quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

PENTECOSTES É BABEL AO AVESSO


1. De modo geral os exegetas medievais (judeus e cristãos) se perdiam em interpretações bíblicas sem pé nem cabeça, impulsionados pelo método alegórico. Mas estas duas ilustrações inseridas na p. 036v do manuscrito Speculum humanae salvationis (séc. XV) indicam que o artista percebeu um nítido paralelo entre At 2,1-13 e Gn 11,1-9.

2. Em Babel o povo afronta Deus; em Pentecostes se submete a Deus. Em Babel os povos se distanciam uns dos outros; em Pentecostes ele se reúnem em Jerusalém. Em Babel as línguas são confundidas; em Pentecostes todos voltam a falar "a mesma língua". Em Babel o povo tenta subir até Deus; em Pentecostes é o espírito divino que "desce" até o grupo reunido.

3. É possível (e até provável) que a composição tenha sido influenciada pela leitura de algum comentarista medieval. De uma boa olhada no manuscrito aqui.


Jones F. Mendonça

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

SOBRE O TETRATEUCO EM CINCO PONTOS


1. Um leitor atento percebe com facilidade que sob a perspectiva narrativa o Pentateuco deveria terminar no capítulo 27 de Números. E por quê? Bem, é que nesta parte do livro, Moisés, já velho, recebe a ordem divina para contemplar a terra que havia sido dada a seus pais, estando sob a cadeia montanhosa de Abarim. No v. 20 uma última ordem lhe é dada: “invista sobre ele [Josué] sua autoridade, a fim de que toda a comunidade de Israel lhe obedeça”. Fim do ministério de Moisés...

2. Ocorre que o livro de Números só termina no capítulo 36 e Moisés ainda reaparece recebendo ordens e se dirigindo à comunidade, tratando questões relativas a votos, festas, guerras, divisão da terra, heranças, etc. No capítulo 33 temos até mesmo uma recapitulação da trajetória do Êxodo. Deve parecer óbvio para qualquer leitor que o Pentateuco, tal como se encontra, é o resultado de uma compilação e não uma obra redigida pelo próprio Moisés.

3. É ainda mais surpreendente que Moisés reapareça no livro seguinte, o Deuteronômio, que significa “segunda lei” (deutero = segunda; nomos = lei). Este título foi dado de forma acertada, afinal o que é o Deuteronômio senão uma atualização da Lei em forma de pregação? Este último livro do Pentateuco, como muitos notaram, possui características muito diferentes dos primeiros quatro livros (o Tetrateuco), não apenas na forma, mas também no conteúdo.

4. Os tradutores da Bíblia de Jerusalém traduziram assim Nm 27,20: “comunica-lhe UMA PARTE da tua autoridade, a fim de que toda a comunidade dos filhos de Israel lhe obedeça”. O tradutor acrescentou o “uma parte” porque tentou fazer parecer ao leitor que a transferência de autoridade havia sido parcial, uma vez que o livro mantém Moisés como personagem principal até Deuteronômio 34, quando finalmente morre.

5. A morte de Moisés, em Dt 34, caberia muito bem no final de Nm 27. 



Jones F. Mendonça

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

O LIVRO DO LEVÍTICO E O NARIZ PROIBIDO



1. De acordo com algumas traduções do livro bíblico de Levítico, o texto de Lv 21,18 diz que nenhum homem que possua "nariz chato" (haram) poderá oferecer ofertas queimadas a Deus. Acontece que "haram" não significa "nariz chato" nem aqui nem na China. Vale destacar que a palavra "nariz" sequer existe no texto. "Haram" reaparece, por exemplo, em Js 11,21: "Josué os destruiu (haram), juntamente com suas cidades".

2. Tudo o que podemos saber é que o texto proíbe o acesso de pessoas "destruídas" (mutiladas?) a alguns locais considerados sagrados. Quando o texto hebraico foi traduzido para o grego, a palavra escolhida como equivalente a "haram" foi κολοβορριν, termo que significa, de acordo com alguns léxicos "nariz destruído/desfigurado".

3. É possível que um tradutor mal intencionado (sendo claro: racista) tenha buscado o significado de "haram" na versão grega do texto: "nariz desfigurado" e como tinha certa aversão por narizes que não se enquadravam no seu modelo ideal de nariz, achou por bem traduzir "haram" por "nariz chato". Traduzir textos antigos não é tarefa fácil, mas tem gente que força a barra. 



Jones F. Mendonça