Quem
lê o “Sic et non” do teólogo escolástico Pedro Abelardo (1079-1142), tem a
nítida noção do equívoco de se atribuir aos teólogos dos séculos XVII e XVIII a
introdução da dúvida e do questionamento na reflexão teológica. Influenciado
pela filosofia de Aristóteles, Abelardo dá passos significativos em direção ao
que mais tarde será chamado de crítica bíblica.
Para
solucionar o problema da “aparente contradição nos ditos do santos padres e das
Escrituras”, Abelardo apresenta as seguintes soluções: 1) um falso documento
foi atribuído de forma equivocada a algum santo (trata-se de um livro apócrifo)
ou os copistas cometeram erros; 2) o texto não foi bem compreendido; 3) os erros
cometidos pelos santos padres foram corrigidos em textos escritos num período
posterior; 4) alguns termos não devem ser interpretados literalmente, pois
apenas expressam uma opinião comumente aceita. Abaixo trechos do Sic et non
[1]:
1)
Quando nos são apresentadas algumas afirmações dos santos como opostas entre si
ou distantes da verdade, convém que examinemos atentamente, para não sermos
enganados por falsas atribuições de obras, ou por corrupção do texto. A
maior parte dos escritos apócrifos traz o nome de santos como autores, a
fim de, com isso, ganhar autoridade; e alguns textos até mesmo da Bíblia foram
corrompidos por erro dos copistas (p. 118);
2)
Se, pois, nos escritos dos santos, parece que algo não condiz com a verdade,
então é piedoso, conforme a humildade e devido pela caridade [...], que
creiamos que esta passagem do texto não foi fielmente interpretada ou foi
corrompida, ou nós não a conseguimos compreender (p. 119);
3)
Julgo também que se deve dar não menos atenção ao fato de que os textos tomados
dos escritos dos padres podem ser daqueles que por eles foram retratados em
outro lugar, tendo sidos corrigidos após terem conhecido a verdade, tal
como o fez Santo Agostinho em muitos casos (p. 119);
4)
...nos Evangelhos constata-se que algumas coisas são ditas mais segundo a
opinião dos homens que segundo a objetividade da verdade. Foi o caso, por
exemplo, de Maria, mãe do Senhor, quando, segundo o costume e a opinião popular,
chamou a José de pai de Cristo (Lc 2,48) (p. 121).
Abelardo
finaliza: “se consta, pois, que nem mesmo os profetas e os apóstolos
estiveram todos livres do erro [como o Pedro dissimulado em Gálatas], que
há de admirar se em tão inúmeros escritos de santos padres haja algumas coisas
erradas, devido aos motivos apontados?”. Mas ao defender a autoridade das Escrituras e
dos textos dos primeiros padres expondo explicações para “supostas
contradições”, Abelardo põe em relevo questões espinhosas, abrindo precedentes
perigosos para a ortodoxia.
O
método de Abelardo para a busca da verdade consiste na confrontação de textos
divergentes pelo questionamento (quaestio) e pelo debate e disputa de ideias
(disputatio) sob a direção do mestre, a quem cabia a conclusão:
Depois
de colocar estas questões [os pontos de 1 a 4 expostos acima], gostaríamos
agora de, como nos propusemos, reunir as sentenças divergentes dos
santos padres das quais nos recordamos. Esperamos que estas sentenças, devido
às dissonâncias que aparentam ter, suscitem algumas perguntas que provoquem
os jovens leitores ao exercício supremo de procurar a verdade, e pela
procura os tornem mais sagazes. [...] É que duvidando chegamos à
procura, e procurando chegamos à verdade [...] (p. 129).
O
retorno às fontes (ad fontes) feito
sob a direção de humanistas com Lourenzo Valla e Erasmo de Roterdã e o livre
exame e o abandono da alegoria por Lutero, no período da Reforma, dá novo
impulso ao surgimento de um método de interpretação bíblica desvinculado da
autoridade eclesiástica e cada vez mais comprometido com a razão. Em 1678, com
a publicação da História Crítica do Antigo Testamento, por Richard Simon, o uso
da inteligência para encontrar o sentido objetivo da Escritura finca
definitivamente suas raízes no terreno da pesquisa bíblica. A razão, agora
livre das rédeas da ortodoxia, inicia sua impiedosa cavalgada. Mas em pleno
século XXI o homem ainda parece preferir a certeza do dogma, que a dúvida suscitada
pela razão.
Nota:
[1] DE
BONI, Luis Alberto. Filosofia medieval: textos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005,
pp. 116-129.
Jones
F. Mendonça