológicas entre Crônicas e Samuel/Reis são bem evidentes. O exílio parece ter feito os teólogos judaítas refletirem sobre várias questões. Satã, por exemplo, que aparece em Samuel e Reis apenas um substantivo que significa adversário (ver 1Sm 29,4; 2Sm 19,22; 1Rs 5,4; 1Rs 11,23), é personificado em Crônicas surgindo como o opositor do próprio Yahweh. Comparar o texto de 2Sm 24,1 com 1Cr 21,1 mostra essa nova percepção teológica.
A ira do Senhor (Yahweh) tornou a acender-se contra Israel, e o Senhor (Yahweh) incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá (2 Sm 24,1).
Então Satanás (Satan) se levantou contra Israel, e incitou Davi a numerar Israel (1Cr 21,1 ).
O livro de Crônicas também evita o nome Jacó, substituindo-o por Israel (2 Cr 30,6), talvez pela proximidade do nome Yacob(el) com yacab (trapaceiro). A teologia da retribuição, uma característica bem presente na obra historiográfica deuteronomista (Josué a Reis) continua forte no livro. Os últimos reis de Judá são apresentados como maus, por isso Deus decide finalmente purificar seu povo, fazendo-o passar pela prova do exílio babilônico, que durou cerca de meio século. Outra característica de crônicas é a valorização da função dos levitas. 1 Cr 23,3-5 lhes confere quatro tarefas: O serviço na casa de Yahweh, o serviço como funcionários e juízes, porteiros e músicos litúrgicos. Termos chave como “buscar a Deus”, “humilhar-se”, “praticar o que é bom, justo e verdadeiro perante Deus” são típicos no livro. Georg Steins acrescenta que “É o Templo que constitui o centro gravitacional da exposição cronista e da sua teologia”[2].

A obra termina com a transcrição do decreto de Ciro, rei da Pérsia, que concede aos judeus exilados a permissão de voltar à pátria e reconstruir o templo destruído pelos babilônios. Com isto começa uma nova etapa na história da salvação.

Referências bibliográficas:
DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos: São Leopoldo: Sinodal, 1997.
GABEL, John B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 1993.
GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia bíblica do Antigo Testamento. São Paulo: Editora Teológica: Edições Loyola, 2005.
SCHMIDT, Werner H.; SCHMIDT, Wermer. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Editora teológica: Edições Loyola, 2005.
GRADL, Felix; STENDEBACH, Franz Josef. Israel e seu Deus: guia de leitura para o Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2001.
TÜNNERMANN, Rudi. As reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a reorganização de Judá por Neemias no período persa. São Leopoldo: Sinodal: São Paulo: Paulus Editora, 2001.
VV.AA. Introdução ao Antigo testamento. São Paulo: Loyola, 2003.
VV.AA. Nuevo comentário bíblico. El Passo, TX: Casa Bautista de Publicaciones, 1996.
VV.AA. Lexicon – Dicionário teológico enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003.


Notas:


[1] Cf. TÜNNERMANN, Rudi. As reformas de Neemias: a reconstrução de Jerusalém e a reorganização de Judá por Neemias no período persa, 2001, pp. 34, 35.
[2] VV. AA. Introdução ao Antigo testamento. 2003, p. 221.

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